"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cidades coloniais

Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos da Lapa e o Convento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, de Leandro Joaquim

"Cidade... multidão de casas, distribuídas em ruas..."
(BLUTEAU, R. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. vol. II, p. 309.)

[...] como eram as cidades do tempo de nossos arquiavós? Os documentos coloniais não deixam dúvidas. Para além de um "ajuntamento de homens no mesmo lugar com casas contíguas ou vizinhas", a cidade era também um "povoado no qual a boa fortuna é mãe da inveja, e a má fortuna, do desprezo. Lugar em que para ser grande é preciso tiranizar os pequenos e para ter com que passar é necessário andar, buscar, correr e lidar". [...] Muitas cidades portuguesas, assim como suas congêneres coloniais, eram o cenário de uma tremenda desordem, espaço de permanentes disputas e conflitos sociais. Além disso, as cidades reuniam os grupos mais pobres da sociedade. O que levava as autoridades metropolitanas, como fez o marquês de Lavradio, de maneira preconceituosa, a comparar os moradores da Bahia a "macacos" e "vermes", queixando-se de ter que governar um "povo grosseiro e ingrato" - comentário não muito diferente do registrado, três anos mais tarde, no Rio de Janeiro, cujo cenário urbano foi considerado "sumamente pobre" e marcado por "clima e gente infernal".

[...]

De fato, tanto o espaço urbano colonial quanto seus habitantes, com raras exceções, dispunham de recursos. Prolongando a tradição medieval, nossas cidades, na maioria, foram construídas não em áreas planas, como recomendava Vitrúvio, mas em lugares altos e de difícil acesso. Morro abaixo serpenteavam ruelas e becos sobre os quais se aglomeravam casas toscas. O casario apertado fazia sombra às vias estreitas e escuras, nas quais se jogava, dia e noite, todo o tipo de lixo. Inúmeros cronistas registraram seu mal-estar. Anchieta dizia que Salvador estava "mal situada num monte". Em 1610, o francês Pyrard de Laval queixava-se de seu difícil acesso, enquanto seu conterrâneo Froger dizia que lá não havia uma única rua direita. Com todos os defeitos, Salvador foi, até 1763, a capital da possessão portuguesa e nela se concentravam a alta fidalguaria lusitana, o alto clero e os magistrados que administravam a Colônia. Os lucros com o açúcar incentivaram a construção tanto de uns poucos edifícios oficiais e religiosos, como de luxuosas residências. Essas, na forma de sobrados geminados de três ou quatro pavimentos, começaram a ser erigidas no século XVII. [...]

Planta da cidade de Salvador no período colonial

[...] Nas cercanias da cidade encontrava-se o bairro de São Bento, planície aprazível cortada por ruas largas onde se tinham estabelecido belas residências e algumas igrejas; o da Praia, endereço de opulentos comerciantes; e o de Santo Antônio, menos importante. [...] A grande animação da vida urbana ficava por conta de inúmeras quitandas - em substituição a um grande mercado -, nas quais negras vendiam carnes, nacos de baleia e outros peixes, hortaliças ou toucinho. Nas lojas finas, ofereciam-se sedas de Gênova, linhos e algodões da Holanda e Inglaterra, tecidos de Paris e Lyon, mesclados de ouro e prata. O fausto e a falta de comodidade urbana andavam de mãos dadas.

Também no Recife, a riqueza do açúcar tratara de concentrar a população e promover a construção de altos sobrados, chamados "sobrados magros", que conviviam com milhares de mocambos de escravos e homens pobres. Nos sobrados, o comércio ocupava o térreo; no primeiro andar, o escritório com apartamentos para caixeiros e sucessivamente alcovas e salas; no último andar, em função do calor excessivo, se localiza a cozinha. [...] Diferentemente de outras cidades coloniais, o Recife estabeleceu uma relação especial com as águas, principalmente as do Capiberibe, que emolduravam o espaço urbano. [...] Recife propriamente dito - onde fica o porto - estava unido a Olinda por um istmo de areia de praia [...]. Santo Antônio, a Mauritztaad de Nassau, concentrava as lojas de comércio, sendo que expressiva atividade - portas adentro ou portas afora - era exercida por mulheres, entre as quais muitas negras quitandeiras e prostitutas. [...]

