A descoberta da terra, Cândido Portinari
Saindo de Portugal no dia 9 de março de 1500,
a frota de treze navios comandada por Pedro Álvares Cabral chegou ao
Brasil, depois de quase sete semanas de viagem. Ou melhor, chegou a uma terra
desconhecida: o Brasil não tinha ainda esse nome. O que então aconteceu,
sabemos hoje através das cartas escritas por Pero Vaz de Caminha - escrivão da
frota - e enviadas ao rei D. Manuel. [...]
O que mais chamou a sua atenção foram os habitantes - para
ele - muito estranhos em seus costumes. No domingo de Páscoa, dia 26 de abril
de 1500, Caminha anotou que esses habitantes - que serão chamados de índios -
viviam "como aves, ou alimárias monteses, às quais o ar faz melhor pena e
melhor cabelo que às mansas, porque seus corpos são tão limpos e tão gordos e
formosos que não pode mais ser. Isso me faz presumir", continua ele,
"que não têm casas nem moradas em que se acolham, e o ar, a que se criam
os faz tais". Esta última suposição foi corrigida no dia seguinte com o
regresso dos degredados - mandados para sondagem -, que trouxeram a notícia de
uma aldeia, a uma légua e meia da costa, com nove ou dez casas compridas "como
esta nau capitânia", escreveu Caminha.
À bela aparência do índio, à sua robustez, de corpo asseado,
saudável, Caminha relacionou imediatamente as aves e alimárias. Ele não
economizou, apesar disso, palavras para mostrar o seu encanto e espanto por
essa vida, surpreendentemente preservada em estado bruto. Como os animais se
degradam no cativeiro, Caminha presumiu que os índios não têm casas para morar.
Portanto, aqueles habitantes foram equiparados aos animais selvagens, criados
em liberdade.
No dia 26 de abril já fazia cinco dias que a armada de
Cabral se encontrava no Brasil. Nesses cinco dias, aos poucos, os contatos com
os índios foram se estreitando. No dia 23, quando se deu o primeiro contato
entre índios e portugueses, houve troca de presentes, mas a distância. Já no
dia seguinte, Afonso Lopes trouxe dois índios a bordo da nau capitânia, em
primeira visita. Na manha de sábado, dia 25, novo encontro para troca de
presentes, mas aí juntaram-se perto de duzentos índios. Nesse mesmo dia, eles
auxiliaram os portugueses trazendo "cabaços de água e tomavam alguns
barris que nós levávamos", disse Caminha. Porém, de parte a parte
permanecia um receio, pois, se traziam a água, não demonstravam ainda total
confiança, como nota Caminha: "não que eles de todo chegassem à borda do
batel. Mas, junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos". Na Páscoa,
três dias depois do primeiro encontro, notou que "como quer que eles um
pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do
cevadouro". No dia 30 ele registra finalmente que os índios "estavam
já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles".
Observando atentamente o modo de vida dos índios, Caminha
concluiu que "eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem
cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que acostumada
seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame [mandioca], que aqui há
muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam".
Enfim, ele não viu indício de que os índios trabalhassem. Aparentemente, eles
não faziam nenhum esforço para se proverem do necessário, pois a natureza era
generosa. Por isso, eram robustos. Não apenas robustos, mas também formosos,
"de bons rostos e bons narizes, bem feitos", observa Caminha. E essa
boa aparência não estava relacionada com trabalho. Não havia trabalho. Não
lavram nem criam, segundo Caminha. Apesar disso, eram numerosos. No dia 27 de
abril, Caminha contou perto de quatrocentos ou quinhentos índios.
Desconhecendo o trabalho árduo ou simplesmente o trabalho,
muito embora numerosos, os índios eram, apesar disso, robustos e bem dispostos.
Sem esforço colhiam e se alimentavam de raízes e ervas, frutos saborosos,
peixes, mariscos, caranguejos, ostras, lagostas e camarões. A impressão de
Caminha era de que os índios viviam em meio à abundância.
