"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de outubro de 2011

Holandeses, franceses e ingleses na América

Nova Amsterdã em 1664.
Johannes Vingboons

["Ouvi uma grande gritaria e corri às muralhas do forte. Nada vi senão o tiroteio e escutei os gritos dos selvagens assassinados durante o sono. [...] Quando se fez dia, os soldados retornaram ao forte, tendo massacrado oitenta índios. Bebês foram arrancados ao peito das mães e despedaçados a golpes de espada na presença dos pais. Alguns foram lançados ao rio, e quando os pais e as mães se empenhavam em salvá-los, os soldados não permitiam que retornassem à margem, mas faziam com que todos se afogassem."] (Escrito em 1643 por David de Vries, colonizador holandês de Nova Amsterdã - depois Nova York. In: APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 17.)


Nova Amsterdã em 1671, 
Artista desconhecido

"Tomo posse, em nome de Sua Majestade, deste país de Luisiana." (Cavellier de la Salle, em 1682)

1. Os franceses na América. A França teve [...] uma posição secundária na expansão marítima europeia devido às dificuldades para consolidar sua monarquia e às consequências da Guerra dos Cem Anos, travada contra a Inglaterra. As iniciativas francesas nesse sentido foram tímidas, se comparadas com as espanholas e as portuguesas. Na época do rei Francisco I, o florentino Giovanni da Verrazzano, a serviço da França, chegou até a América do Norte e o Canadá, entre 1523 e 1524. Também se destacaram as viagens de Jacques Cartier (1533-1541), que descobriu o estuário do rio São Lourenço.

Ataque de Portugueses e Tupiniquins às Cabanas Tupinambás. Theodor de Bry 

Outra experiência francesa conhecida consistiu na fracassada tentativa de fundar a França Antártica no Rio de Janeiro. O grande entusiasta dessa ideia foi Nicolau Durand de Villegaignon, que, com a ajuda do almirante Coligny, conseguiu do rei Henrique II apoio para o empreendimento. A finalidade era fundar no Brasil uma colônia de emigrantes franceses, sobretudo de huguenotes, que viviam perseguidos em sua terra. Havia também interesses mercantis, visando beneficiar a Coroa francesa por meio do comércio com o Novo Mundo. Seiscentas pessoas, entre elas condenados saídos de prisões, partiram com Villegaignon do porto de Havre, na França, com destino à baía de Guanabara, onde chegaram em novembro de 1555. Cinco anos mais tarde, os franceses foram expulsos pela expedição portuguesa comandada por Estácio de Sá. Desentendimentos anteriores entre os próprios colonos franceses já haviam, porém,  enfraquecido muito essa tentativa de colonização.


Representação de Champlain com dois índios descendo uma corredeira.
John Henry de Rinzy

O século XVII foi mais auspicioso para a França em suas tentativas de se estabelecer no Novo Mundo. Por meio da atuação da Companhia das Ilhas da América, fundada por comerciantes e apoiada pelo governo, em 1635 os franceses conseguiram fixar-se nas Antilhas, conquistando as ilhas de Granada, Guadalupe, Tobago e Martinica, que pertenciam à Espanha. Com a criação da Companhia das Índias Ocidentais, em 1664, no reinado de Luís XIV, a política mercantilista da França ganhou mais impulso. A economia antilhana firmou-se com base no sistema de plantation, ou seja, grande propriedade monocultora voltada à produção, para o mercado externo, e no uso da mão-de-obra escrava. Cultivava-se a cana-de-açúcar, cuja produção deu às Antilhas posição de destaque no mercado internacional.

Envolvendo o tráfico de escravos, bebidas, armas de fogo e produtos tropicais, verificou-se nesse período o crescimento do comércio triangular nos portos antilhanos, franceses e africanos. O já lucrativo comércio de escravos cresceu então ainda mais. Verifica-se, assim, que o acúmulo de riquezas que favoreceu o surgimento da sociedade capitalista se fez com a mistura de práticas econômicas ditas modernas e práticas já declinantes no mundo medieval, como a escravidão.


Mercado de linho e vendedor de vegetais nas Índias Ocidentais. 
Agostino Brunias

À presença francesa na América do Norte deve-se a fundação de Quebec (1608), Montreal (1624) e Nova Orleans (1718). Nessa região de clima frio não existiam plantations, e o comércio de peles, para o qual os franceses contavam com a ajuda dos índios, tornou-se a principal atividade econômica ali desenvolvida.

Apesar de suas conquistas, a França não conseguiu se consolidar como grande império colonial. Disputas com a Inglaterra, entre elas a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), colaboraram para que o país perdesse boa parte de suas possessões americanas. Com o tratado de paz que resultou da Guerra dos Sete Anos, os franceses perderam todo o território do Canadá para a Inglaterra e foram obrigados a entregar a Lousiana à Espanha.


Casal de índios algonquinos. 
Artista desconhecido. Gravura do século XVIII

2. Os ingleses na América. As viagens inglesas de exploração resumiram-se ao reconhecimento do norte do continente americano. A Inglaterra estava interessada em descobrir um novo caminho para as Índias. No século XVI, os ingleses lucravam bastante com assaltos aos navios carregados de metais preciosos que vinham das colônias espanholas. Apoiados pela Coroa, piratas como Francis Drake e Hawkins fizeram fortunas com essas pilhagens. A Inglaterra começava, decididamente, a ameaçar a força armada espanhola.


Embarque dos peregrinos.
 Robert Walter Weir

As tentativas de conquista inglesas restringiam-se, inicialmente, às viagens do genovês Giovanni Caboto, ainda no século XV, e às de Humprey Gilbert e Walter Raleigh. A fundação da colônia de Virgínia, no final do século XVI, não deu resultados imediatos. Em 1607, com muita dificuldade, foi fundada a colônia de Jamestown. Cerca de 3 mil ingleses chegaram à colônia entre 1619 e 1622, mas nesse mesmo período a fome, a luta contra os índios e as doenças reduziram a população a apenas 1 200 habitantes.


Desembarque dos puritanos na América.
 Antonio Gisbert

A experiência colonial inglesa na América do Norte apresentou diferenças de uma região para outra. No Sul, as terras férteis, o clima temperado e as grandes planícies favoreceram a cultura extensiva de produtos tropicais, como o tabaco, o algodão, o índigo (anil) e o arroz, realizada com a técnica do plantation. Os sulistas mantinham uma forte ligação econômica com a metrópole. Procuravam reproduzir mesmo, conforme afirma o historiador J. T. Adams, "o modo de vida nas mansões, a caça à raposa, as danças, as visitas, o jogo de cricket - tudo como entre os tories da Inglaterra". Tendo  tido a Virgínia como ponto de partida, outros núcleos importantes se estabeleceram no Sul: as colônias de Maryland, Geórgia, Carolina do Norte e Carolina do Sul.

