Castigados pela fome e marcados pela varíola, dezenas de
sertanejos ouviam com atenção o profeta de barbas longas. Não era um cangaceiro.
Em vez da espingarda papo-amarelo, empunhava um crucifixo. Não usava camisa
listrada, nem calça de brim cáqui, como Lampião, mas uma túnica de algodão
azul. Na mão não havia nenhum punhal de 78 cm de lâmina: apenas um velho cajado. O
"santo" anunciava um mundo novo:
- Em 1898 há de rebanhos mil correr da praia para o
sertão. Então o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão! Em 1899 ficarão
as águas em sangue. Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim
do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes!
As profecias eram feitas por Antônio Mendes Maciel, o
Antônio Penitente, o Antônio Beato, o Antônio Conselheiro. Um cearense que
caminhava pelos sertões anunciando o fim do mundo e o "novo século",
um santo que todos queriam ouvir.
Antônio Conselheiro
Na feira semanal de Bom Conselho, uma cidadezinha do
interior baiano, Conselheiro aconselhou:
- Ninguém deve pagar imposto pro governo da República!
Deus é o nosso verdadeiro Rei, só a Ele devemos prestar contas!
Quem já não acreditava nas autoridades seguiu o Conselheiro.
Muita gente! Gente que sentia que era preciso mudar a vida. Antônio Conselheiro
dava asas aos sonhos dos miseráveis do sertão. As águas do rio Vaza-Barris
virariam leite, suas barrancas seriam transformadas em pão-de-milho... Delírio
na cabeça, pé na estrada: homens e mulheres abandonavam fazendas e juntavam-se
ao beato andarilho.
- Não podemos tolerar esses elementos perniciosos. Vão
ter que obedecer as leis e as autoridades constituídas!, dizia enfurecido o
presidente do Estado da Bahia.
A primeira tentativa de chamar os penitentes à ordem foi
mal-sucedida. Trinta praças da polícia foram derrotados.
Depois desse choque, o Conselheiro e seus seguidores
decidiram ocupar uma fazenda abandonada, junto ao rio Vaza-Barris. Nascia o
povoado de Belo Monte ou Arraial de Canudos. Nele chegaram a viver 30 mil
sertanejos. Como no Quilombo dos Palmares, duzentos anos antes, os sertanejos
construíram sua própria comunidade, plantaram, criaram, fizeram trocas com as
cidades vizinhas.
O Arraial de Canudos
O governo não podia tolerar esse "mau exemplo"!
Mandou uma tropa com cem soldados. Morreram dezenas de sertanejos, mas o
batalhão foi rechaçado. [...]
Começava a guerra do fim do mundo. Em sua segunda investida
contra Canudos, o governo mandou seiscentos homens, soldados, armados até com
canhão. Foram novamente vencidos e ainda deixaram o canhão.
A terceira expedição foi comandada pelo coronel Moreira
César [...].
- Avança, fraqueza do governo!, gritavam os
defensores de Canudos.
A força armada do governo avançou e perdeu, mais uma vez...
[...]
O famoso coronel foi derrotado com seus mil e trezentos
homens. As autoridades do governo não entendiam onde aqueles "fanáticos,
ignorantes e preguiçosos" arranjavam tanta força para resistir.
As vitórias dos "fanáticos" não eram, porém, obra
da sorte. O Arraial de Canudos organizava-se a cada dia [...].
Mas o governo dispunha de recursos muito maiores que os
sertanejos: tinha um exército profissional e armas modernas e poderosas como os
canhões...
[...]
Em 1897, o Ministro da Guerra, marechal Carlos Bittencourt,
organizou a quarta e mais bem equipada campanha contra Canudos: oito mil
soldados e diversos canhões. No mês de outubro, as tropas concluíram o cerco ao
arraial, bombardeando-o, horas seguidas, com seus canhões... Canudos foi
arrasado. Mulheres e crianças, vendo os homens caírem, pegaram em armas e
investiram cegamente sobre os pelotões de soldados armados até os dentes. Tudo
em vão: a vila santa ficou em ruínas. O rio por onde corria leite e mel ficou
com suas águas turvas de sangue. Os prisioneiros foram degolados.
[...]
Ainda na República Velha, poucos anos depois do extermínio
de Canudos, estourou um outro conflito. No Sul do Brasil também havia gente
inconformada:
- A monarquia é uma coisa do céu: o primeiro governo que
nós sabia que tinha era o Império, e esse é que estamos esperando!
Foi a Guerra do Contestado.
O nome foi esse porque a região - rica em erva-mate e
madeira - era disputada pelo Paraná e por Santa Catarina. Nessa região tão
cobiçada viviam milhares de pessoas pobres. Eram posseiros, que cultivavam a
terra sem ter o título de propriedade. Na sua maioria, vinham de fazendas ou
das linhas de estrada-de-ferro que estavam sendo construídas.
