Afresco do início do século XV mostrando guerreiros em um momento de descanso, divertindo-se com gamão, damas, cartas e vinho: os jogos em geral não eram bem vistos pela Igreja.
O missal são os dados, pois como vês, o dado tem vinte e um pontos, da mesma forma que o missal cristão é composto pelas vinte e uma letras do alfabeto. As letras do missal do diabo estão gastas. As letras são do esterco do diabo, pois a tinta é o seu esterco. Breviários do diabo são as cartas e os naibi. E os cachos da mulher são os naibi pequenos. O padre é quem joga. Sabes que os breviários têm iluminuras; assim como os naibi. Os naipes são paus, coisa de loucos; copas, coisa de bêbados e taberneiros; outros, coisa de avaros; espadas, coisas de disputas, brigas e assassinatos. As cartas iluminadas são: rei, rei dos ribaldos; rainha, rainha das ribaldas; em cima, sodomita; embaixo, luxúria.
Bernardino distingue as cartas dos naibi, isto é, as cartas de tipo corrente das cartas decoradas à mão: pensa nas cartas de tipo "latino" com paus, copas, ouros e espadas e, como usualmente o louco ou o doido é representado com uma maça de madeira na mão - basta pensar na Stultitia de Giotto, na capela de Scrovegni de Verona -, diz: "paus, coisa de loucos"; os outros signos servem para caracterizar três tipos distintos de pecadores. A representação realista do corpo de guarda do castelo de Issogne, no vale de Aosta, nos afrescos das lunetas do portão, do início do século XV, mostra os guerreiros em um momento de descanso, e seus passatempos parecem realmente dar razão a são Bernardino: uns jogam gamão, outros damas, outros cartas, o excesso de vinho já deixou desembainhada a espada e o jovem no meio do grupo certamente não é uma moça de família.
Mas voltemos ao nosso pregador: Bernardino, continuando a sua missa "figurada", passa para os reis e rainhas, que se transformam em chefes de malfeitores. Mais precisamente, na Baixa Idade Média, os "ribaldos", que hoje seriam chamados de vagabundos, constituem uma categoria jurídica precisa: gente sem moradia fixa e sem fonte de renda certa. Entre eles figuravam, sobretudo, os jogadores, os exploradores de prostitutas, os mendigos, os menestréis e os saltimbancos.
Bernardino tem em mira também os sodomitas, uma categoria contra a qual se volta de modo particular em todos os sermões, evocada nas cartas pelas duas figuras idênticas e conjuntas, uma de cabeça para cima, outra de cabeça para baixo: serve, aliás, para se referir seja à luxúria em geral, seja à sodomia em particular.
Bernardino prossegue seu sermão com um contraponto minucioso entre as diversas fases da missa - naquele tempo o sacerdote oficiava em latim - e os momentos do jogo:
Introibo quando diz: "Vamos jogar?" Responde o clérigo: "Pois sim." Kyrie eleison: cada um pega o seu dinheiro. Gloria in excelsius Deo: eles dão glórias ao diabo e blasfemam a Deus. Dominus vobiscum: imundo. Es cum spiritu tuo: zara [de certo jogo de dados]. São Jerônimo indicou que este zaro é Lúcifer. Oremus, a oração são os suspiros por ter perdido. A pistola [Epístola]: estão tão ébrios que deixariam de comer para jogar. Sequentia sancti Evangeli: perco. Gloria tibi Domine: venço. Credo in unum Deum: quando, para vencer, engenham-se para ter o cabresto do enforcado. A oferta é a pátena, a aposta que fazes, a hóstia é o grande branco [o dinheiro de prata]. O cálice é o copo de vinho; a Segeta é a ira que te rói de raiva; o prefácio é quando lamentas ter perdido, dizendo: "ai de mim". O consecrare é quem transforma os teus dinheiros em seus ...Dominus vobiscum: fizeste mal enquanto pudeste. Et cum spiritu tuo: fizeste quem jogou contigo fazê-lo também. Ite missa est: agora que vês que cometesse todo tipo de mal e cais em desespero. Deo gratias: pões em ação o desespero e muitas vezes matas a ti mesmo. E o Evangelho confirma que depois de fazer mal do lado de cá, terás pena eterna do lado de lá.
Apesar das variadas hipóteses formuladas, não se sabe com exatidão qual é a origem dos jogos de cartas: é fato que foram uma autêntica inovação entre os divertimentos do homem medieval e que surgiram, com certeza, na Europa do último quarto do século XIV. Raríssimos foram os exemplares que chegaram até nós, devido à sua fragilidade e porque não foram feitos para serem guardados.
Desde o surgimento dos baralhos, os reis da França interessaram-se muito por sua fabricação, com vistas a obter rendimentos fiscais do jogo. O controle monárquico sobre esse tipo de jogo encontra seu eco na visão da sociedade fortemente hierarquizada que as cartas apresentam, onde o soberano é a figura dominante.
Os raros baralhos conservados pertenceram às grandes famílias da aristocracia, os Visconti, os Sforza, os Estensi. São, na realidade, cartas de tarô: às cartas normais de jogo foram acrescentadas mais vinte e duas, chamadas "atout" ou "arcanos", representando os diversos símbolos ou estados do mundo: o Papa ou a Papisa (Joana), a Morte, o Juízo Universal, a Força, o Enforcado, e assim por diante. O conjunto conservado na Biblioteca Nacional de Paris e conhecido como "tarô de Carlos VI" (1368-1422) foi produzido, na verdade, no final do século XV e na Itália. Um outro baralho famoso por estar quase completo e pela preciosidade de sua execução (fundo de ouro, toques de prata nas armaduras e vestimentas) é o baralho "dos Visconti", infelizmente subdividido entre a Academia Carrara de Bérgamo e a Pierpont Morgan Library de Nova York: foi feito entre 1441 (que é a data do casamento de Francesco Sforza com Bianca Visconti, filha de Filippo Maria, duque de Milão) e 1447, ano da morte do duque. Naturalmente, baralhos e tarôs podiam ser de feitura bem mais modesta, simples litogravuras coloridas posteriormente.
