O plantio e o trato da cana-de-açúcar significavam a possibilidade de participar ativamente na estrutura de poder colonial. Como era, porém, a vida social dos primeiros senhores de engenho? De que era feito o seu cotidiano e que tipo de problemas enfrentavam? Se aceitarmos a opinião dos letrados da época, podemos afirmar que, apesar da aparência contrária, mesmo os fazendeiros ricos alimentavam-se mal, comendo dura carne de vaca. Só uma vez ou outra, degustavam frutos. Mais raramente ainda, os legumes. A falta de boa comida era compensada pelos excessos de doces: goiabadas, marmeladas, doces de caju e mel de engenho, alfenins e cocadas. Quando da passagem de um padre, abriam-se, com esforço, as despensas e matavam-se os animais de criação: patos, leitões e cabritos. Em Pernambuco, conta-nos um cronista, "escravos pescadores" eram, nestas ocasiões, encarregados de buscar "todo gênero de pescado e marisco". A abundância registrada em alguns engenhos não era a norma. Os que se davam ao luxo de mandar vir alimentos do Reino consumiam víveres malconservados. O senhor de engenho sofria doenças do estômago, atribuídas, por doutores da época, não à precária alimentação, mas aos "maus ares" do trópico. A saúva, as enchentes ou a seca dificultavam ainda mais o suprimento de víveres frescos. A sífilis marcava-lhes o corpo, deixando-o vincado com suas chagas.
Mapa de Pernambuco, Willem J. Blaeu. O mapa destaca o engenho: casa de caldeira, moendas e casa grande.
A maior parte dos engenhos aninhava-se na mata, não muito distante dos centros portuários, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem-vestidos de capa verde e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas famintas, alimentadas num labor que, às vezes, durava dia e noite, oito e nove meses. E eles não deviam afastar-se muito do litoral, sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de exportação, não poderem competir com os fazendeiros mais próximos do mercado, cujo produto não se amesquinhava com as despesas de transporte. [...]
No interior das verdadeiras fortalezas de adobe e taipa, que eram as casas grandes, vigiam a simplicidade e até o desconforto. O mobiliário era pobre e escasso: catres, baús, arcazes e cabides. Todas peças toscas feitas pelo carapina do engenho. Alguns preferiam a doçura das redes, solução refrescante nas noites quentes. Varandas entaladas no meio da fachada principal e pequenos alpendres davam ao senhor de engenho a vista sobre sua terra, cana e gente. [...] Não faltavam, contudo, observadores da época, capazes de entusiasmar-se com a imponência do conjunto: "engenho de água muito adornado de edifícios", "engenho com grandes edifícios e uma igreja" [...]. À rígidez da casa opunha-se, em dias de festa, o exagero das vestimentas: "vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso tem muito excesso [...] os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos" [...]. Os casamentos festejavam-se [...] com banquetes, touradas, jogos de canas e argolinhas, e vinho de Portugal. Muitos batizavam seus engenhos com o nome de santos protetores [...]. Outros tinham nomes africanos [...]. Outros ainda lhes davam nomes de frutas e árvores [...].
No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se em sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo, entretanto, uma atividade doméstica - costura, doçaria, bordados - alternada com práticas de devoção piedosa. Na sua ausência, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona-de-casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.
Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras, e não faltavam os que "se infiltravam manhosa e furtivamente" - no entender de um observador, em 1635 - em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil, na sua forma clássica, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. [...]
A empresa do açúcar não envolvia apenas senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando, ao senhor de terras, seus serviços. Eram mestres-de-açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e de cana e, até mesmo, desocupados compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. [...]
No que exatamente consistiam os engenhos? Em algo mais do que as gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. [...] A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. [...] A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos revezavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdada dos mouros, as rodas d'água chegavam ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. [...]
O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre, cada qual pousado sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso, escolhiam-se para essa tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldereiros e tacheiros. [...] Muito valorizado era o "mestre-de-açúcar", cujo mister era "dar ponto às meladuras" ou "achar o pulso aos açúcares". [...] Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em fôrmas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. [...] No interior desses pães - nome dado às fôrmas -, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou no lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias, para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos; e bangüês, para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.
Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: primeiramente o indígena e depois o africano. [...] A importação de africanos cobria a lacuna decorrente da falta de mão-de-obra, uma vez que epidemias e a mortalidade ligada ao trabalho forçado e ao rompimento com estruturas tradicionais de vida social, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. [...] Se por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII no planalto paulistano absorvido pela produção de trigo, por outro lado, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.
Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos, sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar à divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano, Freguesia, os encontramos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, arrais de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como "objeto" era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. [...] Mais eficiente seria dar "algumas varadas com cipó às costas". Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados "aquês", feijões, arroz e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho e, por extensão, em maior ou menor quantidades, o dos escravos também. Carne de vaca ou de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava grandes problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. [...] A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los "indecentemente vestidos" [...]. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calças, permanecendo o torso nu.
Escravos distinguiam-se em "boçais" - como eram chamados os recém-chegados da África - e "ladinos", os africanos já aculturados e entendendo o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos "crioulos", ou seja, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas, e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos reservava-se o trabalho mais árduo. [...]
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 57-63.
No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se em sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo, entretanto, uma atividade doméstica - costura, doçaria, bordados - alternada com práticas de devoção piedosa. Na sua ausência, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona-de-casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.
Uma senhora brasileira em seu lar, J. B. Debret
Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras, e não faltavam os que "se infiltravam manhosa e furtivamente" - no entender de um observador, em 1635 - em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil, na sua forma clássica, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. [...]
A empresa do açúcar não envolvia apenas senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando, ao senhor de terras, seus serviços. Eram mestres-de-açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e de cana e, até mesmo, desocupados compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. [...]
No que exatamente consistiam os engenhos? Em algo mais do que as gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. [...] A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. [...] A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos revezavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdada dos mouros, as rodas d'água chegavam ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. [...]
O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre, cada qual pousado sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso, escolhiam-se para essa tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldereiros e tacheiros. [...] Muito valorizado era o "mestre-de-açúcar", cujo mister era "dar ponto às meladuras" ou "achar o pulso aos açúcares". [...] Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em fôrmas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. [...] No interior desses pães - nome dado às fôrmas -, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou no lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias, para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos; e bangüês, para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.
Carro de bois, Frans Post
Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: primeiramente o indígena e depois o africano. [...] A importação de africanos cobria a lacuna decorrente da falta de mão-de-obra, uma vez que epidemias e a mortalidade ligada ao trabalho forçado e ao rompimento com estruturas tradicionais de vida social, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. [...] Se por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII no planalto paulistano absorvido pela produção de trigo, por outro lado, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.
Carregadores de caixas de açúcar, J. B. Debret
Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos, sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar à divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano, Freguesia, os encontramos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, arrais de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como "objeto" era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. [...] Mais eficiente seria dar "algumas varadas com cipó às costas". Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados "aquês", feijões, arroz e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho e, por extensão, em maior ou menor quantidades, o dos escravos também. Carne de vaca ou de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava grandes problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. [...] A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los "indecentemente vestidos" [...]. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calças, permanecendo o torso nu.
Escravos distinguiam-se em "boçais" - como eram chamados os recém-chegados da África - e "ladinos", os africanos já aculturados e entendendo o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos "crioulos", ou seja, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas, e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos reservava-se o trabalho mais árduo. [...]
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 57-63.
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