Vista da cidade Maurícia e Recife, de Frans Post

[...]

Ancorada entre os charcos formados pelo Tamanduateí, o Pinheiros, o Juqueri e o Cotia, São Paulo parecia aos olhos dos viajantes estrangeiros melhor aglomeração urbana do que suas congêneres. No alto de uma pequena elevação, sobressaíam as torres de suas oito igrejas, seus dois conventos e três mosteiros. Casas em taipa branqueada com tabatinga, uma espécie de cal da região, davam-lhe ares de incrível limpeza. As ruas, no entender de vários observadores, eram "largas, claras, calçadas, espaçosas e asseadas". Aqui e ali chafarizes reuniam a multidão de escravos e mulheres em busca de água. [...] Transposto o riacho do Tamanduateí, entrava-se na parte mais animada: o mercado ou a rua das "casinhas" - lojas de víveres -, que se esparramavam pela rua do Buracão ou ladeira do Carmo. As casas de moradia dos que tinham mais posses costumavam ter dois andares dotados de balcões, onde se instalavam homens e mulheres. Neles tomavam as frescas da manhã e da tarde, e assistiam ao desfilar das procissões em dias de festa de santos. [...] Até o início do século XVIII, índios eram carpinteiros, e seu estilo deixou registros na ornamentação das casas. Quanto ao seu interior, Saint-Hilaire, viajante francês, descreveu-as como limpas e mobiliadas com gosto. [...] Singelas construções religiosas dominavam a silhueta da capital: a catedral da Sé, o mosteiro de São Bento, os conventos de São Francisco, Carmo e Santa Teresa, e, mais afastado, o da Luz. O cedro garantia a fabricação de altares e retábulos. [...] Outras construções se sobressaíam ao casario uniforme e austero: eram elas o Palácio do Governo, a cadeia, o quartel e o hospital militar. [...] Mais longe, além dos rios que banhavam o sopé da colina, freguesias periféricas sediavam fazendas que abasteciam, com seus produtos, o mercado de alimentos.

Uma vista dos arredores de São Paulo, de Henry Chamberlain

Costumes de São Paulo, de Rugendas

Tropeiros pobres de São Paulo, de Debret

Palácio do governo em São Paulo, de Debret

A presença de terreiros e praças, tão comum em nossas cidades, notadamente as costeiras, não se fará sentir nos núcleos de mineração que se formaram de pequenos arraiais, como Ouro Preto e São João del Rey. Ocorrendo o ouro em regiões montanhosas, os arraiais nasciam ora junto aos regatos, ora nas encostas. Entre eles se formou uma rede de ruas irregulares e íngremes, nas quais se encravavam pequenos pátios. Em meio ao emaranhado de vielas, travessas e becos se equilibravam; a princípio, casas de pau-a-pique, cobertas de telhas de barro [...]. Ao longo do século XVIII, as austeras paredes em taipa começaram a abrir-se em janelas e vãos que davam às casas mineiras uma extraordinária harmonia. Os povoados rapidamente se transformaram em vilas, concentrando colonos e emigrantes que, com seus escravos, vinham em busca de ouro, e as autoridades que ali se instalavam para controlar a extração aurífera. Nessas mudanças, os casarões se assobradaram [...]. A partir da segunda metade do século XVIII, o uso da pedra lavrada de tradição minhota foi frequente em igrejas, casas solarengas, edifícios públicos e fazendas [...]. 

