"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 23 de março de 2013

A trajetória dos índios no continente americano

Não se sabe quando o continente americano foi povoado, qual a antiguidade do ser humano na América. Alguns estudiosos consideram que a presença humana é antiquíssima. A arqueóloga Maria Conceição Beltrão investigou sítios na Bahia e propôs que ali houvesse vestígios de um antepassado humano, o Homo erectus, entre 500 mil e 1 milhão de anos. Teriam chegado à América do Sul por uma ponte de gelo, que possivelmente ligava a África Meridional à Patagônia. Outros estudiosos pensam que apenas a nossa espécie, o Homo sapiens, tenha chegado à América. A pesquisadora Niède Guidon, ao estudar sítios arqueológicos no Piauí, sustenta que ali havia ocupação humana há mais de 50 mil anos. Teriam chegado àquele local por duas vias possíveis: ou pelas ilhas do Pacífico ou pelo Oceano Atlântico. Ainda com relação à Alta Antiguidade, outros estudiosos, como o biólogo Walter Neves, propõem que havia mesmo uma migração humana anterior à última glaciação - provavelmente há mais de 20 mil anos - de grupos humanos diferentes dos índios que conhecemos hoje. Eles teriam vindo da Ásia pelo estreito de Bering, colonizado o continente, mas não teriam sobrevivido à chegada mais recente, na última glaciação, dos antepassados dos índios atuais, chamados de mongoloides em virtude de suas características físicas, como o olho puxado.

Na verdade, não há muitas evidências concretas da presença de grupos humanos anteriores e diversos da população indígena. Os estudos mais recentes sobre a pré-história mundial não apresentam motivos, até o momento, para aceitar essa presença de grupos humanos anteriores aos asiáticos ou mongoloides. Os arqueólogos Chris Gosden e Clive Gamble são dois estudiosos que ponderam pela dificuldade das hipóteses da presença do Homo sapiens na América há muitos milênios. Nossa espécie teria saído do continente africano há apenas cem mil anos e sua chegada à América tardaria muito tempo. A navegação e colonização das ilhas do oceano Pacífico são muito tardias, apenas nos últimos milhares de anos, o que dificulta a teoria da chegada mais antiga por essa via. Por fim, não há vestígios humanos numerosos e bem datados que possam fundamentar essas hipóteses.

Sobram, entretanto, evidências da presença indígena a partir dos últimos 12 mil anos. As análises genéticas, linguísticas e arqueológicas parecem indicar que a colonização do continente pelos índios se deu de Norte a Sul a partir do estreito de Bering, tendo ocupado toda a imensa área do Alaska à Patagônia em poucos milhares de anos.

Como podemos narrar e interpretar a história indígena nos últimos milhares de anos? Isso depende do ponto de vista que adotarmos e do nosso objetivo.

O modelo interpretativo mais difundido visa a entender, a partir de um número limitado de variantes, os grandes momentos dessa trajetória. Essas variantes são o domínio técnico do mundo material (tecnologia) e a consequente configuração das relações de poder na sociedade, referente ao grau de estratificação social existente. Essa abordagem deriva do evolucionismo, surgido na Biologia, aplicado às sociedades humanas. A partir dela, estuda-se o passado indígena observando o processo que leva ao conhecimento crescente das técnicas, com a passagem de um estágio menos elaborado a outro tecnologicamente mais evoluído.

Segundo a narrativa construída a partir desse enfoque, o uso da pedra permitiu a confecção de artefatos líticos necessários à caça, à pesca e à coleta. As sociedades primitivas, de caçadores e coletores, eram nômades e viviam em assentamentos temporários, pois mudavam de lugar com frequência. Elas tinham também uma estrutura social pouco diferenciada, com chefes e xamãs que exerciam um poder brando sobre o grupo. Esses foram os primeiros habitantes do continente americano, que viveram assim por milhares de anos.

Após esse período, em alguns lugares apenas, certos grupos humanos passaram a dominar novas técnicas, passado a produzir vasos de cerâmica e a domesticar plantas e animais. Com isso, tais grupos tornaram-se mais sedentários e constituíram aldeias maiores e mais estáveis. Como resultado desse processo, as diferenças sociais aumentaram. Os caciques adquiriram um poder mais efetivo e os conflitos entre as tribos indígenas intensificaram-se, com um grande aumento das guerras e, até mesmo, com a formação de confederações de tribos, que lutavam umas contra as outras.

Por fim, da evolução dessas sociedades, em algumas partes do continente americano, surgiram Estados. Na América do Sul, isto ocorreu apenas nos Andes. Ali, alguns grupos atingiram um domínio tecnológico excepcional, por meio de uma produção agrícola intensiva e elaborada, com a produção de grande excedente que podia ser acumulado por uma elite dominante. Isso permitiu o desenvolvimento de um Estado que abrangia uma sociedade muito bem estratificada, como a inca, com um sistema monárquico elaborado, com uma corte real e, com o tempo, a formação de um verdadeiro império, que se estendia por uma imensa área nos Andes. O domínio tecnológico dos metais permitiu a formação de um grande exército. O uso da escrita possibilitou a administração do império. Processos semelhantes ocorreram na América Central, com os maias, e na América do Norte, com os astecas.