De fato, no final do século XVI, Gabriel Soares de Sousa, um
morador do Brasil, falava dos índios como bons caçadores e pescadores, grandes
mergulhadores. No livro que escreveu - Tratado descritivo do Brasil -, não há o
menor indício de que viviam na pobreza ou na miséria.
Essa existência sem trabalho, mas abundante em provisões, só
poderia ser atribuída, afinal, à bondade da terra. Os camarões, por exemplo,
impressionaram Caminha numa refeição: entre eles, disse, "vinha um tão
grande e tão grosso como em nenhum tempo o vi tamanho".
Menos atento aos índios que à natureza, Pero Lopes - que
veio em 1530 ao Brasil, com seu irmão Martim Afonso - escreveu que "em um
dia matávamos 18 mil peixes, entre corvinas e pescadas e enxovas [...] assim
que lançávamos os anzóis na água, não havia demora para recolher os
peixes". Ele afirmou que o pescado daqui era o mais saboroso que havia
experimentado. Dizia que a caça era abundante e havia muito mel.
[...]
A natureza não agride o homem. Ao contrário, parece
favorecê-lo de todas as formas, facilitando a sua existência. Os bons ares não
corrompem, pois "nenhuma carne nem pescado apodrece", afirmou Pero
Lopes. Mesmo no verão, quanto "matávamos veados e trazíamos a carne dez,
doze dias sem sal, não fedia".
Assim, os primeiros portugueses acreditavam que a abundância
da terra era de tal ordem que o homem estava seguro em suas provisões no
presente e, tanto quanto se podia prever, também no futuro. Os mantimentos eram
inesgotáveis. Vivia-se ou se poderia viver, portanto, a folgar. O trabalho era,
simplesmente, desnecessário.
Sobre o clima, Caminha disse que "a terra em si é de
muitos bons ares, assim frios e temperados..." - quer dizer, o clima aqui
era muito ameno. Os que vieram depois dele reforçaram essa visão idealizada: o
clima do Brasil era tal que a natureza por si só preservava a saúde dos homens.
Em dez meses de Brasil, como registrou Américo Vespúcio, "não só nenhum de
nós morreu, mas poucos adoeceram". Opiniões idênticas expuseram Manuel da
Nóbrega, Anchieta, Simão Vasconcelos, Fernão Cardim, Gandavo e outros que aqui
vieram no século XVI.
Esse elogio da temperatura amena é compreensível para os
homens habituados aos rigores do inverno europeu. [...]
Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o paraíso
era insistentemente definido como o lugar em que o frio e o calor não se
extremavam e onde os alimentos não apodreciam facilmente.
De fato, no Brasil, os portugueses pareciam ter descoberto o
paraíso, pois Pero Lopes não falava com admiração que a carne, mesmo no verão,
depois de "doze dias sem sal, não fedia"? Ele parecia estar diante do
paraíso, quando relatou que "a terra é a mais formosa e aprazível que eu
jamais cuidei de ver não havia homem que se fartasse de olhar os campos e a sua
formosura". [...]
[...] E essa visão paradisíaca foi ainda reforçada pela
nudez dos índios. Sem a preocupação de cobrir suas "vergonhas", eles
pareciam ser a imagem perfeita do homem inocente que desconhecia o pecado, como
Adão e Eva antes do fruto proibido. Caminha fala com admiração daquelas
"três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos mui pretos e
compridos pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tinham nenhuma
vergonha". Sobre uma outra, ele dirá que "era tão benfeita e tão
redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres
da nossa terra, vendo-lhe tais feições fizera envergonhar, por não terem a sua
como ela".
[...]
Mas essa idealização paradisíaca não durou muito. À medida
que os portugueses foram se instalando, uma nova visão - desta vez,
depreciativa - começou a ser elaborada. [...]
