Mercenário sírio
bebendo cerveja junto de sua esposa egípcia e seu filho. Pintura da
XVIIIª dianstia.
No Egito, como na Mesopotâmia, os impostos na forma de grãos
e outras mercadorias eram entregues ao templo e depois redistribuídas com o
propósito de financiar obras públicas. Isso significa que em ambas as
civilizações a cevada e o trigo, e suas formas processadas sólida e líquida -
pão e cerveja - tornaram-se mais do que apenas itens alimentícios básicos: eram
meios convenientes e frequentes de pagamento e moeda. Na Mesopotâmia, registros
em escrita cuneiforme indicam que os membros de posição inferior na força de
trabalho do templo sumério recebiam um sila de cerveja por dia
- aproximadamente equivalente a um litro - como parte de sua ração.
Funcionários iniciantes recebiam dois sila; funcionários mais
elevados e senhoras da corte, três sila; e os funcionários
principais, cinco sila. Grandes quantidades de tigelas de tamanho
idêntico, com molduras chanfradas, encontradas em sítios sumérios, parecem ter
sido usadas como unidades padronizadas de medida. Os funcionários importantes
recebiam mais cerveja não porque bebessem mais: tendo bebido sua quantidade
regular, ficavam com sobras para gratificar mensageiros e escribas e pagar
outros trabalhadores. Os líquidos, facilmente divisíveis, representavam formas
ideais de dinheiro.
Documentos posteriores, do reino de Sargão - um de uma série
de reis da região vizinha de Acad que uniram e governaram as cidades-Estados
rivais da Suméria a partir de 2350 a.C. -, referem-se à cerveja como
parte do "preço da noiva" (um pagamento feito pela família do noivo
para a da noiva por ocasião do casamento). Outros registros indicam que a
cerveja era dada em pagamento a mulheres e crianças, por alguns dias de
trabalho no templo: as mulheres recebiam dois sila, e as crianças,
um sila. De modo semelhante, documentos revelam que mulheres e
crianças refugiadas, que podem ter sido escravos ou prisioneiros de guerra,
recebiam rações mensais de cerveja de 20 sila para as mulheres
e de 10 sila para as crianças. Soldados, policiais e escribas
também recebiam pagamentos especiais em cerveja em ocasiões específicas, e
mensageiros a recebiam como gratificações. Um documento de 1035
a.C. é uma lista de provisões pagas a mensageiros oficiais na cidade de
Umma. Vários montantes de cerveja "excelente", cerveja
"comum", alho, óleo de cozinha e temperos foram entregues a
mensageiros [...]. Naquele momento, o Estado sumério empregava 300 mil pessoas,
sendo que todas recebiam lotes racionados mensais de cevada e lotes anuais de
lã, ou o montante equivalente de outras mercadorias: pão ou cerveja em vez de
cevada, e panos ou roupas em vez de lã. E cada transação era anotada
metodicamente nas indestrutíveis tabuletas de escrita cuneiforme pelos
contadores da Mesopotâmia.
O que é sem dúvida alguma o exemplo mais espetacular do uso
da cerveja como forma de pagamento pode ser visto no planalto de Gizé, no
Egito. Os trabalhadores que construíram as pirâmides eram pagos assim, de
acordo com registros encontrados numa vila próxima aos locais onde os operários
comiam e dormiam. Os registros indicam que, no momento da construção das
pirâmides, em torno de 2500 a.C., o lote padronizado para um trabalhador
era de três ou quatro bolos de pão e duas canecas contendo cerca de quatro
litros de cerveja. Gerentes e funcionários recebiam maiores quantidades das
duas coisas. Não é de espantar que, segundo alguns antigos desenhos grafitados,
uma equipe de trabalhadores da terceira pirâmide de Gizé, construída para o rei
Miquerinos, tenha intitulado a si mesma como "os beberrões de
Miquerinos". Registros escritos de pagamentos para os trabalhadores na
construção mostram que as pirâmides foram construídas por empregados do Estado,
em vez de um exército de escravos, como já se pensou. Uma teoria é a de que as
pirâmides tenham sido erguidas por fazendeiros durante a estação das cheias,
quando seus campos ficavam debaixo d'água. O Estado coletava grãos como
impostos e então os redistribuía como pagamentos; o trabalho de construção
infundia um sentido de unidade nacional, demonstrava a riqueza e o poder do
Estado e dava uma justificativa para a taxação.