Podemos apresentar, de forma esquemática, essa perspectiva no seguinte quadro:

Perspectiva tecnológica evolucionista da História indígena

Tecnologia

Estrutura social
Formação política
pedra
caçadores e coletores
xamanismo

cerâmica
agricultores
cacicado tribal

metais e escrita
populações urbana e rural
monarquia e império


classes sociais



Essa perspectiva é muito útil para compreender, em grandes traços, processos tecnológicos, sociais e políticos.

Posteriormente, os estudiosos de língua inglesa procuraram aprimorá-la, com a definição de cinco etapas esquemáticas:

* Hunters and gatheres (caçadores e coletores)
* Agriculture (agricultura)
* Rank (classe social, graduação)
* Chiefdoms (chefias)
* State (Estado)

Segundo esta gradação, temos uma imagem piramidal explicativa de que, no passado mais remoto, havia apenas caçadores e coletores, sendo que alguns evoluíram para, numa etapa mais recente (em 1500 d.C.), chegar a formar um Estado imperial, como o inca:

Estado imperial
Chefias ou cacicados
Tribos com estratificação social
Agricultores sedentários e ceramistas
Sociedades de caçadores e coletores itinerários

A perspectiva evolucionista chegou a ser criticada por diversos estudiosos por dar a entender que haveria uma progressão valorativa: da "simplicidade e barbárie" dos caçadores e coletores para a "sofisticação e complexidade" das sociedades com classes sociais, estratificação, cidades, províncias e até um império, como o inca. Como se fosse melhor viver em um império do que em uma tribo. Além disso, a progressão evolucionista, adotada sem as devidas ressalvas, pode dar a falsa impressão de que cada etapa põe fim à anterior, quando, na verdade, mesmo à época dos incas, coexistiam caçadores, coletores, agricultores, tribos confederadas e cacicados. E, mais do que isso, tinham lugar ao mesmo tempo, numa mesma cultura, tecnologias de diferentes "etapas tecnológicas". Por exemplo, o uso dos metais não significou o abandono total do uso da pedra. (Mesmo nos dias atuais, é possível observar sua aplicação na separação dos grãos do milho nos campos europeus, em particular no espanhol.) Igualmente, comunidades que adotaram a agricultura nem por isso deixaram de caçar ou coletar quando tinham oportunidade. (Hoje, como obtemos alguns tipos de cogumelo? E certos tipos de trufa? Por meio da coleta, claro, e neste aspecto somos coletores.)

Entretanto, essa classificação não foi abandonada pelos estudiosos, pois, sem a carga valorativa, tem sido muito útil para compreender alguns aspectos da trajetória indígena e, nesse sentido, continua sendo empregada. Com ela, podemos visualizar a importância das transformações tecnológicas e seus impactos na estrutura social e política das sociedades indígenas. Contudo, esta não é a única maneira de se observar a experiência histórica dos índios e outras abordagens, que, por exemplo, se baseiam na valorização da diversidade cultural, nos ajudam a ter uma visão mais acurada, pois complementam aquela baseada na evolução tecnológica.

Essas outras abordagens, chamadas por alguns de "culturalistas", por enfatizar as especificidades culturais, apresentam uma visão mais difusa do passado indígena e não fazem uma classificação que possa ser comparada àquela proposta pelo evolucionismo.

Nessa perspectiva, o nomadismo da floresta tropical, modo de vida praticado por diversos grupos humanos como os nucaques, é explicado não como o resultado de uma tecnologia primitiva, mas é tido como fruto de escolhas culturais desses grupos que os levaram a não quererem adotar outras tecnologias. Poderiam ter domesticado animais e plantas ou desenvolvido a cerâmica para armazenamento de alimentos, já que tiveram contato com povos que dominavam tais técnicas, mas escolheram, por suas disposições simbólicas e culturais, não fazer nada disso.

No extremo oposto, os incas criaram um grande império, com escrita, corte real e as melhores estradas do mundo no século XV. Porém, muitos povos sob seu jugo mantiveram-se como tribos de agricultores, sem grande diferenciação interna e pouco contentes com o fato de terem de pagar tributos para o Estado imperial inca. Só aceitavam o domínio inca por imposição militar, mas sua visão de mundo nada tinha a ver com a inca.

Ainda no mesmo século XV, outros povos da América viviam em tribos confederadas e em guerra entre si, como os tupis.