As cartas de Caminha não continham apenas idealizações. Como
arguto observador, ele percebeu outras importantes peculiaridades da sociedade
indígena. Ele notou que entre os índios "andava um aí que falava muito aos
outros que se afastassem [dos portugueses] mas não que a mim me parecesse que
lhe tinham acatamento ou medo", desconfiando, assim, que entre eles talvez
inexistisse alguém com poder e autoridade no sentido conhecido pelos
portugueses.
Quando na noite de sexta-feira, 24 de abril, dois índios
foram conduzidos por Afonso Lopes à nau capitânia, notou Caminha que os
visitantes "não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão".
Não obstante, Cabral - que era o Capitão - cuidara de se apresentar
impecavelmente, "sentado em sua cadeira, bem vestido, com um colar de ouro
mui grande ao pescoço, e ao pé uma alcatifa por estrado. Sancho Tovar, Simão de
Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele
vamos, sentados no chão, pela alcatifa". "Bem vestido",
"com colar de ouro" e tendo os demais aos seus pés: Caminha esperava
que os visitantes, sensíveis a esse ritual, acabassem por se inclinar ou
reverenciar Pedro Álvares Cabral. Mas a estudada encenação do poder foi em vão.
Os dois não deram atenção especial ao capitão, como Caminha esperava.
Num outro dia, 26 de abril, "o Capitão fez que dois
homens o tomassem ao colo" para atravessar o rio, numa ostensiva
demonstração de autoridade perante os índios ali reunidos e misturados aos
portugueses. Do outro lado da margem, chamou a todos, mas apenas alguns índios
curiosos chegaram até ele, "não porque o reconhecessem por Senhor, pois me
parece que não entendem nem tomam disso conhecimento, mas porque a gente nossa
passava já para aquém do rio", conclui Caminha.
[...]
Na Bahia de Todos os Santos, trinta e um anos depois, exatamente
no dia 13 de março de 1531, Pero Lopes, no entanto, teve uma impressão oposta à
de Caminha: "os principais homens da terra", disse ele, "vieram
fazer obediência ao Capitão", que era Martim Afonso de Sousa. Tal
comportamento, entretanto, fora provavelmente recomendado por Diogo Álvares
Correia - Caramuru -, que, segundo Pero Lopes, vivia há vinte e dois anos entre
eles. Talvez esse "fazer obediência" não significasse mais que gestos
mecânicos e formais que tinham sentido apenas para os portugueses, ângulo pelo
qual preferiu interpretá-los Pero Lopes.
Para Caminha, a própria existência desses
"principais" estava em questão [...]. Se entre os índios houvesse um
chefe investido de poder, Cabral teria com quem dialogar. [...] A ausência
desse centro - ou seja, de um rei ou de outra autoridade - não permitia o
vislumbre de qualquer ordem social humana concebível pelos portugueses. A
aparente pulverização da sociedade indígena foi sentida como algo ameaçador.
Para os portugueses, a agressão, sempre possível, foi percebida como ferocidade
animal, selvagem, muito precariamente contida até ali. Por isso, Caminha não
fala em relações pacíficas com os índios, mas em "amansá-los", pois
pareciam não ter um chefe com suficiente autoridade para assinar acordos e obrigar
os súditos a cumpri-los. "Amansá-los" significava, pois, manter a paz
por meio da iniciativa unilateral dos portugueses.
Entre os índios, portanto, Caminha não conseguiu identificar
nenhum indivíduo provido de autoridade, capaz de representá-los perante o
capitão e falar em nome daquela gente. [...]
Numa carta atribuída a Américo Vespúcio e endereçada a
Francesco de Medici, a sociedade indígena é descrita de maneira muito peculiar.