Esse povo pobre começou a ser pressionado a sair da região.
A terra era propriedade da Southern Brazil Lumber & Colonisation,
que queria montar suas serrarias! E também da Brazil Railway, que
queria o progresso com seus caminhos-de-ferro!
Para os sertanejos do Contestado isso não era justo:
- Nóis não tem direito de terra e tudo é pras gente da
Oropa!
O governo estava do lado das Companhias e dos coronéis, que
também queriam tirar os posseiros de lá. Os padres da Igreja Católica
preferiram ficar do lado dos poderosos, e alguns pagaram por isso. [...]
[...]
No lugar dos padres, o povo do Contestado seguia os monges,
gente saída de seu próprio meio, que defendia seus interesses, principalmente o
direito à terra. Como Antônio Conselheiro, os monges prometiam, para breve, a
criação de um reino de justiça, fartura e paz para os irmãos.
Assim foi José Maria, o monge líder da primeira irmandade
rebelde. Ele morreu porém, nos campos de Irani, na área contestada, depois de
um ataque das tropas do governo do Paraná.
Monge José Maria
Reagrupados em Taquaraçu, em 1913, os irmãos não tiveram
mais sossego: sofreram ataques do Exército, da polícia e dos jagunços dos
coronéis.
Mas em Caraguatá, onde se fixaram, eles se tornavam tão
numerosos que conseguiram interromper, por algum tempo, o tráfego da
estrada-de-ferro. Lá eles organizaram uma comunidade onde as crianças eram
consideradas santas e as procissões eram acompanhadas por um intenso
foguetório. Vez por outra, os posseiros saqueavam alguma grande fazenda e
promoviam festas, com fartura para todos.
A alegria dos pobres durou pouco. Uma força de seis mil
soldados, apoiada pela aviação de bombardeio, aniquilou os rebeldes. Em 1916
foi preso Adeodato, o último líder dos sertanejos.
Vou pedi meu Padim Ciço
Vou pedi com devoção
Padim Ciço neste mundo
É a nossa sarvação
Cura espinhola caída
Sabe fazê oração
Tira demonho do corpo
Afugenta tentação
Vou pedi meu Padim Ciço
Pra minha água rezá
Tirá quebranto da égua
Outras mazela tirá
Vou pedi meu Padim Ciço
Pra minha égua benzê
Ela anda descadeirada
D'oio direito não vê
Os romeiros pediam com a boca, com os olhos, com as mãos. E
tinham, no sul do Ceará, quem velasse por eles: o padre Cícero Romão Batista.
Não era um Lampião, não era um Conselheiro, não era um José Maria ou um
Adeodato. Era um homem da lei e da ordem, amigo dos coronéis, prefeito de
Juazeiro, vice-presidente do Ceará, líder político da República Velha.
O "Padim Ciço" era, no entanto, um padre que não
ficava na sacristia e, por isso, conhecia as misérias e crendices de sua gente.
Curava doentes, encomendava defuntos, fazia rezas. Milagreiro!, dizia
o povo.
Padre Cícero
A Igreja Católica não aceitou esse padre - ele foi
excomungado no final da década de 1920. Mas os políticos casacas sempre o
exaltaram. A fortuna também andou ao seu lado: no seu testamento constavam
cinco fazendas, trinta sítios e mais de quinhentos prédios, inclusive o da
cadeia de Juazeiro...
O beato Lourenço, admirador do padre Cícero, não seguiu
inteiramente o seu mestre. Organizou sua irmandade no sítio do Caldeirão e
construiu ali um pequeno mundo de maior igualdade entre seus membros. Os dois
mil moradores do Caldeirão ergueram barragens, um engenho, um tear para fazer
suas roupas. E plantaram milho, arroz, mandioca, cana, feijão e algodão.
Criaram cavalos, vacas, porcos e até aves raras. [...] O produto era dividido
igualmente [...].
Para o governo, a experiência do Caldeirão não prestava:
estava tirando mão-de-obra das fazendas de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte, Piauí, Maranhão e do próprio Ceará, diziam.
Por isso, foram enviadas tropas para a região, que ficava
próxima à cidade do Crato. A população retirou-se pacificamente, e os soldados
queimaram centenas de choupanas.
Depois de perambular sem terra e sem teto, os penitentes se
estabeleceram em Pau de Colher, no interior da Bahia. Um novo líder, Severino
Tavares, não tinha a mansidão do preto Lourenço. Jamais abandonaria aquele chão
sem resistir!
- Esmaguem os fanáticos!, ordenou o Ministro da
Guerra, depois que dez soldados foram mortos a golpes de facão e foice no
Arraial de Pau de Colher.
No sertão baiano, no mesmo ano (1938) em que Lampião e seus
cangaceiros foram dizimados, quatrocentos seguidores dos beatos Lourenço e
Severino eram mortos.
ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 2: a República.
Petrópolis: Vozes, 1991. p. 30-35.
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