As colônias do Centro (Nova Iorque, Nova Jérsei, Delaware e Pensilvânia) situavam-se numa região considerada de transição, entre o Sul e a Nova Inglaterra, no Norte. Ali se estabeleceram colonos de vários países europeus - holandeses, suecos, irlandeses, escoceses -, embora os ingleses constituíssem a maioria. Os holandeses foram responsáveis pelo ativo comércio de peles com os índios. Fundaram, na ilha de Manhattan, a cidade de Nova Amsterdã, depois ocupada pelos ingleses, que a rebatizaram de Nova Iorque. A agricultura foi uma atividade importante nessa região, sendo os principais produtos cultivados o trigo, a cevada, o milho e o centeio. Predominava a pequena lavoura, e o número de escravos era bastante reduzido.

As colônias do Norte foram fundadas por um grupo de puritanos que fugiam às perseguições religiosas do governo inglês. Partindo de Plymouth, os famosos "peregrinos do navio Mayflower" desembarcaram, em pleno inverno, em Massachusetts. A região foi chamada de Nova Inglaterra. Nela, segundo o historiador Leo Huberman, "não havia fazendas enormes, nem braço negro, nem colheitas básicas: na Nova Inglaterra as plantações eram pequenas, lavradas pelos proprietários, e produziam grande variedade de colheitas, como milho, alfafa, centeio, cevada e frutas".

Desenvolveu-se ali um mercado interno significativo, que dava grande autonomia às colônias. Predominava a mão-de-obra assalariada, representada pelos servos de contrato, camponeses ingleses que, sem recursos para viajar à América, alugavam sua força de trabalho por um período de geralmente sete anos, em troca das despesas de viagem. Cerca de 70% dos imigrantes viajaram como servos de contrato.

As condições geográficas favoreceram a prática de atividades marítimas, como a pesca e a caça à baleia, cujos produtos eram até mesmo exportados para a Europa. Desenvolveu-se também a construção naval, com a produção de barcos que se tornaram conhecidos pela boa estrutura. As colônias do Norte diferenciaram-se das do Sul durante seu crescimento, caracterizando-se por apresentar maior mobilidade social, sem o forte estigma da relação escravista. REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 205-209.


O Tratado de Penn com os índios. 
Benjamin West

"É render glória a Deus e procurar a felicidade do Reino [...] procedendo à conversão dos povos submetidos à impiedade e à barbárie." 
(Carta do Cardeal Richilieu ao Rei Luís XIII)

Descoberta do Mississípi por Hernando de Soto.
 William Henry Powell

3.  Mecanismos da conquista. De maneira geral, a política inglesa em relação aos povos que habitavam originalmente as áreas coloniais foi a do genocídio.

O escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910) descreveu o resultado do 'encontro' entre índios e brancos numa frase: 'Os pioneiros intrusos primeiro se lançaram de joelhos e depois sobre os índios'.

Método algum era considerado demasiadamente horrível para a execução da política oficial de extermínio. Esses métodos estabeleciam inclusive uma recompensa em dinheiro por escalpo de índio - homem, mulher ou criança - até a guerra bacteriológica sob a forma de lençóis abertos infeccionados com germes de varíola.

Os colonizadores brancos trouxeram, portanto, morte e destruição, e encontraram uma resistência heroica. A história da resistência é trágica, pois os índios, divididos entre si, geralmente em inferioridade numérica, tremendamente inferiores em armamentos e sem resistência às novas doenças trazidas pelo invasor, caíram derrotados. APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 14.

sábado, 29 de outubro de 2011

Arte parietal pré-histórica

Pintura da caverna Chauvet. 31 mil anos de idade, provavelmente Aurignacien. O grupo de cavalos, provavelmente, não retrata um rebanho deles, mas algum tipo de estudo etological, mostrando, da esquerda para a direita, calma, agressividade, sono e pastagem.

A arte parietal pré-histórica surpreende sempre pela sua beleza e também pela ciência de observação e perfeição dos seus autores, de que é testemunha. Como é que estes homens, que viveram entre 30000 anos e 8500 anos antes de nossa era, em condições muito difíceis segundo os nossos critérios atuais, que apenas dispunham de utensílios de pedra, de osso, de chifres de cervídeos e provavelmente também de madeira, conseguiram criar obras-primas tão perfeitas?

[...]

Das cerca de 150 "cavidades" - grutas e cornijas rochosas - ornamentadas com gravuras e pinturas realizadas, da Espanha aos Urais, entre 30000 e 8500 a.C., quero dizer, durante o Paleolítico Superior, 136 estão situadas em território francês.

[...]

A datação da arte parietal é uma das principais dificuldades que os estudiosos da pré-história têm para resolver. Os traços gravados e os pigmentos das pinturas não se adaptam a nenhum dos métodos modernos de datação absoluta. Os carvões das fogueiras ou das tochas foram muitas vezes deitados fora. E mesmo quando são cuidadosamente retirados de uma camada arqueológica rigorosamente referenciada e pesquisada nada permite afirmar que os homens que queimaram estes pedaços de madeira foram os autores das gravuras ou das pinturas que decoram a "cavidade". De igual modo, os artesãos dos utensílios de pedra, de osso ou de chifre de cervídeo encontrados nas camadas arqueológicas, e que podemos datar por comparação com os das estações arqueológicas conhecidas com precisão, não são forçosamente os artistas gravadores ou pintores.

Pintura de um bisão na caverna de Altamira (Espanha)

No entanto, os especialistas puderam traçar um quadro geral da história da arte parietal paleolítica da Europa, que nos parece um episódio breve das atividades humanas, que afinal de estendeu, ao longo de 215 séculos, ou seja, entre cerca 30000 e 8500 a.C.

[...]

Entre 8500 e 8000 anos a.C., termina o último período glaciar. Esta revolução climática coincide com o desaparecimento da arte parietal, que dá o lugar à arte móvel, embora algumas cornijas rochosas das civilizações epipaleolíticas sejam ainda decoradas com algumas gravuras (na floresta de Fontainebleau, entre outras). De tempos em tempos ainda surgem algumas descobertas inesperadas. O pequeno mamute gravado na parede calcária tem o ar de um boneco, com os seus parcos 18 centímetros de comprimento.

[...]
Caverna de Lascaux, França. "Na criação dessas imagens, os artistas das cavernas usavam carvão para delinear as irregularidades da rocha que se assemelhavam a formas encontradas na natureza. O volume era dado pelas saliências, enquanto as tonalidades terrosas emprestavam contorno e perspectiva. As "tintas" utilizadas eram torrões de ocra vermelha e amarela esfarelada até virar pó e aplicada à superfície com pincel, ou soprada através de um osso oco. Os desenhos eram superpostos aleatoriamente, talvez atendendo à necessidade de novas imagens antes de cada caçada. Essas imagens - sempre figuras de animais - são representadas em perfil bidimensional e parecem flutuar no espaço, sem qualquer representação do ambiente". 
(STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 4.)

