Representação do desembarque de Colombo em Guanahani inspirada no relato de Bartolomé de Las Casas
O cristianismo medieval deu base às doutrinas legitimadoras sobre a conduta para com os infiéis, o direito de escravizá-los, a responsabilidade religiosa assumida diante deles pelos cristãos. Essa doutrina terá seus opositores, será discutida e inclusive, recusada em vários aspectos. Mas em seu nome legitimou-se uma prática, uma conduta que arrasou com os povos pré-colombianos.
Diz a Bíblia (Efésios 6, 5-9): "Escravos, obedecei a vossos senhores temporais com temor e tremor, de coração sincero, como ao Senhor... Sabeis que cada um, escravo ou livre, receberá do Senhor a recompensa por todo bem que praticar..."
A mensagem cristã tradicional aceita a escravidão, exige a submissão ao amo temporal e estabelece uma igualdade dos indivíduos diante de Deus. No entanto, que recompensa receberá o escravo por todo o bem que pratica, sendo que sua própria condição reduz a nada as possibilidades de fazer o bem? Ou será que fazer o bem é obedecer mansamente ao amo temporal?
Deus não faz distinção entre as pessoas, prossegue mais adiante a frase citada. Mas, quem é objeto dessa distinção ou discriminação poderia responder: Deus permite que os homens as façam. Logo, a escravidão é aceitável.
Os chamados Pais da Igreja, doutrinários cristãos que escreveram até o século VII, decidiram que a raiz da escravidão está no pecado. Essa ideia ficou definitivamente incorporada à teologia católica. Tomás de Aquino a manteve: quando um sujeito é dominado, a culpa reside nele. Existem homens de menor valor que outros, para os quais a coação e a violência deverá ser usada: são os escravos natos. Os povos que Tomás de Aquino chama inferiores são os primitivos, que não conhecem a Escritura e o direito escrito; daí viverem na imbecilidade e praticarem costumes animalescos.
Os próprios cristãos podiam ser reduzidos à escravidão? Em alguns casos sim. O direito eclesiástico aceitava que se tornassem escravos aqueles que vendessem armas aos sarracenos ou exercessem a pirataria. Mulheres e filhos de sacerdotes também podiam ser escravizados.
Mas, para nosso objetivo, lembramos que os prisioneiros de guerra pagãos, capturados na "guerra justa", eram os perfeitos candidatos à escravidão. Somente pelo fato de ser pagão o indivíduo já era passível de ser escravo; se ele então enfrentasse os cristãos com armas, era escravo duas vezes: por ser pagão e por ser ousado. Os teólogos do século XVI confirmam esta opinião. Mas, eclesiásticos como o dominicano Bartolomeu Carranza (1503-1576), arcebispo de Toledo, declarará em 1540 que os escravos maltratados têm direito à fuga, ainda que seus senhores sejam cristãos.
Na Bíblia está implícita a ideia da responsabilidade religiosa do amo cristão para com seu escravo pagão: deverá introduzi-lo na religião verdadeira. É possível que esteja aí a origem remota de uma instituição que os espanhóis chamaram encomienda. Na América, o Estado delegava aos senhores cristãos a responsabilidade de cuidar do bem-estar material e espiritual dos índios. Estes, para salvar suas almas, devem trabalhar nas terras e minas do senhor, que fornecerá o necessário para catequizá-los. Legalmente, os índios entregues ao cuidado de determinados indivíduos não eram servos da gleba; não obstante, criou-se uma dependência pessoal, por mais que a coroa cuidou que os nativos continuassem vivendo nos seus povoados originais, ou naqueles criados expressamente para mantê-los agrupados e sob controle.
Um decreto de 20 de dezembro de 1503, assinado pela rainha Isabel de Castela, afirma saber que os índios abusam da ampla liberdade que lhes foi concedida, não comparecendo ao trabalho e à escola e preferindo levar vida de vagabundos. Em consequência, para evitar o prolongamento destes males, os nativos deverão viver em comum com os cristãos, em outras palavras: serão "encomendados".
Em 1512, o predicador da corte, licenciado Gregório, qualificava a encomienda como "escravidão qualificada", ou o mais apropriado sistema para os nativos do Novo Mundo, para os quais "a liberdade completa só haveria de prejudicar". Frei Bartolomeu de Las Casas se opôs com veemência a essa concepção: a encomenda era contrária ao direito divino e à razão natural; um sistema que implicava em sentença de morte para os povos indígenas.
Os dominicanos aceitaram a subordinação dos nativos aos conquistadores e que fossem transferidos através da herança. Supunha-se que o interesse dos amos residia em preservar os encomendados como força de trabalho. A experiência ensinava que os índios não sabiam viver em liberdade, e ela representava o caminho de seu aniquilamento. A pergunta é pertinente: a liberdade de que gozavam antes da conquista os aniquilou? A resposta salta a olhos vistos: de 80 a 100 milhões de pessoas habitavam o continente. Logo, não foi a liberdade que os aniquilou.
O jesuíta José de Acosta, no fim do século XVI, disse que os índios são "homens livres", e a encomenda não os privava dessa liberdade. Propunha um tipo de solução intermediária.
Os espanhóis, para salvar sua consciência e justificar o caráter justo de sua guerra contra os nativos, utilizaram um procedimento a que chamaram "requerimento". Quando os conquistadores armados se encontravam com um grupo de índios, faziam-lhes sinais para conversar. Supondo que eles haviam aceito lia-se um texto em castelhano - um idioma que não conheciam - exortando-os a reconhecer ao Deus dos cristãos como sendo o único. O texto dizia que o Papa havia doado a América ao maior rei do mundo, o de Castela e de Leão. Em alguns casos, quando havia um intérprete, este se encarregava de traduzir as palavras lidas pelo escrivão, o que obviamente não adiantava muito pois os índios não viam porque teriam de abandonar seus deuses. certo chefe índio respondeu, fazendo alusão à doação do Papa: "Quanto a este sacerdote sobre o qual falaste, devia estar bêbado, já que se pôs a repartir o alheio..."
O que foi dito até agora basta para mostrar que o cristianismo medieval foi utilizado para legitimar as ações dos conquistadores, justificar suas violências e exterminar os pagãos...
POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 68-69.
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