Apesar das enormes brechas no nosso conhecimento, não pode haver dúvida de que o Homo erectus foi uma espécie muito bem-sucedida. De onde provinha o seu cérebro maior? Aqui há mais mistérios, porém parece ser mais provável que uma mudança na dieta explique o surgimento de um novo tipo físico. Comer mais carne pode ter ajudado a sobrevivência e a reprodução de criaturas de estatura maior que a média. Isto bem pode estar ligado ao aparecimento da primeira habilidade especializada: a caça.
Os primeiros carnívoros parecem ter dependido de pequenas presas, como répteis ou roedores, ou ter comido a carniça encontrada onde haviam morrido animais maiores. Bem no começo dos registros arqueológicos, elefantes e talvez girafas e búfalos tenham ajudado a fornecer carne consumida em Olduvai, mas muito antes disto os detritos registram a enorme preponderância de ossos de pequenos animais. Não era garantido ir em busca de alimentos, e isto se transformou na verdadeira caça - e também no grande jogo da caça -, só que muito lentamente. Porém a mudança e as consequências que causou foram muito grandes. Junto com o crescimento de tamanho dos animais, restos encontrados entre os vestígios da dieta primitiva podem demonstrar um crescimento paralelo no tamanho do crânio dos carnívoros. Por volta de 300000 a.C., elefantes eram mortos e imediatamente retalhados; foram encontrados restos de grande número deles (em um só local, cerca de cinquenta). No mesmo período (e também em tempos posteriores), a forma dos dentes e das mandíbulas de criaturas semelhantes ao homem evoluiu lentamente a partir das espécies predominantemente vegetarianas. Nesta questão é difícil determinar a causa e o efeito. A melhor dieta conseguida da caça organizada só estava à disposição de criaturas já pelo menos avançadas o suficiente para realizar esta operação complicada. Mais uma vez isto mostra a velocidade da mudança evolutiva. Uma enorme e nova amplitude de capacidades e habilidades passa a existir em algum ponto entre 1000000 e 100000 a.C. e possibilitou o surgimento das primeiras sociedades humanas.
Antes que o grande jogo da caça se tornasse possível, alguém precisou conhecer muito a respeito dos hábitos dos animais e ser capaz de passar aos outros este conhecimento, tanto aos engajados na empreitada cooperativa da caça como de geração em geração. Portanto, algum tipo de fala deve ter existido. Tem-se discutido se a seleção genética´que levou a mudanças na forma do cérebro favoreceu o desenvolvimento da linguagem. Talvez nunca se saiba como o Australopithecus se comunicava, mas até mesmo primatas inferiores têm meios de fazer isto. Talvez o primeiro passo na organização da linguagem tenha sido a fragmentação de gritos, como os de outros animais, em sons particulares, capazes de uma nova ordenação. Isto possibilitaria diferentes mensagens. Mas outras mudanças também podem ter ajudado. Melhor visão, um senso crescente do mundo como porções de objetos separados e a feitura de novas coisas (ferramentas), tudo aconteceu simultaneamente durante centenas de milhares de anos durante as quais a linguagem evoluiu. Tudo isto possibilitou aos poucos o advento do pensamento abstrato (pensar em coisas não de fato presentes). E esta tendência deve ter sido reforçada quando a caça tornou ainda mais importantes o registro e a memória.
A caça também exigiu grande variedade de técnicas e habilidades. Era extremamente difícil preparar armadilhas e matar monstros, como o mamute ou o rinoceronte peludo, com a ajuda exclusiva de armas de pedra ou madeira. Era preciso muito cálculo e disciplina para levar aquelas pesadas criaturas a um local onde o abate seria favorecido por causa de um pântano, ou porque oferecia aos caçadores bons pontos de vantagem ou plataformas seguras. Uma vez mortas, as vítimas apresentavam outros problemas. Era preciso retalhá-las, apenas com ferramentas de madeira e pedra. E, depois, a carne deveria ser levada para casa.
Idade da Pedra, Viktor Vasnetsov
Idade da Pedra, Viktor Vasnetsov
Idade da Pedra, Viktor Vasnetsov
Maiores suprimentos de carne representavam um passo minúsculo para um pequeno lazer: os consumidores eram temporariamente liberados da enfadonha tarefa da busca incessante de pequenos porém continuamente disponíveis quinhões de alimentos, e tinham tempo para fazer outras coisas. Podiam aprimorar a tecnologia existente. Além de fabricar machados manuais mais elaborados e bifaciais, o Homo erectus também deixou a primeira evidência comprovada de habitações construídas, das primeiras madeiras trabalhadas, da primeira lança de madeira, do primitivo recipiente, uma tijela de madeira. Inventar coisas nesta escala demonstra um ritmo de desenvolvimento e uma capacidade bastante diferentes do que acontecera antes. As mentes imaginavam os objetos antes de começar a manufaturá-los. Alguns têm argumentado que as formas simples (triângulos, elipses e ovais) usadas em grande número de ferramentas de pedra podem ser vistas como a origem da arte - a produção de objetos que davam prazer, tanto por sua forma quanto por sua utilidade.
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É mais fácil formar um quadro das circunstâncias materiais da vida antiga do que daquilo que se passava dentro dos cérebros maiores que agora enfrentavam estas circunstâncias. Mas examinar esses restos materiais é na verdade tudo o que podemos esperar fazer, e que eles nos digam algo. Vale a pena pensar mais uma vez no grande jogo da caça. Ao se tornar dependente da carne, o Homo erectus se transformou num parasita das manadas desse jogo -, e portanto, precisava segui-las ou explorar novos territórios onde procurá-las - e era mais provável se estabelecer e se multiplicar em alguns locais do que em outros. Assim, foram estabelecidas as bases de moradia. Algumas parecem ter sido ocupadas por milhares e milhares de anos.
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[...] O Homo erectus fabricou ferramentas de diferentes estilos e em diferentes locais, construiu abrigos, tomou posse de refúgios naturais explorando o fogo e dali saiu para caçar e coletar comida. Fez isto em grupos, mostrando alguma disciplina, e foi capaz de transmitir ideias por meio da fala, fundou uma base de moradia e uma distinção entre as atividades de machos e fêmeas. Pode ter havido outras especializações: portadores de fogo ou criaturas mais velhas cujas memórias os transformavam em "bancos de dados" das suas "sociedades", e que talvez tenham sido, até certo ponto, sustentados pelos outros.
No entanto, nada se tem a ganhar procurando uma linha divisória na Pré-história. Não existe evidência alguma. Tudo o que podemos afirmar com confiança é que as coisas aconteceram de certa maneira. Quando o Homo sapiens evoluiu a partir de uma ou mais subespécies do Homo erectus, já estavam à sua disposição um novo tipo físico, grandes realizações e uma herança. Os indivíduos chegaram nus ao mundo, mas a humanidade não. Ela trouxe consigo do passado tudo o que a constitui.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 30-32, 34, 37.
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