Nascido como passatempo da Corte, para gente rica e afortunada - na lenda, teria sido proposto a Carlos VI para amenizar sua loucura -, o tarô tornou-se, a partir do século XVIII até os nossos dias, interlocutor e consolo para a pobre gente ansiosa por conhecer o próprio destino, na esperança de um futuro melhor, confiante no caráter e no poder divinatório das cartas, com grande desperdício de dinheiro e para grande satisfação dos magos e adivinhos que o embolsam.
FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras invenções geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 65-69.
Mas voltemos ao nosso pregador: Bernardino, continuando a sua missa "figurada", passa para os reis e rainhas, que se transformam em chefes de malfeitores. Mais precisamente, na Baixa Idade Média, os "ribaldos", que hoje seriam chamados de vagabundos, constituem uma categoria jurídica precisa: gente sem moradia fixa e sem fonte de renda certa. Entre eles figuravam, sobretudo, os jogadores, os exploradores de prostitutas, os mendigos, os menestréis e os saltimbancos.
Bernardino tem em mira também os sodomitas, uma categoria contra a qual se volta de modo particular em todos os sermões, evocada nas cartas pelas duas figuras idênticas e conjuntas, uma de cabeça para cima, outra de cabeça para baixo: serve, aliás, para se referir seja à luxúria em geral, seja à sodomia em particular.
Bernardino prossegue seu sermão com um contraponto minucioso entre as diversas fases da missa - naquele tempo o sacerdote oficiava em latim - e os momentos do jogo:
Introibo quando diz: "Vamos jogar?" Responde o clérigo: "Pois sim." Kyrie eleison: cada um pega o seu dinheiro. Gloria in excelsius Deo: eles dão glórias ao diabo e blasfemam a Deus. Dominus vobiscum: imundo. Es cum spiritu tuo: zara [de certo jogo de dados]. São Jerônimo indicou que este zaro é Lúcifer. Oremus, a oração são os suspiros por ter perdido. A pistola [Epístola]: estão tão ébrios que deixariam de comer para jogar. Sequentia sancti Evangeli: perco. Gloria tibi Domine: venço. Credo in unum Deum: quando, para vencer, engenham-se para ter o cabresto do enforcado. A oferta é a pátena, a aposta que fazes, a hóstia é o grande branco [o dinheiro de prata]. O cálice é o copo de vinho; a Segeta é a ira que te rói de raiva; o prefácio é quando lamentas ter perdido, dizendo: "ai de mim". O consecrare é quem transforma os teus dinheiros em seus ...Dominus vobiscum: fizeste mal enquanto pudeste. Et cum spiritu tuo: fizeste quem jogou contigo fazê-lo também. Ite missa est: agora que vês que cometesse todo tipo de mal e cais em desespero. Deo gratias: pões em ação o desespero e muitas vezes matas a ti mesmo. E o Evangelho confirma que depois de fazer mal do lado de cá, terás pena eterna do lado de lá.
Apesar das variadas hipóteses formuladas, não se sabe com exatidão qual é a origem dos jogos de cartas: é fato que foram uma autêntica inovação entre os divertimentos do homem medieval e que surgiram, com certeza, na Europa do último quarto do século XIV. Raríssimos foram os exemplares que chegaram até nós, devido à sua fragilidade e porque não foram feitos para serem guardados.
Desde o surgimento dos baralhos, os reis da França interessaram-se muito por sua fabricação, com vistas a obter rendimentos fiscais do jogo. O controle monárquico sobre esse tipo de jogo encontra seu eco na visão da sociedade fortemente hierarquizada que as cartas apresentam, onde o soberano é a figura dominante.
Os raros baralhos conservados pertenceram às grandes famílias da aristocracia, os Visconti, os Sforza, os Estensi. São, na realidade, cartas de tarô: às cartas normais de jogo foram acrescentadas mais vinte e duas, chamadas "atout" ou "arcanos", representando os diversos símbolos ou estados do mundo: o Papa ou a Papisa (Joana), a Morte, o Juízo Universal, a Força, o Enforcado, e assim por diante. O conjunto conservado na Biblioteca Nacional de Paris e conhecido como "tarô de Carlos VI" (1368-1422) foi produzido, na verdade, no final do século XV e na Itália. Um outro baralho famoso por estar quase completo e pela preciosidade de sua execução (fundo de ouro, toques de prata nas armaduras e vestimentas) é o baralho "dos Visconti", infelizmente subdividido entre a Academia Carrara de Bérgamo e a Pierpont Morgan Library de Nova York: foi feito entre 1441 (que é a data do casamento de Francesco Sforza com Bianca Visconti, filha de Filippo Maria, duque de Milão) e 1447, ano da morte do duque. Naturalmente, baralhos e tarôs podiam ser de feitura bem mais modesta, simples litogravuras coloridas posteriormente.
O enforcado do chamado "tarô de Carlos VI", do final do século XV: um dos raros baralhos medievais conservados.
Nascido como passatempo da Corte, para gente rica e afortunada - na lenda, teria sido proposto a Carlos VI para amenizar sua loucura -, o tarô tornou-se, a partir do século XVIII até os nossos dias, interlocutor e consolo para a pobre gente ansiosa por conhecer o próprio destino, na esperança de um futuro melhor, confiante no caráter e no poder divinatório das cartas, com grande desperdício de dinheiro e para grande satisfação dos magos e adivinhos que o embolsam.
FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras invenções geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 65-69.
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