Além dos mamutes, advinha-se aqui um pescoço e a cabeça de um bode, ali um cavalo e, em diversos sítios, as paredes estão estriadas com traços simples, gravados profundamente, que por vezes se entrecruzam, mas nunca chegam a desenhar os sinais abstractos característicos da arte parietal.

REBEYROL, Yvonne. Crónicas da pré-história. Mem Martins (Portugal): Europa-América, 1988. p. 134-139.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Romanização da Lusitânia


Templo romano em Évora

* Conquista da Lusitânia. Desde as lutas contra Cartago, Roma dirigira sua atenção para a península Ibérica. Em fins do século III a.C. começou o lento avanço dos romanos pela península. Ocuparam o sul da Hispânia e prepararam-se para invadir a Lusitânia. Em 138 a.C. os exércitos romanos chegaram à embocadura do rio Tejo (Tagus) e, pela primeira vez, acamparam às margens do Atlântico.

Os lusitanos, chefiados por um grande guerreiro, Viriato, ofereceram violenta resistência, conseguindo rechaçar o inimigo. Com a morte de Viriato quebrou-se, porém, essa resistência e Roma iniciou a penetração do território pelas regiões do norte e do centro. Os focos de luta contra o avanço romano enfraqueceram-se a partir da queda da importante cidade de Numância (133 a.C.) e, aos poucos, toda a península Ibérica caiu em poder dos romanos. A conquista e submissão da Lusitânia custaram a Roma um século e meio de lutas (193-25 a.C.).

* Romanização da Lusitânia. Durante esse século e meio de lutas foi-se operando lentamente a romanização das regiões lusitanas, dando origem à civilização luso-romana, da qual somos em parte herdeiros. A romanização dos territórios ocupados determinou importantes transformações, sobretudo de ordem econômica e cultural.

Do ponto de vista econômico, as populações nativas, habituadas a trabalhar a terra em regime comunitário (regime que ainda hoje subsiste em certas aldeias portuguesas), passaram, sob a influência romana, a cultivar o solo em grupo de família. Surgiu assim o tipo de propriedade agrícola chamada vila, que abrangia a residência do dono, as casas dos trabalhadores escravos e dos arrendatários, estábulos, celeiros e campos.

O novo sistema de ocupação e exploração da terra modificou por completo a economia da Lusitânia que, predominantemente pastoril (criação de cabras e ovelhas), tornou-se agrícola. Dessa forma, desenvolveu-se em grande escala o cultivo da vinha, da oliveira, da cevada e do trigo; aumentou a produção de frutos e de fibras têxteis (linho).

Intensificaram-se, ao mesmo tempo, as atividades da pesca e da mineração; iniciou-se o fabrico de tijolos e de telhas (até então desconhecidas dos lusitanos); aperfeiçou-se a técnica da cerâmica. A construção, pelos romanos, de estradas e de pontes desenvolveu o comércio. Generalizou-se o uso da moeda, substituindo o primitivo sistema de simples troca de mercadorias.

Do ponto de vista cultural, os lusitanos adotaram o tipo de casa romana, abandonando as pequenas habitações de chão batido, paredes toscas de pedra, cobertas de palha ou de madeira. Foram  adotadas a língua (latim) e a religião romanas; e, no vestuário, os grosseiros trajes de lã acabaram sendo substituídos pela túnica e pela toga.

Em toda a Lusitânia construíram-se templos, teatros, circos, aquedutos, banhos públicos, e foram abertas escolas de ler e escrever.

Se, de um lado, os romanos marcaram com sua cultura e civilização o povo lusitano, oferecendo-lhe longo período de paz e desenvolvimento, de outro lado, porém, não lhe deram a projeção e a força necessárias para poder resistir à ofensiva de povos germânicos que, poucos séculos depois (V século), submeteram a Lusitânia a nova ocupação.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 95-96. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O olhar do viajante: o Rio de Janeiro visto por Debret

Cena de carnaval, Debret. Aqui o artista mostra algumas brincadeiras do carnaval do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX: atirar limões de cheiro (esferas de cera com água perfumada), sujar de polvilho o rosto das pessoas, atirar água com seringas de lata.

[História e cidade] Descrever uma cidade é principalmente falar do cotidiano das pessoas que vivem nela. Foi o que fez Jean-Baptiste Debret, pintor francês, que deixou um testemunho impressionante sobre a cidade do Rio de Janeiro. Debret foi nomeado professor da Academia Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João, quando da permanência da família real portuguesa no Brasil.

A vinda da família real foi um marco importante nas transformações ocorridas na vida cotidiana da cidade, significando um importante fato político, cultural e social. As medidas tomadas por D. João mostraram o esforço da monarquia portuguesa em modernizar o Rio de Janeiro e, por extensão, o Brasil. Ele quis dotar a cidade de condições que a tornassem digna da grandeza de ser capital de uma monarquia europeia.

Durante quinze anos, Debret pintou e descreveu o que viu e sentiu. O resultado do seu trabalho foi uma obra publicada em três volumes, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, com aquarelas e textos, nos quais retrata e descreve paisagens, tipos humanos e costumes brasileiros. Trata-se, portanto, de uma obra de caráter documental. 

Café torrado, Debret

Ao pintar, descrever e comentar o que viu, o autor pensou no público francês, ao qual quis mostrar o exótico e o diferente, mas pensou também em quem o contratou para vir ao Brasil: a corte portuguesa. Mas, ao procurar captar o diferente e o exótico, Debret captou os traços da mestiçagem cultural, que combinou elementos da civilização europeia com a prática escravista colonial. Para ele o Brasil era a parte mais avançada do Novo Mundo, mas esse avanço estava na organização política, na monarquia, não nas práticas sociais e nos hábitos dos brasileiros. Estes seriam grosseiros e indolentes, condicionados pela presença ostensiva da escravidão em toda a vida cotidiana.

Debret colocou em imagens essa contradição, que estava presente no momento histórico da instalação da corte portuguesa no Brasil e que deixou sua marca na história posterior do Brasil independente. PEDRO, Antonio et alli. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 273-274.

Calceteiros, Debret

[Uma cidade mestiça] De noite, eles [os afro-brasileiros] vão jogar no mar as tinas de excrementos e o lixo (a cidade ainda não possui latas de lixo nem fossas sépticas). Depois, para esquecerem os trabalhos duros e sacrificarem-se ao rito do banzo (essa saudade típica dos filhos da África), saem, de tambor na mão, a fim de fornicar nos cantos e dançar nas praças públicas.

