"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 14 de julho de 2015

O trabalhador na Antiguidade

Artesãos egípcios. Tumba de Nebamum e Ipuki, Tebas, XVIIIª dinastia. Artista desconhecido.

"Sê escriba. Não terás canseiras e ficarás preservado de outros tipos de trabalho. Não terás de transportar a enxada, a picareta e o cesto. Não terás de guiar o arado e serás poupado de todos os tipos de canseira.
Deixe que te recorde o estado miserável do camponês: quando chegam os funcionários para fixar a taxa da colheita, as serpentes já levaram metade do cereal e o hipopótamo comeu o resto. O pássaro voraz é uma calamidade para os camponeses. O trigo que restava na eira desapareceu, os ladrões levaram-no. Não pode pagar o que deve pelos bois que pediu emprestados; além disso, os bois morreram de tanto lavrarem e debulharem. E já o escriba atraca à margem do rio para calcular o imposto sobre a colheita, com um séquito de servos armados de bastões e de núbios com ramos de palmeira".
(Sátira dos ofícios. Citado por CAMINOS, Ricardo A. "O Camponês". In: DONADONI, Sérgio (dir.). O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994)

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Os artesãos da Antiguidade (escultores, tecelões, pintores, ourives, ferreiros, carpinteiros, barqueiros e outros) dependiam dos reis e dos nobres para as encomendas, a obtenção de matéria-prima (muitas vinham de terras distantes) e de ferramentas para sua atividade. Caprichavam no seu trabalho para garantir os pedidos e assegurar seus ganhos. Alguns, por sua habilidade e criatividade, passavam a morar no palácio e se tornavam profissionais exclusivos do rei e de sua corte. Para esses clientes tão especiais, os artesãos e artesãs usavam as melhores matérias-primas. As madeiras nobres ou raras, o mais puro metal, o couro mais macio, a argila mais fina e os melhores corantes eram, em geral, de uso exclusivo de camadas privilegiadas da população, que se interessavam mais pela raridade e luxo da peça do que por sua praticidade. Era uma forma de ostentar riqueza e poder. Daí a História ter conservado o nome dos usuários das peças – espada do rei tal, anel da princesa fulana de tal etc. -, enquanto aqueles que as manufaturaram ficaram no anonimato.

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Muitas pessoas apreciam só as peças caras expostas em um museu ou nas vitrines das lojas, reproduzindo a mesma atitude de reis e nobres do passado, que desvalorizavam o trabalhador artesanal e braçal. Também ignoram que muitos objetos ainda em uso atualmente são iguais aos primeiros feitos há séculos ou milênios. O arado, por exemplo, usado hoje por lavradores pobres em muitos países, é do mesmo tipo do utilizado pelos primeiros agricultores neolíticos.

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No passado, as dificuldades de obtenção de matérias-primas de qualidade e o trabalho escravo foram causas do retardamento tecnológico. Governantes e senhores de escravos não se interessavam por inventos ou melhorias técnicas destinadas a poupar seus escravos do trabalho duro e estafante. O arado, a cerâmica, o tear, as ferramentas, a metalurgia e o tingimento pouco evoluíram durante milhares de anos, desde a sua criação no final da Pré-história.

Por outro lado, as exigências do consumidor de poucas posses contribuíram muito para o desenvolvimento técnico e tecnológico. Homens e mulheres do povo desejavam artigos tão bonitos e vistosos como as jóias e as túnicas de cor púrpura dos nobres, obviamente sem pagar os preços exorbitantes que custavam. Isso estimulou comerciantes e artesãos a procurarem alternativas mais baratas para atendê-los. O vidro, por exemplo, quando bem confeccionado, substituía a pedra preciosa em colares, brincos e pulseiras. Uma mulher do povo podia comprar uma jóia falsa por um preço modesto e ficar muito satisfeita com o resultado. Para tingir tecidos, os artesãos encontraram um substituto para a púrpura: a urzela, um vegetal que nasce sobre rochas e árvores que, ao ser molhada com urina, torna-se um excelente corante vermelho. Seu custo era baixo e atendia à clientela de poucas posses.

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RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 142-143.

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