O uso do pão e da cerveja como meios de pagamentos ou moeda
significava que tinham se tornado sinônimo de prosperidade e bem-estar. Os
antigos egípcios identificavam-nos tão proximamente com as necessidades da vida
que a expressão "pão e cerveja" queria dizer sustento em geral; os
seus hieróglifos combinados formavam o símbolo para alimentação. "Pão e
cerveja" era também usado como um cumprimento diário, como desejando a
alguém boa sorte ou boa saúde. Uma inscrição egípcia encoraja as mulheres a
fornecerem a seus filhos em idade escolar duas jarras de cerveja e três
pequenos pedaços de pão diariamente, a fim de assegurar seu desenvolvimento saudável.
Analogamente, a expressão "pão e cerveja" era usada pelos
mesopotâmicos em lugar de "comida e bebida", e uma palavra suméria
para banquete significa literalmente "o lugar da cerveja e do pão".
A cerveja também tinha um vínculo mais direto com a saúde,
pois tanto mesopotâmicos como egípcios usavam-na medicinalmente. Uma tabuleta
de escrita cuneiforme da cidade suméria de Nippur, datada de cerca de 2100
a.C., contém uma farmacopéia ou lista de receitas médicas baseadas na cerveja.
É o registro mais antigo que ainda sobrevive do emprego do álcool na medicina.
No Egito, o uso da cerveja como sedativo moderado foi reconhecido, e foi também
a base para várias preparações medicinais de ervas e especiarias. Naturalmente,
a cerveja era menos sujeita a ser contaminada do que a água, por ser feita com
água fervida, e havia também a vantagem de que alguns ingredientes se
dissolviam nela mais facilmente. O "Papiro de Ebers", um texto médico
egípcio datado de cerca de 1550 a.C., mas evidentemente baseado em documentos
bem mais antigos, contém centenas de receitas para remédios à base de ervas,
muitas das quais envolvem a cerveja. Por exemplo: dizia-se que metade de uma
cebola misturada com cerveja espumada curava prisão de ventre, enquanto
azeitonas salpicadas misturadas com cerveja curavam indigestão; uma mistura de
açafrão e cerveja massageada na barriga de uma mulher era a prescrição para
dores do parto.
Os egípcios também acreditavam que seu bem-estar na vida
após a morte dependia de ter uma oferta adequada de cerveja e pão. A oferenda
funerária padronizada consistia em pão, cerveja, bois, gansos, tecido e natrão,
um agente purificador. Em alguns textos funerários egípcios, promete-se ao
falecido uma "cerveja que não venha a azedar" - assinalando tanto o
desejo de se continuar bebendo cerveja eternamente quanto a dificuldade de
armazená-la. Cenas e modelos de preparo de cerveja e de pão têm sido
encontrados em túmulos egípcios junto com jarros da bebida (há muito evaporada)
e com equipamento para prepará-la. Peneiras especiais para se fazer cerveja
foram encontradas no túmulo de Tutancâmon [...]. Cidadãos comuns colocados em
sepulturas simples e rasas também eram enterrados com pequenas jarras da
bebida.
A cerveja frequentou as vidas dos egípcios e mesopotâmicos desde
o berço até a sepultura. O entusiasmo pela bebida era quase inevitável, uma vez
que o surgimento das sociedades complexas, a necessidade de manter registros
escritos e a popularidade da cerveja, tudo resultou do excedente de grãos. Como
o Crescente Fértil tinha as melhores condições climáticas para o cultivo de
grãos, foi lá que a agricultura começou, as primeiras civilizações despontaram,
a escrita surgiu, e era lá que a cerveja era mais abundante.
Embora nem a cerveja mesopotâmica nem a egípcia contivessem
o lúpulo, que só se tornou um ingrediente padronizado nos tempos medievais,
tanto a bebida quanto alguns dos hábitos a ela relacionados seriam ainda
reconhecíveis hoje em dia para os apreciadores de cerveja, milhares de anos
mais tarde. Embora ela não seja mais usada como forma de pagamento e as pessoas
não mais se cumprimentem umas às outras com a expressão "pão e
cerveja", na maior parte do mundo a cerveja é considerada a bebida básica
do homem trabalhador. Brindar à saúde de alguém antes de tomar cerveja é um
vestígio da crença antiga em suas propriedades mágicas. E sua forte associação
com uma interação social amigável e despretensiosa permanece imutável: é uma
bebida feita para ser compartilhada. Seja em aldeias da Idade da Pedra, salas
de banquete da Mesopotâmia ou bares e restaurantes modernos, a cerveja vem
congregando e reunindo as pessoas desde a aurora da civilização.
STANDAGE, Tom. História do mundo em 6 copos. Rio
de Janeiro: Zahar, 2005. p. 35-38.
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