Mijão, Debret

Evidentemente, a plebe são eles: os ancestrais distantes e predestinados do lumpemproletariado de hoje. Todavia, entre eles já havia inúmeros alforriados. Alguns viraram calceteiros ou artesãos, talvez até cocheiros ou escreventes de comerciantes, caso dos meritórios. E, além disso, aprenderam a se juntar para defender seus direitos. Têm suas igrejas e suas próprias confrarias. Não esqueçamos que a igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos foi construída pelos negros, e a de Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte, pelos mulatos! As mulheres não ficam atrás nesse tímido renascimento. Algumas tornam-se gerentes das vendas (essas curiosas tabernas da época, aonde a fina flor da cidade ia bebericar um café e se informar sobre os acontecimentos do dia).

[...]

Loja de barbeiros, Debret

De qualquer maneira, o Rio não tem apenas desterrados e enjeitados. Tem também suas baronesas e seus altos funcionários, seus príncipes de sangue e seus novos-ricos. A chegada inesperada da Corte portuguesa acarretou mudanças até no cerne do mundo branco, doravante subdividido em duas novas raças, que desconfiam uma da outra: a gente do rei e a gente da terra. A gente do rei ocupa os palacetes e supervisiona o comércio e a administração. Essa alta sociedade vive à europeia, considerando com desprezo a rusticidade e a indolência tropical dos brasileiros de origem europeia e dos mulatos. Organizam grandes bailes em que convidam infantes e duquesas a bailar danças de nomes exóticos: a chamada dança dos mouros, uma outra conhecida como dança dos macacos e a que se chamava a dança da China. Por ocasião dos noivados e casamentos, organizavam grandiosas festividades militares, com corridas de cavalos e de trenós, carrosséis e desfiles de cavaleiros em uniformes emperiquitados (Debret, aliás, representou-se numa aquarela magnífica). Têm suas festas privadas e suas regatas (e estas, nas palavras de Machado de Assis, nada ficavam a dever às de Epsom). Debret descobrirá que o primeiro teatro da cidade (o São João) já abriu suas portas, e lá dentro, com toda certeza, não se sente longe de casa: encenava-se essencialmente o repertório francês (em especial Marivaux e Beaumarchais), e na língua de Molière, façam-me o favor! Por sinal, nesse início de século a língua francesa é onipresente no Rio de Janeiro. É de bom-tom falar francês nos jantares de gala, mesmo quem só tem vagas noções de língua, e mandar os filhos estudar em Paris. As pessoas apaixonam-se pelas novas ideias. Leêm Spencer e Auguste Comte: "Ordem e Progresso"! Como entre seus primos europeus, aqui também o "positivismo" está na crista da onda... MONÉMEMBO, Tierno. "O festim brasileiro". In: STRAUMANN, Patrick (org.). Rio de Janeiro, cidade mestiça - Nascimento da imagem de uma nação: Ilustração e comentários de Jean-Baptiste Debret. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 123-130.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O povo de Luzia: os primeiros americanos

As imagens do crânio de Luzia foram processadas em computador por pesquisadores ingleses.
O crânio foi reconstruído em material sintético e a face de Luzia foi reconstituída em argila. Resultado: fisionomia com olhos arredondados, nariz largo e queixo proeminente. Ou seja, traços negroides.

A agricultura e a domesticação de animais surgiram no Velho Mundo por volta de 10 mil anos. Na América, a produção de alimento, através da agricultura e do pastoreio, surgiu de forma independente pouco mais tarde e só se generalizou por todo o continente nos últimos 4 mil anos. Mesmo assim, até hoje alguns grupos indígenas na América do Sul ainda vivem exclusivamente da caça e da coleta de vegetais silvestres. Exceto nos Andes, onde a lhama e o guanaco foram domesticados, a criação de animais como fonte de alimento não exerceu nenhum papel nas demais regiões do Novo Mundo.

Mesmo para os grupos que adotaram o cultivo de vegetais na América do Sul, a caça e a coleta não deixavam de ter importância. Até hoje os grupos indígenas que cultivam (principalmente a mandioca e o milho) nas terras baixas sul-americanas suplementam sua alimentação tanto com a caça e a pesca, principais fontes de proteína animal, como com a coleta de vegetais, importantíssimos como fonte de vitaminas e outros micronutrientes. O mel também é muito apreciado por esses grupos.

Na verdade, durante grande parte da trajetória evolutiva humana, nossos ancestrais viveram exclusivamente da caça e da coleta, sem produzir alimentos. [...] Por isso, é muito importante para a arqueologia e a antropologia entenderem os detalhes desse estilo de vida.

Existem grandes diferenças entre uma vida de caçador-coletor e uma vida baseada no cultivo de subsistência. Primeiramente, o grau de mobilidade. No geral, os primeiros são mais móveis que os segundos, tendo em vista que viver apenas da caça e da coleta exige grande mobilidade durante o ciclo anual e um território de captação de recursos significativamente maior. A alta mobilidade da maioria dos caçadores-coletores (ou forrageadores) impede a exaustão dos recursos naturais locais, sempre limitados, propiciando ao mesmo tempo grande complementaridade alimentar.

Mas aqui cabe uma ressalva. A maioria das pessoas acredita que o nomadismo, que caracterizava a vida de um grupo de caçadores-coletores, ocorre a esmo, dando a impressão de que eles não têm destino, que estão sempre se deslocando, ou que lhes falta o conceito de territorialidade. Tal cenário não poderia estar mais equivocado. No geral, esses grupos se deslocam dentro de uma macrorregião já conhecida e muito bem "mapeada", em termos de fontes de recursos. Estabelecem também uma relação mítica com alguns marcos desse território, relação esta construída em tempos imemoriais. [...]

Outra diferença, também determinada pela sustentabilidade do meio em que vivem, é de caráter demográfico. Grupos forrageadores, denominados bandos, são sempre muito menores que aqueles que vivem da agricultura, denominados tribos. A produção de alimento permitiu ao homem não só manter coeso maior número de pessoas por aldeia, mas também maior densidade demográfica regional. O cultivo de vegetais aumentou artificialmente (e continua aumentando) a sustentabilidade natural da paisagem, mesmo quando praticado em pequenas roças estabelecidas no meio da floresta.

A divisão sexual do trabalho também é distinta entre esses dois tipos de sociedade. Enquanto entre forrageadores os homens caçam e as mulheres (e muitas vezes as crianças) coletam, entre agricultores de subsistência os homens caçam e ajudam no trabalho mais pesado de preparação de roças (derrubada da mata, limpeza com fogo e destocamento). Já as mulheres cuidam do cultivo, da colheita e do processamento dos alimentos produzidos. A pesca é no geral praticada tanto pelos homens como pelas mulheres e crianças nos dois tipos de sociedade.