Segundo Vespúcio, os índios não têm economia porque "não têm bens de propriedade;
porém tudo lhes é comum" e "não há entre eles comerciantes nem
comércio"; não têm política porque "vivem juntos sem rei nem império,
e cada qual é senhor de si". não têm religião nem justiça porque "não
possuem templos nem leis, nem são idólatras"; não têm propriamente
exércitos ou generais porque "guerreiam-se entre si, sem arte nem
ordem"; e, para suprema desordem, não têm família nem casamento porque
"tomam tantas mulheres quantas querem, e o filho se junta com a mãe, e o
irmão com irmã, e o primo com a prima, e o caminhante com a que encontra. Basta
a vontade para matrimoniarem, no que não observam ordem alguma".
Essa visão revela, antes de qualquer coisa, uma profunda
incompreensão dos europeus em relação às sociedades indígenas. Ao contrário do
que diz Vespúcio, elas tinham, sim, uma ordem, mas completamente diferente
daquela que se conhecia nas sociedades europeias do período. [...] O português
Pero de Magalhães Gandavo, sintetizou bem o que os europeus pensavam sobre as
sociedades indígenas. Disse ele que na língua tupi não havia as letras F, L e R
e disso concluiu que era "coisa digna de espanto porque assim não tem Fé,
nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disso
conta, nem peso nem medida". [...] Mas o francês Jean de Léry, que esteve
no Brasil em 1557, ficou admirado com a disciplina em meio à aparente desordem,
ao dizer que os índios "não observam ordem de marcha, nem categoria; os
mais valentes, porém, vão na frente e marcham juntos, parecendo incrível que
tanta gente se possa acomodar espontaneamente e se erguer ao primeiro sinal
para uma nova marcha".
O jesuíta Manuel da Nóbrega escreveu que entre os índios
"os que são amigos vivem em grande concórdia entre si e amam-se muito
[...]. Se um deles mata um peixe, todos comem dele; e o mesmo de qualquer
animal de caça". [...]
Os portugueses perceberam, portanto, que as sociedades
indígenas eram igualitárias: dividiam alimentos entre si, desconheciam a
propriedade privada. Assim, livres da ganância, não brigavam por riquezas. Por
esse motivo, não precisavam de Estado ou governo. Se tinham chefes -
"principais" -, a eles obedeciam por vontade própria, não por
obrigação.
Todavia, essas qualidades aparentemente positivas não
entusiasmaram os portugueses. Pois, se o igualitarismo era, em princípio, uma
coisa boa, a falta de autoridade que disso decorria era condenada como um
defeito muito grave. Por exemplo, os índios "têm muitas mulheres",
escreveu Nóbrega. Por isso, Fernão Cardim, também jesuíta, ficou em dúvida se
havia casamento entre os índios, não só porque aos homens era permitido ter
muitas mulheres, mas também por as "deixarem facilmente por qualquer
arrufo ou desgraça, que entre eles aconteça". Gabriel Soares de Sousa, que
viveu na Bahia no final do século XVI, estranhava, por sua vez, que "os
machos destes tupinambás não são ciosos e, ainda que achem outrem com as
mulheres, não matam ninguém por isso". Em resumo, a união entre homens e
mulheres era instável devido à falta de autoridade dos maridos sobre suas
esposas.
Da mesma forma, os portugueses notaram a inexistência da
autoridade paterna. Os índios, afirma Cardim, "amam os filhos
extraordinariamente [...] e não lhes dão nenhum gênero de castigo [...] [e]
estimam mais fazerem bem aos filhos que a si próprios". [...]
Desse modo, se o marido não exerce sua autoridade sobre a
esposa, e os pais sobre os filhos, não poderia haver ordem familiar, assim como
a ausência de governo provocava a desordem social. Essa era a conclusão dos
portugueses. Passava-se, assim, de uma visão inicial mais simpática para uma
outra, depreciativa e preconceituosa dos índios.
No final do século XVI, os portugueses já tinham feito um
amplo inventário sobre a natureza das sociedades indígenas [...],
KOSHIBA, Luiz. O índio e a
conquista portuguesa. São Paulo: Atual, 2012. p. 7-16.
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