Pesando o coração. Livro dos mortos. Tumba de Ani.
Em linhas gerais, o pensamento dos antigos egípcios aparece marcado, em primeiro lugar, por seu caráter pré-filosófico e mítico. Note-se que isto não significa que tenha sido um pensamento pré-lógico; quer dizer, simplesmente, que a abstração, a generalização e os jogos mentais "puros" não constituíam suas características centrais. O raciocínio egípcio se baseava na acumulação de exemplos concretos, não em teorias gerais. Estava, outrossim, engajado no esforço de preservar a estrutura político-social vigente e a ordem cósmica, através de uma ética e de observâncias rituais adequadas; ou em fornecer, pragmaticamente, regras ou receitas funcionais às diversas atividades. O mito explicava o mundo descrevendo, em cada caso, como algum fato supostamente se dera pela primeira vez num longínquo passado. Um sentido cíclico do tempo e do universo fazia com que tal ocorrência primordial continuasse tendo vigência e atualidade; o conhecimento (mítico) do passado das coisas permitiria, pois, entender o seu desenrolar atual e futuro.
Dissemos que o pensamento egípcio estava interessado na preservação do estado de coisas: era, assim, conservador e conformista em forma predominante (quando não abertamente oportunista, ao legitimar a ânsia de agradar aos poderosos). Isto se liga, em primeiro lugar, à estabilidade estrutural básica - através de múltiplas mudanças - que caracterizou [...] a civilização faraônica através dos milênios. Tal fato reforçava a convicção de existir uma ordem necessária, legítima e desejável no mundo e na sociedade. Em segundo lugar, é evidente que a minoria de letrados, que nos deixou as únicas fontes escritas disponíveis para o estudo das opiniões e ideias do antigo Egito, estava direta ou indiretamente comprometida com o Estado faraônico. Monarcas, sacerdotes, escribas, funcionários e militares acreditavam que, no princípio da história, os deuses haviam reinado pessoalmente neste mundo, sendo o rei-deus o seu legítimo herdeiro e sucessor: a ordem cósmica e político-social, encarnada na deusa Maat (justiça-verdade ou norma justa do mundo), tinha pois uma base sagrada, tal como o respeito pelas opiniões dos antepassados.
Continuando com as características centrais do pensamento egípcio, mencionemos agora um princípio que o caracteriza, discernível em todas as manifestações religiosas, cosmogônicas e de outros tipos, e que se convencionou chamar de diversidade de aproximações. A um homem de hoje pode parecer incoerente e contraditório que o céu pudesse ser descrito como uma vaca, como uma mulher, e ainda como um rio no qual navega o barco do Sol. Ou que Osíris - deus ligado à ideia do renascer, daquilo que morre e volta a despertar - fosse associado ao mesmo tempo a coisas tão diferentes quanto a cheia do Nilo, que decorreria dos humores que fluem de seu cadáver (em outra versão, aliás, ela seria provocada por outro deus, Khnum, residente na primeira catarata), o grão que é enterrado e germina, a Lua com suas fases, e finalmente o Sol noturno que atravessa o mundo subterrâneo; sem que, por outro lado, Osíris pudesse esgotar qualquer destes fenômenos, que em outros de seus aspectos eram associados a deuses e mitos diferentes. Um egípcio antigo, porém, tratava de esgotar tantos aspectos quanto pudesse de cada fato do mundo visível ou divino, através da justaposição de imagens variadas mas, para ele, complementares - outras tantas aproximações possíveis a uma realidade complexa e talvez inefável ou inesgotável - e não contraditórias ou excludentes. No que para nós pode parecer um amontoado de absurdos e contradições, o raciocínio teológico, por exemplo, tratou de conciliar diferentes tradições paralelas, divergentes entre si, mas todas consideradas igualmente sagradas, através de assimilações, sincretismos e outros recursos. O universo era visto como o domínio de forças que se podem manifestar em formas diversas, todas igualmente válidas. Por que, então, se espantaria um egípcio de que a deusa Hathor se manifestasse sucessivamente como uma vaca, uma mulher, uma serpente, uma leoa, uma chama ou através de uma árvore? Ou de afirmações como a de ser Ra a face de Amon e Ptah o corpo deste, sem que por isto Ra e Ptah deixassem de ser também deuses distintos?
Por fim, os egípcios professavam uma crença no poder criador da palavra e, por extensão, das imagens, dos gestos e dos símbolos em geral, que se articulava com a possibilidade de coagir os deuses e o cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de Mênfis, numa das versões do mito da criação do mundo, gerou deuses simplesmente pronunciando os respectivos nomes. O raciocínio mítico muitas vezes funcionava através de trocadilhos, pois ao ter a palavra poder criador, as coisas designadas por termos homófonos ou de pronúncia semelhante se equivalem - já que o nome é a coisa. Por exemplo, dizia-se que Ra, chorando (rem), criou os homens (romé) e os peixes (ramu). A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas variadas de ações mágicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade, podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais, gesticulação ritual, textos, desenhos... A representação do rei, nos relevos dos templos, dominando os inimigos do Egito, garantiria a segurança do país através da constante vitória sobre tais inimigos. Se um dado rito exigia o sacrifício de um hipopótamo - ação bastante incômoda e complicada -, quebrar uma estatueta de hipopótamo magicamente consagrada surtiria o mesmo efeito. Se os encarregados do culto funerário se descuidassem do oferecimento de vitualhas ao morto, a representação pictórica de pães e outros alimentos nas paredes da tumba teria efeito equivalente. E assim por diante.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 83-87.
Por fim, os egípcios professavam uma crença no poder criador da palavra e, por extensão, das imagens, dos gestos e dos símbolos em geral, que se articulava com a possibilidade de coagir os deuses e o cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de Mênfis, numa das versões do mito da criação do mundo, gerou deuses simplesmente pronunciando os respectivos nomes. O raciocínio mítico muitas vezes funcionava através de trocadilhos, pois ao ter a palavra poder criador, as coisas designadas por termos homófonos ou de pronúncia semelhante se equivalem - já que o nome é a coisa. Por exemplo, dizia-se que Ra, chorando (rem), criou os homens (romé) e os peixes (ramu). A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas variadas de ações mágicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade, podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais, gesticulação ritual, textos, desenhos... A representação do rei, nos relevos dos templos, dominando os inimigos do Egito, garantiria a segurança do país através da constante vitória sobre tais inimigos. Se um dado rito exigia o sacrifício de um hipopótamo - ação bastante incômoda e complicada -, quebrar uma estatueta de hipopótamo magicamente consagrada surtiria o mesmo efeito. Se os encarregados do culto funerário se descuidassem do oferecimento de vitualhas ao morto, a representação pictórica de pães e outros alimentos nas paredes da tumba teria efeito equivalente. E assim por diante.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 83-87.
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