As classificações e esquemas podem ser didaticamente úteis, mas sempre podem ser reavaliados. Por exemplo, estudos das sociedades indígenas americanas têm mostrado que muitos conceitos explicativos como os fundados no colonialismo e na dominação social (que reconhecem "inferioridades" e "superioridades" entre culturas e povos distintos) devem ser revistos. Os índios nunca utilizaram a roda e nem por isso as estradas incas deixaram de ser as melhores do mundo à sua época, no século XV. A ideia da "domesticação" de animais não se aplica a muitas sociedades indígenas que como os nucaques não usam os animais em cativeiro para produzir alimentos ou outros bens, mas os incorporam em seu convívio de maneira simbólica e espiritual. A oposição radical entre sociedades letradas e ágrafas tampouco parece muito esclarecedora. Em primeiro lugar, sistemas de escrita foram utilizados por indígenas, como no caso da grafia por ideogramas dos maias. Os incas usaram um método original, composto por cordas e nós para registrar sua língua quíchua. Em seguida, como argumenta o estudioso britânico Gordon Brotherston, os desenhos corporais, os penachos, os vasos de cerâmica, as pinturas em couro e nas paredes das cavernas, tudo isso e muito mais consistem em sistemas de escrita, de transmissão de informação de maneira sofisticada e complexa (tão longe, portanto, da simplicidade atribuída aos índios ainda por alguns).

Outras visões antes consagradas também têm sido criticadas, como a que afirma que nas sociedades caçadoras e coletoras há necessariamente uma divisão de tarefas por sexo, ou seja, o homem é o caçador e a mulher é quem faz a coleta e que, por isso, o homem é hierarquicamente superior à mulher. Essa imagem contradiz os resultados de estudos, tanto de comunidades indígenas vivas, como do passado, que mostram que, em muitas delas, às mulheres cabem múltiplas funções e não só as chamadas "domésticas". Eles revelam a existência de grupos indígenas em que a posição da mulher é proeminente, algo muito distante da imagem da mulher passiva que os europeus que os contataram traziam consigo. Basta lembrar que, quando chegaram ao Amazonas, os colonizadores encontraram mulheres guerreiras que chefiavam suas tribos e, por isso, deram a elas o nome das míticas lutadoras gregas antigas: "amazonas". Esse nome deriva da posição hierárquica excepcional dessas índias, também no campo da guerra, considerado pelos colonizadores como apanágio masculino. A arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt estudou os assentamentos pré-históricos amazônicos, assim como a cerâmica marajoara, com sua onipresente representação dos atributos femininos da fertilidade e concluiu, de forma enfática, que as mulheres ocupavam uma posição hierárquica relevante. Para além do caso bastante conhecido das amazonas, estudiosas têm mostrado que, em outras tribos indígenas, as mulheres também exerciam papéis sociais muito importantes e valorizados. A arqueóloga cubana Lourdes Dominguez estudou diversas tribos indígenas, dentre as quais as de língua aruaque, presentes tanto no Caribe, como na América do Sul - povos que viviam no Brasil, na Venezuela e nas ilhas caribenhas. Entre eles, encontrou tribos em que as principais divindades eram femininas e a linhagem era materna, tanto no que se refere à descendência como à herança, de modo que a criança era considerada pertencente à família da mãe, assim como os bens eram passados por linha materna. Documentos do início da colonização também se referem a "cacicas", no feminino.

É bom notar que, apenas nas últimas décadas, com a crescente participação das mulheres como estudiosas das sociedades indígenas, foi possível perceber que nem todas as sociedades indígenas eram (ou são) patriarcais. [...] 

Nessa mesma linha, também cabe comentar [...] sobre a diversidade de sexualidades registrada em tribos indígenas. Pesquisas têm mostrado a existência de sociedades indígenas que reconhecem mais do que dois sexos. A arqueóloga norte-americana Barbara L. Voos é uma das estudiosas desses personagens sociais que não são considerados nem "homem" nem "mulher", mas estão em uma terceira categoria designada "muxes" pelos zapotecas, "berdaches" pelos illinois, "winktes" pelos lacotas, "ikoneta" pelos ilinos, "egwakwe" pelos chipewas, "axi" pelos xumaxes, "miati" entre os hidatsas, entre muitos outros nomes que variam de tribo a tribo. O que importa é o reconhecimento da existência de pessoas que não são tratadas como homens ou mulheres, são vistas como de um outro tipo.


Dança para o berdache, George Catlin


Isso se reflete nas relações sociais estabelecidas dentro do grupo. Um grupo indígena, por exemplo, que admite homens, mulheres, e homens que vivem como mulheres e vice-versa, organiza as relações humanas de uma maneira particular. Esta conclusão é um alerta contra as óticas interpretativas que ignoram a diversidade de sexualidades e de relações de gênero entre os indígenas, mas também na nossa sociedade. E é por isso também que esse tema é muito importante hoje [...], no Brasil, pois embora nossa sociedade reconheça a existência de gays, lésbicas e transgêneros, entre outros, com vários direitos garantidos por lei, ainda há muito preconceito e discriminação por conta de suas diferenças.

FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para professores. São Paulo: Contexto, 2011. p. 38-49.

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