Mineração de diamantes, de Carlos Julião

A prosperidade da vida urbana mineira incentivou uma série de melhoramentos arquitetônicos e domésticos: as fachadas começaram a ganhar sacadas rendilhadas em pedra-sabão, gradis em ferro de inspiração italiana, ornamentos em cantaria nas soleiras. Jardins à francesa, recortados em canteiros de variadas flores, chamavam a atenção dos viajantes [...]. O mobiliário, inspirado em desenhos importados de Portugal, ganhava volutas, garras de leão ou burro, embelezando camas, cadeiras, cômodas, contadores e bufetes. Espelhos e ferragens sofisticam-se. [...] A prata convertia-se em baixelas, serviços de toucador e arreios, sob a batuta de prateiros baianos e mineiros. [...] Em Mariana, Prados e Congonhas do Campo, pequenas olarias forneciam louça grossa para o uso diário.

Casario em Ouro Preto

Até a descoberta do ouro em Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro não tinha muitos encantos. Possuía, no século XVIII, uma fortaleza bem guarnecida de canhões e um centro comercial muito animado por embarcações vindas do rio da Prata e de Angola. Da América espanhola, especialmente do Peru, vinham muitas patacas de prata para pagar escravos clandestinos. A importância desse comércio ficou gravada na devoção a Nossa Senhora de Copacabana - de origem peruana -, mais tarde instalada na ermida da praia de mesmo nome. Para a África era enviada a farinha de mandioca, produzida no Recôncavo Fluminense e lá vendida, segundo o cronista Brandônio, por "alto preço". Saía, igualmente do Rio de Janeiro, parte do tabaco baiano destinado a comprar escravos em Angola. Até meados do século XVIII, a cidade possuía 15 igrejas e instituições religiosas [...]. Seu perfil, contudo, era ainda de um Rio de Janeiro rural. A cidade há pouco tinha descido dos morros [...] para invadir as várzeas e vales entre montes. [...] No atual Catete, se instalaram olarias que abasteciam a cidade com tijolos e telhas. [...] Medidas de higiene combatiam com timidez o péssimo estado sanitário: isolaram-se bexigosos em lazaretos e obrigou-se o destripamento das baleias, caçadas ao largo da costa, em alto-mar: "para que o mau cheiro que exalavam não infeccionasse a cidade". A Cadeia Pública e a Casa da Câmara desceram do Castelo e se instalaram na várzea [...]. Na Ilha Grande, erigiu-se um estaleiro, destinado a fabricar fragatas empregadas no policiamento do litoral brasileiro. Os primeiros quilombos, constituídos por negros fugidos dos engenhos, começavam a concentrar-se nas margens do Paraíba.

Criminosos carregando provisões para a prisão, de Henry Chamberlain

No início do século XVIII intensificou-se o tráfico negreiro para a extração do ouro e o aumento da produção do açúcar fluminense. Como ficou a cidade? Crescida, inchada, ela via aumentar dia a dia os problemas com a limpeza. Os viajantes estrangeiros consideravam o Rio de Janeiro, como disse dela um inglês, "a mais imunda associação humana vivendo sob a curva dos céus". Em contraste com a belíssima baía azul e montanhosa, as casas eram feias. As ruas, sujas, atraíam varas de porcos ou outros animais domésticos que vinham comer os restos de lixo jogados porta afora. O "desasseio" das praias, em cujas águas se derramavam os dejetos domésticos, preocupava as autoridades: "despejos cujos eflúvios voltam para a cidade e a fazem pestífera". Melhorada, a partir de 1763, a Cadeia transformara-se em residência dos vice-reis. [...]

Lagoa Rodrigo de Freitas, de Henry Chamberlain

As lojas dos mercadores abrigavam-se do sol forte sob toldos de pano riscado. Tabuletas indicavam os ofícios: barbearia, chapelaria, oficina de bate-folhas. Indicavam também: "Bom e Barato!". [...] As fachadas das residências quase desapareciam por trás das grades dos mucharabis, rótulas engradadas pelas quais as senhoras e suas escravas observavam, sem serem vistas, o movimento da rua. [...] O salão de receber, vazio de mobiliário, somava-se à pequena sala de jantar. [...] Sem numeração, as casas eram conhecidas pelos nomes dos que nela residiam ou pelo comércio que aí se praticava.