Entre os caçadores-coletores, o lascamento da pedra é tarefa exclusivamente masculina, ao passo que entre os cultivadores a fabricação de utensílios de cerâmica é atividade exclusivamente feminina. Salvo algumas exceções, no geral grupos caçadores-coletores não fabricam utensílios de cerâmica, tendo em vista que essas vasilhas dificultariam a mobilidade de que desfrutam, e também pelo fato de que processam muito pouco os alimentos oriundos da caça e da coleta. No geral, é na indústria lítica que os forrageadores imprimem sua identidade étnica. Já a esmagadora maioria dos grupos agricultores fabrica e usa intensivamente recipientes de cerâmica. Tais utensílios são essenciais para estocagem, o processamento e o cozimento dos cereais ou tubérculos cultivados. [...]

É muito difícil saber com exatidão o estilo de vida e como era o cotidiano de Luzia e de seus contemporâneos, já que até hoje nenhum acampamento com mais de 10 mil anos foi escavado em Lagoa Santa. [...]

Mas uma coisa é inquestionável: o povo de Luzia vivia exclusivamente da caça e da coleta, desconhecendo completamente o cultivo de vegetais e a fabricação de vasilhas de cerâmica. Sua indústria lítica era composta quase que exclusivamente de instrumentos de pedra lascada. Muito raramente, poliam uma das extremidades de um seixo, dando-lhe um gume, fabricando assim machados muito toscos.

NEVES, Walter Alves. O povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008. p. 270-1.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Túpac Amaru: o "filho do sol"

Monumento a Tupac Amaru, sua esposa Micaela Bastidas e seus filhos segurando a bandeira de Cuzco, Peru. 

Texto 1. O mundo amanheceu ao contrário naquele dia em Tinta, um pequeno povoado no sul do vice-reino do Peru. Acostumada a ser explorada e maltratada pelas tropas do manda-chuva local, o espanhol Antonio Arriaga, a população mal conseguia acreditar que era ele quem dava seus últimos suspiros, pendurado pelo pescoço na ponta de uma corda, em plena praça central do vilarejo. Ao seu lado, comandando a execução, estava José Gabriel Túpac Amaru. Vestido para a guerra, com o tradicional ornamento inca em forma de um sol dourado no peito, convocava, aos berros, índios, mestiços e negros para lutar contra a dominação espanhola.

Naquele 4 de novembro de 1780, com o corpo de Arriaga balançando atrás de si, Túpac Amaru, descendente da linhagem imperial dos incas, declarou que não existiam mais impostos e que os escravos estavam livres. "Foi o início de uma rebelião que se espalharia pelos Andes e chegaria aos altiplanos bolivianos", diz Julio Vera del Carpio, historiador da Casa da Cultura Peruana, em São Paulo. Quase 300 anos depois de os espanhóis desembarcarem na América, o filho do sol estava de volta.

Os espanhóis desembarcaram na América em 1492 ávidos por encontrar riquezas que financiassem seus navios, suas armas e sua nobreza. Quando chegaram ao Peru, em 1527, e descobriram as minas de prata da região, não perderam tempo. Com a vantagem das armas de fogo e do duro aço espanhol, submeteram os guerreiros indígenas e suas lanças de cobre. Pizarro conquistou Cusco, a capital inca, e capturou e executou Atahualpa, seu imperador.

O último foco de resistência foi derrotado em 1572, com o enforcamento do derradeiro imperador inca, o primeiro Túpac Amaru. Foi o ponto final na civilização inca na América do Sul, 'que ocupou um território maior que o do Império Romano', diz Antonio Núnez Jiménez, no livro Nuestra América.

Tinta foi apenas o primeiro alvo da revolta. Após matar Arriaga, Túpac e seus homens percorreram povoados e vilas da região, prendendo e enforcando as autoridades espanholas que encontravam. Ficavam com seu dinheiro e armas e distribuíam seus bens entre a população. Túpac nomeou chefes locais e conseguiu que milhares de pessoas aderissem à sua tropa.

Em 5 de abril de 1781, com o reforço de 17 mil soldados, os espanhóis infligiram uma gigantesca derrota às tropas tupamaristas. Os rebeldes se dissiparam, mas Túpac e seus colaboradores mais próximos foram presos em uma emboscada preparada por seus próprios partidários. Apenas uma parte do exército rebelde conseguiu se refugiar nas montanhas. Na mesma semana, para comemorar sua vitória, os espanhóis enforcaram 70 líderes indígenas na mesma praça onde Arriaga havia sido executado.

Túpac e sua família foram levados a Cusco, onde foram torturados para que dessem informações sobre os demais líderes rebeldes. Após 35 dias de torturas, em 18 de maio de 1781 Túpac foi levado para receber sua sentença em praça pública, no centro de Cusco: esquartejamento.

Nos anos que se seguiram, os colonizadores exerceram uma forte repressão à cultura incaica e qualquer ornamento da nobreza inca foi proibido. 'Falar o nome de Túpac Amaru em público virou um insulto aos espanhóis, um ato de rebeldia. A perseguição, no entanto, só aumentou o mito que se criou em torno dele e fez com que seus lendários feitos influenciassem gerações de revolucionários americanos, de Bolívar a Che Guevara', diz o antropólogo Rodrigo Montoya, da Universidade San Marcos, em Lima. O poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), em um verso de 1970, recordou Túpac:

'Como um sol vencido
Uma luz desaparecida [...]
Túpac germina na terra americana'.

MEIGUINS, Alessandro. O filho do sol. In: Revista Aventuras na História. São Paulo: Abril, n. 15, nov. 2004, p. 40-45.

Texto 2. O movimento rebelde, liderado por Túpac Amaru, mestiço descendente direto da nobreza incaica, teve, como principal reivindicação, o fim do trabalho forçado dos indígenas nas minas de obrajes (manufaturas têxteis). Em nome dos índios de sua região, o cacique atuou inicialmente junto às instituições espanholas, visando ao cumprimento das leis ditadas pela Coroa, que limitavam os abusos das autoridades coloniais. Depois de frustradas tentativas em Tinta (sua província natal), em Cuzco e na Real Audiência de Lima, o líder abandonou sua crença nos mecanismos legais de atuação e partiu à luta armada.

Ao incorporar os anseios de libertação de massas indígenas, a rebelião ganhou milhares de adeptos em toda a América Meridional, extrapolando seu núcleo irradiante - a serra sul-peruana - e atingindo uma vasta extensão da região andina.

Mesmo derrotada, pelas suas proporções e repercussões a insurreição desafiou o regime de exploração e dominação sobre o qual se sustentava a estrutura econômica da colônia. Ao levantar os problemas relativos à situação de opressão e miséria das populações indígenas que, ainda hoje - quase dois séculos após as independências -, não foram resolvidos, a rebelião, liderada por Túpac Amaru, apesar da repressão violenta a que foi submetida, permanece viva, como símbolo de resistência na memória rebelde de povos latino-americanos.

