Pesquisa arqueológica em Bet Shemesh, Jerusalém, Israel
O poeta alemão Goethe descreveu, em 1788, com as seguintes
palavras, os sentimentos que experimentara quando da sua primeira visita à
Roma:
Também as antiguidades romanas começaram a me agradar. História,
inscrições, museus, dos quais antes nada queria saber, tudo se abria diante de
mim. O que se passara comigo quanto à história natural, aconteceu também aqui,
pois neste lugar condensava-se toda a história do mundo e, desde o dia que fui
para Roma, contei um segundo nascimento, um verdadeiro renascimento.
As impressões de Goethe ressaltam que a constituição de uma
identidade depende da preservação de lugares com suas evocações à nossa
memória, sendo o caso de Roma muito claro, com seus tantos monumentos de fama
internacional: diante de tais monumentos o poeta acabou desenvolvendo uma
admiração por aquela antiga civilização e reconhecendo-se, como ser humano,
herdeiro das realizações daqueles antepassados. [...]
Embora os documentos escritos se prestem a essa reconstrução
histórica, sua pouca acessibilidade confere-lhes uma significação
consideravelmente menor do que a cultura material, cuja presença física atinge
diretamente os membros da sociedade. Na concepção do arqueólogo [...]
Karl-Heinz Otto, a arqueologia - ao resgatar os vestígios materiais das pessoas
comuns, não apenas das elites, que monopolizaram os documentos escritos por
milênios - permite ao cidadão "avaliar o papel dos homens comuns, o papel
das massas populares, como agentes e forjadores da história".
O reconhecimento da significação político-ideológica da
arqueologia não se restringe a apenas alguns grupos ou tendências. Em fins da
década de 1970, um arqueólogo britânico [...], Grahame Clark, considerava que a
arqueologia "apresenta questões mais radicais do que aquelas comumente
posta pela ciência política ou pela sociologia, pois elas são colocadas numa
perspectiva mais ampla", ao tratar das pessoas comuns, dos indígenas, sob
uma perspectiva menos enviesada do que a prevalecente nas fontes escritas. Essa
abordagem mais ampla da arqueologia engloba toda a história da humanidade [...]
assim como permite um acesso ao conhecimento da vida e da história da imensa
maioria de analfabetos de todos os tempos.
Qual a relação entre arqueologia, em geral percebida como
uma ciência neutra, e a política, ou seja, a esfera das relações de poder? A
arqueologia é sempre política, responde a necessidades político-ideológicas dos
grupos em conflito nas sociedades contemporâneas. Como afirmou o arqueólogo
britânico Clive Gable:
A arqueologia surgiu, de forma gradual, nos últimos
duzentos anos como o estudo sistemático do passado. [...] A força motora foi a
nova ordem política, social e econômica da Revolução Industrial, primeiro na
Europa e depois na América do Norte. Uma reação à arqueologia imperialista foi
a fundação do Congresso Mundial de arqueologia, em 1986 e a inovadora série de
livros One World Archeology. [...]
[...]
A ligação entre arqueologia e política apresenta-se,
contudo, sempre mediatizada. Não se trata apenas de justificar certas relações
de poder, ou de fortalecer certas ideologias, mas de legitimá-las pela presença
de testemunhos materiais que dêem sustentação científica a essas pretensões.
[...]
A criação e a valorização de uma identidade nacional ou
cultural relacionam-se, muitas vezes, com a arqueologia. Neste caso, predominam
com frequência os interesses dos grupos dominantes mediados pela ação do
Estado. Assim, por exemplo, a importância ideológica da arqueologia em Israel,
bem como a grande participação de voluntários nas escavações e na preservação e
exibição do material arqueológico, explica-se pela busca de identidade entre o
atual Estado judeu e a antiga ocupação hebraica da Palestina.
A primazia cronológica da entrada dos judeus na região em
relação aos filisteus serve como potente justificativa de sua reocupação pelos
primeiros. [...]
[...]
A exploração e a valorização dos territórios nacionais
implicam, também, um relacionamento particular entre a arqueologia, a sociedade
e os grupos no poder. Trata-se, em geral, da incorporação de monumentos e
objetos numa prática de valorização e transformação econômica da paisagem.
[...]
[...]
[...] Um dos objetivos da New Archeology americana
era, explicitamente, estudar modos de domínio da natureza por parte dos antigos
habitantes indígenas, para permitir a utilização desse conhecimento no
planejamento da futura exploração econômica das regiões estudadas pelos
arqueólogos, na forma da implantação de indústria ou agricultura mecanizada
capitalista.
De maneira geral, a arqueologia tem privilegiado os
artefatos dos segmentos dominantes das sociedades estudadas como objetos
admiráveis, justamente, pelo seu caráter elitista. [...] Pode-se, contudo,
estudar a cultura material tanto de exploradores como de explorados, os objetos
únicos e aqueles feitos em série.
[...]
[...] A partir da descolonização, a apropriação dos
vestígios arqueológicos passou a ocorrer por mecanismos econômicos. Assim, com
a expansão dos mercados de peças arqueológicas, a saída - em geral ilegal - de
objetos da "periferia", países subdesenvolvidos, para o
"centro", países desenvolvidos, efetua-se, primordialmente, pela
venda das peças no mercado internacional. Isso significa que, à expropriação do
período colonial, seguiu-se uma nova fase na qual a transferência do patrimônio
arqueológico adquiriu, via mercado, uma capa de legalidade.
A arqueologia pode, contudo, ser usada por grupos
subalternos na luta por seus direitos ou para criticar as injustiças e
opressões sociais. Dois exemplos vêm logo à mente: a arqueologia preocupada com
as relações de gênero e a que trata das relações étnicas e raciais com
propostas claramente anti-racistas. [...]
Assim, por exemplo, estudos têm permitido mostrar como a
cultura material ligada às mulheres, no mundo industrializado, foi usada para a
liberação feminina. A pletora de máquinas domésticas, da lava-roupas à
batedeira, nessa concepção, foi imprescindível para que as mulheres pudessem
entrar no mercado de trabalho e adquirir, em poucas décadas, destaque e, mais
importante, independência econômica. A relação entre homens e mulheres [...]
foi, portanto, resultado, em parte ao menos, da cultura material voltada à
satisfação das mulheres.
[...]
Outro bom exemplo de uso político do estudo da cultura
material relaciona-se à luta contra o racismo e a opressão étnica. Assim, por
exemplo, a defesa dos direitos de indígenas e afro-descendentes, nos Estados
Unidos e alhures, tem contado com a concorrência da arqueologia preocupada com
a valorização desses grupos étnicos. A arqueologia, também, tem mostrado como
todas as sociedades do passado foram [...] resultado de fusão cultural, com
mistura biológica e de costumes, desmistificando a própria noção de
"pureza étnica". Enfim, todos somos beneficiários dessa arqueologia
humanista, que visa combater as opressões.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo:
Contexto, 2010. p. 99-106.
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