Uma história, de Henry Chamberlain

Num porto onde o tráfico de escravos era determinante, onde ficava tal mercado? O Valongo, nome que o sinistro local recebeu, localizava-se entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento. Erigido sob as ordens do marquês de Lavradio [...] consistia em armazéns alinhados, beirando a praia, cada um com sua porta aberta para receber a mercadoria humana vinda da África. Depois da travessia subumanas, os cativos encaveirados eram engordados com farinha, banana e água, podendo ganhar "até cinco libras por semana". Cartazes do lado de fora anunciavam a chegada de "negros bons, moços e fortes", e de preços com "abatimento".

O mercado de escravos, de Henry Chamberlain

No Rio de Janeiro ou em outras cidades coloniais, a massa de escravos dominava boa parcela dos ofícios urbanos. Atarefados, oferecendo seus serviços ou os produtos feitos na casa do senhor, cumprindo obrigações, levando recados, carregando água, os cativos estavam em toda a parte. Sua presença associada ao transporte privado é constante nas gravuras sobre o período. [...] Portavam nos ombros as cadeirinhas [...] feitas de couro de vaca e forradas de damasco carmesim, cujas cortinas fechavam-se a cada vez que nelas se transportava uma dama. [...] Mas cruzava-se pelas ruas com outros tipos de carregadores: os de pesados tonéis amarrados em tramas de corda e pau. E o dos "tigres": barris carregados de lixo doméstico normalmente enterrados em buracos nas praias das cidades litorâneas. Uma bandeira preta indicava a saturação dos mesmos.

Negros vendedores no Rio de Janeiro, de Carlos Julião

Negras vendedoras no Rio de Janeiro, de Carlos Julião

Negras vendedoras no Rio de Janeiro, de Carlos Julião

Cadeirinha, de Carlos Julião

Vista do lugar de desembarque na Glória, de Henry Chamberlain

Nos adros das capelas, nos becos sujos, encontravam-se pelo chão aqueles que tinham-se tornado os dejetos da escravidão. Doentes, aleijados, moribundos eram deixados a mendigar ou a morrer pelas ruas da cidade. Misturavam-se a outros pedintes, muitos deles imigrantes sem sorte e sem trabalho, camponeses pobres, crianças abandonadas, soldados expulsos das tropas. Todos personagens de nossas cidades. As camadas mais despossuídas da população encontravam-se, depois das ave-marias, nas tabernas, nas vendas, nas "casas de alcouce" - eram espaços de sociabilidade onde se bebia cachaça barata, cantava-se ao som da viola, em São Paulo, ou da marimba, no Rio de Janeiro, e jogavam-se dados e cartas. O chão de terra batida, sobre o qual se cuspinhava o fumo mascado, recebia não poucas vezes o corpo de um ferido de briga ou de uma prostituta cujos serviços eram prestados ali perto. Em muitos desses locais misturavam-se os dialetos africanos com a fala reinol. Soavam atabaques, rabecas, berimbaus.

Escravos doentes, de Henry Chamberlain

Durante o dia, as ruas das cidades se animavam com outros sons. O peditório dos irmãos das confrarias era um deles. Bandeja à mão, esmolavam de pés descalços para as suas festas: a do Divino, a do Rei Congo, a do Santíssimo. [...] Nas artérias mais importantes, cruzavam-se os funcionários do governo, os soldados da milícia da terra, frades e padres seguidos de beatas, mazombos enriquecidos graças ao açúcar, ao ouro ou ao tráfico de escravos, mulatos, mamelucos, cabras, peões, oficiais mecânicos, ciganos, degredados e milhares de escravos. Mulheres, as trabalhadoras: cativas, forras ou brancas pobres vendiam, elas também, os seus serviços de lavadeiras, doceiras, rendeiras, prostitutas, parteiras, cozinheiras etc. Pouco se viam senhoras e sinhás. Reclusas, não deixavam de realizar tarefas domésticas, expondo-se, apenas, em dias de festa religiosa.

Festa de Nossa Senhora do Rosário no Rio de Janeiro, de Carlos Julião

Uma barraca de feira, de Henry Chamberlain

Lavadeiras do Rio de Janeiro, de Rugendas

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da história do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 104-116.

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