GERAB, Kátia; RESENDE, Maria Angélica. A rebelião de Túpac Amaru. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 8-9.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A vida em Roma na República e no Império

Pintura romana em Pompeia mostrando cena de banquete em família. Artistas desconhecidos. Ca. 79 a.C.


Texto 1 - Os escritores romanos deixaram para as futuras gerações uma visão detalhada da vida cotidiana e de sua diversão, de suas angústias, de seus prazeres e de suas dores. Podemos praticamente sentir o gosto das refeições das pessoas comuns: o pão integral, o queijo fresco prensado a mão, os figos verdes de segunda safra e, é claro, o pequeno peixe de grande popularidade, o arenque. [...]

Natureza-morta: peixes, aves e legumes. Mosaico romano, século II. Villa em Tor Marancia, perto das catacumbas de Domitila. Artista desconhecido. 
Foto: Jastrow

 [...]

Períodos civilizados se entrelaçavam com períodos de violência. Até com escravos, podia haver civilidade e compaixão. No início do segundo século d.C., o filho de um escravo morreu e os donos de escravos encomendaram a escultura da cabeça do menino morto em bloco de mármore, acrescentando a simples mensagem em latim:

Ao mais querido dos guerreiros,
Um menino escravo,
Que viveu dois anos, dez meses e oito dias.

A criança tem um olhar inocente, orelhas longas e elegantes, boca pequena, cabelo aparado penteado até a metade da testa e - logo acima da orelha direita - um amuleto da sorte egípcio. A insígnia não denotava que a criança vivesse no Egito, que na época era uma colônia romana. O império de Roma era cosmopolita e as ideias, religiões e modas fluíam com facilidade: a cabeça dessa criança pode ser vista ainda hoje num museu de Los Angeles. (BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 69-70)

Um escravo traz ao seu mestre os tabletes para escrever. Detalhe do sarcófago do advogado Romano "Valério Petronianus" (313-320 d.C.). Artista desconhecido. 
Foto: Giovanni Dall'Orto.

Texto 2 - A casa antiga era simples, muitas delas de uma só peça; as roupas, modestas e funcionais; a alimentação, sóbria; os pais e parentes educavam os filhos sempre subordinando todas as ações aos apelos de proteção aos diferentes deuses.

A conquista de terras distantes trouxe riquezas e costumes novos. As legiões impunham pelas armas costumes romanos pelo mundo mediterrâneo e nem sempre percebiam o quanto de influências estranhas levavam ao voltar para casa.

"Adotam-se com gosto os vários tipos de sandálias e botas originárias de lugares distantes, e o couro de qualidade marroquina, da Fenícia, é o mais cotado. Bem calçada, a bela quer estar bem penteada. Como o loiro natural é raro em Roma, as damas importam a grande custo os sabonetes celtas ou germânicos que serve às gaulesas, e aos gauleses, para dar a seus cabelos essas tonalidades loiras ou ruivas que tanto surpreenderam os conquistadores. Se a tintura, à base de sebo de carneiro e de cinzas, porventura não funcionar em cabelos escuros demais, resta usar a peruca. Germanas e gaulesas fornecerão a matéria-prima. Uma falsa loira de tez escura não inspira confiança. Então, ela besunta o rosto com uma máscara, fabricada em Rodes, à base de alvaiade, um subproduto do chumbo utilizado até a época moderna. E os perfumes? As romanas são loucas por eles, embora Cícero gostasse de dizer que uma mulher cheira bem quando não cheira a nada. Preferem as essências de rosas, flores cultivadas na região de Nápoles, mas há também essência de íris, produzida na Grécia, de açafrão, da Cilícia ou de Rodes, flores da vinha cipriota, da manjerona grega". (BERNET, Anne. Uma superpotência em ação. In: Revista História Viva. São Paulo: Duetto, ano 1, n. 2, dez. 2003. p. 66-67)

Afresco romano em Pompeia. O afresco retrata o padeiro Terêncio Neo com sua esposa. Os dois personagens, de origem humilde, subiram na escada social: mostra Terêncio Neo com um rolo de papiro na mão, enquanto sua esposa segura uma tabuleta encerada. Artista desconhecido.

A Roma que sucedeu à destruição de Cartago, que submeteu a Espanha, a Macedônia, a Grécia e outras terras, é outra completamente.

Arrogância, prepotência, luxo, corrupção e exploração de escravos caracterizam a vida romana. [...] nos impressionamos com a grandiosidade das construções e a pompa dos chefes vitoriosos. [...]

"Depois das guerras de conquista, a sociedade romana passou a ter verdadeiros fascínio pela cultura grega. Foram feitas traduções de obras de Homero para o latim, e o teatro tornou-se um dos maiores divertimentos dos romanos, sendo muito apreciadas as obras de Plauto. A história romana recebeu um tratamento mais sistemático com o grego Políbio. Na pintura, os murais receberam forte influência grega.

A partir da instauração do império de Otávio Augusto, a cultura foi abandonando suas características helenísticas e adquirindo um caráter mais romanizado. Nesse período, houve um verdadeiro surto de construções arquitetônicas e de embelezamento urbano, que tomou conta de quase todas as províncias. [...]


Os romanos apreciavam as lutas entre gladiadores e também as corridas de bigas (carros de guerra puxados por dois cavalos) e os combates com feras [...].


Os banhos públicos romanos eram ponto de encontro onde se tratava de tudo: política, negócios e amor". (PEDRO, Antonio et alli. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 81.)



Batalha entre habitantes de Pompeia e Nucéria no anfiteatro de Pompeia. Afresco romano de Pompeia.. Artista desconhecido. Foto: WolfgangRieger

A expansão no Mediterrâneo cobriu Roma de glórias e riquezas, mas foi feita com a devastação da classe média. Afastando os mais ricos dos mais pobres, e com a ampliação do número de escravos trazidos das guerras, é fácil imaginar a vida do povo. Isso explica em parte a corrupção, as guerras civis por ambições, a indisciplina pela compra de favores, as violências. Era o ambiente para a implantação de governos autoritários, fossem para proteger seus interesses e dos grupos de apoio, fossem para tirar o povo do caos de que se aproximava.

O Império, mesmo sob uma tentativa de preservação da República, ampliou o poder central a ponto de invadir até o campo religioso. Da apoteose foi fácil chegar à divindade.

Em suma, Roma, na sua história antiga, parece muito com pessoas que vemos em todas as épocas – durante o período de formação, a simplicidade da vida e a pureza dos ideais fazem delas grandes esperanças de seu grupo. Na proporção em que se desenvolvem, contudo, os ideais vão sendo soterrados pelos prazeres fáceis de alcançar com a riqueza acumulada, até que nada mais resta daquela pessoa jovem...

