O auriga de Delfos, bronze, 470 a .C. Artista
desconhecido.
A Antiguidade, "Antiguidade clássica", representa
para alguns o começo de um novo mundo (basicamente europeu). O período se
encaixa com perfeição numa corrente progressiva da história. Nesse sentido, em
primeiro lugar, a Antiguidade teve de ser radicalmente apartada de seus
predecessores na Idade do Bronze, que caracterizou algumas das mais importantes
sociedades asiáticas. Em segundo, Grécia e Roma passam a ser vistas como
fundadoras da política contemporânea, sobretudo no que concerne à democracia.
Em terceiro, alguns aspectos da Antiguidade, especialmente os econômicos como
comércio e mercado, que marcariam mais tarde o "capitalismo", são
subestimados, para marcar uma grande distinção entre as diferentes fases que
conduzem ao presente. [...]
A Antiguidade é compreendida por alguns como a época que
marca o início do sistema político, da "polis", da
"democracia" propriamente dita, da "liberdade" e da lei.
Economicamente, ela era diferente, baseada na escravidão e na redistribuição,
mas não em mercado e comércio. Considerando os meios de comunicação, os gregos
com sua língua indo-europeia teriam criado o alfabeto que usamos hoje. O mesmo
teria se dado com relação à arte, inclusive à arquitetura. [...]
O roubo da história pela Europa Ocidental começou com as
noções de sociedade arcaica e Antiguidade, prosseguindo daí em uma linha mais
ou menos reta pelo feudalismo e Renascença até o capitalismo. Aquele começo é
compreensível porque, mais tarde para a Europa, as experiências gregas e
romanas representaram o amanhecer da "história", com a adoção do
alfabeto escrito (antes da escrita tudo era pré-história, e esfera de arqueólogos,
não de historiadores). Evidentemente, havia alguns registros escritos na Europa
antes da Antiguidade na civilização minóico-micênica de Creta e do continente.
No entanto, [...] os documentos consistiam de listas administrativas, não de "história"
ou literatura. Essas áreas apareceram com alguma força na Europa somente depois
do século XIII a.e.c. com a adoção e adaptação pela Grécia da escrita fenícia,
a ancestral de muitos outros alfabetos, com seu sistema de consoantes BCD (sem
as vogais). Uma das primeiras matérias da escrita Grega foi a guerra contra a
Pérsia que levou à distinção feita em termos valorativos entre Europa e Ásia,
com profundas consequências para nossa história política e intelectual a partir
de então. Para os gregos, os persas eram "bárbaros", caracterizados
pelo uso da tirania em vez da democracia. Era, claro, um julgamento puramente
etnocêntrico, alimentado pela guerra greco-persa. [...]
Linguisticamente, a Europa tornou-se o lar dos
"arianos", falantes de línguas indo-europeias advindas da Ásia. A
Ásia Ocidental, por outro lado, foi o lar dos povos nativos de línguas semitas,
um ramo da família afro-asiática que inclui a língua falada pelos judeus,
fenícios, árabes, coptas, berberes, e muitos outros do norte da África e Ásia.
Foi essa divisão entre arianos e outros, incorporada mais tarde nas doutrinas
nazistas, que, na história popular da Europa, tendeu a encorajar o subsequente
menosprezo das contribuições do Oriente para o crescimento da civilização.
[...]
Muitos vêem que a história mais recente da Europa emergiu de
alguma vaga síntese entre romanos e a sociedade nativa tribal, uma formação
social "germânica" em termos marxistas; há controvérsias entre
romanistas e germanistas quanto às contribuições de suas respectivas culturas.
No que diz respeito ao período anterior, a Antiguidade é frequentemente vista
como a fusão das condições da Idade do Bronze com as "tribos" de
origem "ariana" que participaram das invasões dóricas. Assim, a
Antiguidade teria se beneficiado de ambos os regimes: as centralizadas culturas
urbanas "civilizadas" e as "tribos" mais rurais e pastoris.
[...]