[...]


Crianças brincando. Mármore, século II d.C. Artista desconhecido. Foto: Marie-Lan Nguyen

"[...] A grande maioria da população casava-se de maneira mais simples e informal: decidiam viver juntos e, após um ano, eram considerados casados. [...] A sociedade romana era patriarcal: todo o poder estava com o pai de família, e a esposa era considerada formalmente como sua propriedade. Na prática, a mulher romana tinha diversas prerrogativas, algumas citadas por Caio: podia viver com um homem, constituir família e não passar à família do homem, não se casando oficialmente.


O casamento “pela farinha”, de caráter religioso e político, era o matrimônio da reduzida aristocracia romana: apenas esse tipo de união garantia a nobreza da linhagem de sangue. A cerimônia de compra simbólica representa um terceiro tipo de casamento. Menos informal e menos popular do que o reconhecimento do vínculo conjugal por uso ou posse, não possuía a complexidade da união “pela farinha”, sendo o casamento próprio dos plebeus enriquecidos. Dessa forma, podemos encarar os três tipos de casamento como representativos de três grandes grupos sociais: pobres, ricos e nobres. [...] (FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Roma: vida pública e vida privada. São Paulo: Atual, 1994)


Trabalhadores colocando as roupas para secar. Afresco romano na loja do tintureiro Veranius Hypsaeus,  Pompeia. Artista desconhecido


BERNET, Anne. Uma superpotência em ação. In: Revista História Viva. São Paulo: Duetto, ano 1, n. 2, dez. 2003. p. 66-67.
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Roma: vida pública e vida privada. São Paulo: Atual, 1994.
GASMAN, Lydinéa e FONSECA, James Braga Vieira da. História Geral 1 – Antiga e Medieval. Rio de Janeiro: MEC/FENAME, 1971. p. 101-103.
PEDRO, Antonio et all. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005.

sábado, 22 de outubro de 2011

Tradições asiáticas: a esfera chinesa e o Japão

Tokugawa Ieyasu

日本の

O fluxo e refluxo do poder imperial chinês não afetaram muito a duradoura influência da civilização e da cultura chinesa por toda a grande região da Ásia Oriental sobre a qual a China foi tantas vezes e durante tanto tempo o poder supremo. [...] Burma, por exemplo, que sob muitos aspectos faz parte da esfera indiana, no entanto é habitada por povos cuja língua é (como o tai e o vietnamita) "sínica" - da mesma família do chinês. Mais a leste, apesar da ainda óbvia influência da China no Japão e na Coréia, as línguas destes países têm traços do grupo altaico não-sínico (falado pelos povos turcos). Toda a região tende a ser densamente povoada, fato parcialmente explicado pela capacidade de muitos lugares dessa região quente e úmida de produzirem duas colheitas por ano devidas a um trabalho intensivo. Portanto, é uma área de rica variedade de costumes e culturas [...].

As relações formais da China, diferentes das culturais, com os seus vizinhos imediatos, sempre flutuaram de acordo com o seu poder militar. Os Sui estabeleceram o controle sobre o norte do Vietnã (Annam), fizeram conquistas no Tibete e submeteram o ramo oriental dos povos turcos. [...] A Coréia se tornou um Estado vassalo no Período T'ang [...].

[...] Os Sung, por sua vez, foram menos bem-sucedidos ao lidar com os seus vizinhos bárbaros do que os seus antecessores, e na verdade tiveram que pagar tributos a alguns deles. [...] No final, no entanto, não foi a administração de vizinhos vassalos e tributários que propiciou à China imperial um problema insolúvel, mas uma raça bárbara que veio de bem longe. Em 1557 um grupo de portugueses estabeleceu o primeiro assentamento europeu permanente na China, onde ficaram por muito tempo.

* O Japão. Mais ou menos na mesma época, outros portugueses conseguiram sucesso em penetrar no Japão, a mais importante das terras de culturas distintas dentro da esfera de civilização dos chineses [...]. Como o Japão é uma ilha, o mar o protegeu - nunca foi invadido com sucesso - e ajudou a alimentar o seu povo. [...] Por um longo tempo o Japão foi capaz de extrair do exterior o que precisava, enquanto mantinha afastado o que não precisava. Foi também o mar que fez dos japoneses marinheiros [...].

A Coréia é a terra do continente asiático mais próxima do Japão, e os japoneses sempre foram muito sensíveis com relação àquele país. Numa certa época, no século VIII d.C., governantes japoneses mantiveram um território ali [...]. Mas a China foi durante muito mais tempo a soberana nominal da Coréia e sempre foi o poder estrangeiro cujo comportamento importava mais do que qualquer outro para o Japão. Desde tempos muito remotos a China influenciou profundamente o Japão. Embora seus idiomas sejam diferentes, tanto japoneses como chineses são de origem mongol [...]. Nos tempos pré-históricos a tecnologia do bronze parece ter passado da China para o Japão. Posteriormente, depois do colapso dos Han, quando os japoneses começaram a demonstrar muito mais interesse pela Coréia, multiplicaram-se rapidamente os contatos com a grande civilização continental. O título de imperador dado ao governante do Japão, junto com o confucionismo, com o budismo, com o conhecimento do trabalho em ferro, tudo passou da China para o Japão. Os ceramistas chineses foram para o Japão em data muito remota, ali estabelecendo fornos e casando com as nativas, de onde brotaram muitas realizações artísticas do Japão. A escrita chinesa foi adaptada para escrever a língua japonesa e o governo também começou a mostrar traços da influência chinesa. Nos séculos VI e VII, quando a influência chinesa estava no auge, estadistas japoneses reformadores fizeram grandes esforços para estabelecer um governo centralizado, com um serviço civil nos moldes chineses, baseado no mérito e não na origem, e com um imperador que fosse um verdadeiro governante e não apenas o chefe do clã mais respeitado.

Tudo isto pode dar a impressão de que o Japão tomou emprestado do exterior tudo o que o transformou numa nação civilizada. Dada a magnitude da China T'ang e à frequente evidência da influência budista na arte japonesa, seria fácil compreender se isto fosse verdade, mas de fato isto não é assim: as raízes do governo e da civilização japonesa são internas.

As primeiras crônicas japonesas (compiladas no século VIII) explicam como a terra e o povo do Japão foram feitos pelos deuses, mas a mais antiga e segura cronologia provém de fontes chinesas e coreanas de três séculos antes. Mostra que no início do século V o governo já era centrado num imperador. Supunha-se que ele fosse descendente de uma deusa-sol e exercesse uma chefia geral sobre a família nacional japonesa, a partir dos seus domínios ancestrais, situados no que mais tarde seria a província de Yamato. Esta família nacional era organizada em clãs, principais unidades da sociedade japonesa [...]. 