Childe enfatiza o papel do comércio no mundo clássico, e
como ele foi importante para difundir culturas, ideias e pessoas. Os escravos,
claro, eram comercializados, e não somente tinham função de trabalhadores:
"entre eles havia também doutores altamente especializados, cientistas,
como também artesãos e prostitutas [...] as civilizações orientais e
mediterrânicas, tendo se fundido, estavam ligadas pelo comércio e pela
diplomacia a outras civilizações do leste e aos velhos bárbaros do norte e do
sul". Tal intercâmbio ocorria tanto internamente quanto entre sociedades.
As "tribos" da periferia, os chamados
"bárbaros", ou seja, aqueles que não pertenciam às civilizações mais
importantes, foram afetadas pelo grande desenvolvimento nas sociedades urbanas
com as quais elas intercambiavam produtos, ajudando também no transporte de
bens. Tais sociedades urbanas eram vistas como possíveis alvos: por sua
maior mobilidade, assaltar cidades e seu tráfico era um modo de vida para
algumas "tribos". Foi essa situação descrita por Ibn Khaldun em seu
texto do século XIV sobre o conflito, no norte da África, entre beduínos
nômades e árabes sedentários [...] em que as tribos tinham maior
"solidariedade" [...] se comparadas aos povos mais avançados
tecnologicamente [...]. A maioria das grandes civilizações teve contatos
semelhantes com suas "tribos" vizinhas e sofreu incursões
semelhantes: os chineses dos manchus, os indianos dos timurids da Ásia Central,
o Oriente Médio dos povos do deserto ao redor, os dórios na Europa. Não havia
nada de excepcional nos ataques dos germanos e outros no mundo clássico, a não
ser o de terem sido um fator importante na destruição do Império Romano e no
eclipse temporário das extraordinárias realizações da Europa Ocidental.
Entretanto, as tribos não foram simplesmente "predadoras". Eram
importantes também [...] por si próprias e por noções de solidariedade,
democracia e liberdade, aspectos quase universalmente associados aos gregos.
O que entendemos por Antiguidade tem sua origem, obviamente,
na Grécia e Roma; é a narrativa mais sustentada pela maioria dos historiadores
clássicos. Há um consenso de que a Antiguidade foi construída sobre um colapso
anterior da civilização. Em 1200 a.e.c., "a Grécia se parecia muito
com qualquer outra sociedade do Oriente Médio". [...]
[...]
Um dos resultados da interpretação em termos de invasão
tribal da Grécia por tribos de fala ariana foi a negligência das contribuições
semitas e a ênfase exagerada nas contribuições gregas para o que foram, sem
dúvida, desenvolvimentos de grande importância. Por exemplo, nas formas de
comunicação, os gregos adicionaram os sons das vogais ao alfabeto semita,
portanto, aos olhos de alguns eruditos, "inventaram" o alfabeto. O
novo alfabeto tornou-se o mais importante instrumento para comunicação e
expressão. No entanto, na verdade, muito foi feito com o alfabeto consonantal,
o suficiente para a produção do Antigo Testamento pelos judeus, que serviu de
base tanto para o judaísmo como para o cristianismo e o islamismo. Isso já foi
um enorme feito histórico, literário e religioso. Como também o foram as
literaturas das línguas árabe e indiana que se desenvolveram a partir da versão
aramaica dos escritos semitas, de novo sem vogais. [...]
Um tipo de alfabeto só de consoantes estava disponível na
Ásia há muito, desde cerca de 1500 a.e.c., favorecendo a literatura de
povos como os semitas, fenícios, hebreus, falantes de aramaico e, mais tarde,
de árabe também. [...] Além disso, com outros tipos de escrita, a espécie
humana fez milagres em termos de acúmulo e difusão do conhecimento, por
exemplo, usando a escrita logográfica do Extremo Oriente. Mesopotâmicos e
egípcios também produziram obras literárias substanciais usando manuscritos
semelhantes, porém, em parte por razões linguísticas, são vistos pelos europeus
como "orientais", em vez de clássicos. [...]
[...]
Contatos entre povos têm grande importância social, além de
fornecer modelos de desenvolvimento, a contar da mudança do (puramente) oral
para o escrito, da emergência de escritas logográficas, silábicas e
alfabéticas, do advento do papel, da imprensa e da mídia eletrônica, essas
formas se sucedem, mas não se substituem, como acontece com os meios de
produção. [...]
GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo:
Contexto, 2008. p. 37-43.
Nenhum comentário:
Postar um comentário