Entre 500 e 1500 houve dois importantes períodos, onde os clãs individuais dominaram o Japão. No século VIII os Fujiwara chegaram ao topo. Nos dois ou três séculos seguintes eles efetivamente controlaram os imperadores por meio de alianças matrimoniais e relacionamentos que se seguiram. No Período Fujiwara, a capital imperial era Heian, atual Kioto (ou Quioto), onde vivia o imperador, cumprindo o seu pesado cerimonial e os seus deveres religiosos. Mas o poder dos Fujiwara decaiu. Houve uma luta entre alguns clãs, e um general rude e capaz, Minamoto Yoritomo, assumiu o poder em 1185; foi o início da ascendência dos Minamoto (período em geral descrito como Período Kamakura, a partir do distrito onde se encontravam as principais terras dos Minamoto). Os próprios Minamoto abdicaram no século XIV, e o Japão se dissolveu em violentas e sangrentas guerras civis até o século XVI.

* O xogunato. À primeira vista o xogunato não parece muito interessante. Assemelha-se às lutas de barões e grandes famílias da Europa medieval. De fato, foi uma época importante, em que o Japão se desenvolveu em linhas muito peculiares. Para começar [...] o poder imperial mingou e permaneceu nas mãos dos nobres [...]. As funções se tornaram hereditárias, e o direito de arrecadar impostos imperiais foi garantido aos que desfrutavam dos favores dos Fujiwara. Esse eclipse dos imperadores se completou no Período Fujiwara (de 1185 a 1333), quando o governo efetivo passou para o "xogum" (comandante-chefe) Minamoto, que governava em nome do imperador, mas que de fato era independente e acompanhava os interesses do seu próprio clã, cujas terras não ficavam na área de Heian, mas de Kamakura. [...]

[...] na maior parte desse período os japoneses só tinham tido um problema militar "nacional": conter os bárbaros ainos [...]. Muitos japoneses pareciam contentes em aceitar a autoridade do clã, da família e do culto nacional, o xintoísmo.

Outra importante tendência nesses séculos dirigiu-se a uma sociedade muito mais militarizada, em que as virtudes marciais de lealdade, resistência e bravura passaram a ser tidas em grande conceito. Em parte isto aconteceu porque a pequena nobreza e os fidalgos rurais se tornaram mais independentes à medida que a era Fujiwara chegava ao fim. As guerras civis em que os guerreiros se empenhavam para servir aos seus senhores como criados fortaleceu grandemente isso. [...] No Japão, aos poucos emergiu a mais respeitada classe abaixo da grande nobreza: a dos samurais, cujos ideais cavalheirescos desde logo serviram de inspiração aos patriotas japoneses e também muitas vezes ajudaram a tornar a sociedade japonesa muito violenta.

A admiração japonesa pelo guerreiro continuou com um crescente senso de superioridade e invencibilidade militar, que muito se deveu à resistência bem-sucedida a duas tentativas de invasão mongol, a primeira em 1274 e a segunda em 1281. Houve enormes combates, com expedições bem equipadas (entre outras coisas, os mongóis usaram a tecnologia chinesa e catapultas para lançar bombas que explodiam no ar). Na segunda tentativa a frota mongol foi efitivamente destruída e afundou numa tempestade - o camicase, ou "vento divino", visto como intervenção celestial em favor do Japão.


Invasão mongol em 1274 e 1281 repelida com êxito

Neste cenário, a sorte dos simples camponeses do Japão só mudou para pior. Por um longo tempo a economia não avançou muito: tecnicamente, a agricultura permaneceu o que sempre fora e não houve crescimento urbano como na China. O Japão conseguiu aos poucos produzir mais alimentos, mas principalmente com o aumento gradual do tamanho das propriedades, e portanto das áreas cultiváveis, e não por meio de avanços técnicos. O camponês pagava pesados impostos, em geral ao seu senhor, a quem o xogunato concedia o direito de cobrar, e cuidava das plantações de arroz que forneciam a maior parte da alimentação dos japoneses. No século XV as coisas pioraram rapidamente. Houve pragas e miséria, os camponeses formaram ligas para se proteger, sob a liderança de guerreiros desempregados, e seguiram-se rebeliões.

No entanto, nesta pobreza apoiava-se uma brilhante civilização. Sob o domínio Fujiwara, o brilho ficou restrito ao círculo da Corte imperial, mas depois chegou a ser repartido por toda a classe dominante. Gradualmente o Japão afastou as influências culturais chinesas ou as reformas segundo as suas necessidades. Apareceram a literatura japonesa e o drama - combinação única de poesia, mímica e música, levada a efeito com elaborados figurinos e máscaras. É interessante notar que alguns dos mais famosos livros japoneses tenham sido escritos por mulheres da Corte Heian [...].

Algumas das mais belas obras de arte provém desta cultura. Os artistas japoneses sempre enfatizaram a proporção, a simplicidade, a perfeita habilidade manual, e demonstraram isto nas cerâmicas, na pintura, nos trabalhos em laca, na tecelagem em seda, bem como em artes muito mais caracteristicamente japonesas, como os arranjos florais, o paisagismo e as belas espadas produzidas pelos armeiros. Grandes artistas desfrutavam de admiração e fama amplamente difundidas. Todas as artes chegaram a uma elevada perfeição durante o mais anárquico período da História do Japão, apesar do prejuízo econômico e social causado pela guerra civil.


Horyu-ji, um dos mais antigos monumentos de madeira no mundo, é um Patrimônio Mundial da UNESCO

Alguns dos belos objetos produzidos pelos japoneses eventualmente começaram a ser vendidos nos mercados externos. No século XV a China era um importante cliente, e os monges budistas desempenharam importante papel no comércio com o Japão. Inevitavelmente o interesse foi despertado e mais cedo ou mais tarde as pessoas queriam saber mais sobre aquele império de ilhas remotas de onde provinham tais tesouros. Entre os curiosos estavam os europeus, e os primeiros a chegar foram os portugueses [...]. Outros logo os seguiram. Na época, as condições internas do Japão não impediam o avanço dos estrangeiros. Nagasaki, uma pequena aldeia, foi franqueada aos portugueses em 1570 por um magnata já convertido ao cristianismo. No entanto, além da fé os intrusos também trouxeram armas de fogo, cujo primeiro impacto na sociedade japonesa seria inflamar ainda mais o apetite por lutas internas. Numa retrospectiva, a avidez com que os japoneses adotaram as novas armas parece um presságio do que aconteceria dois séculos e meio depois: o mais respeitado e bem motivado de todos os processos de modernização deliberada de um povo não europeu.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 331-338.