[...] Ao se tornar dependente da carne, o Homo erectus se
transformou num parasita das manadas desse jogo - e, portanto, precisava
segui-las ou explorar novos territórios onde procurá-las - e era mais provável
se estabelecer e se multiplicar em alguns locais do que em outros. Assim , foram
estabelecidas as bases de moradia. [...]
A família que vivia na base de moradia também se
desenvolvia. A existência desta base já tornou mais provável que a futura
família humana fosse muito diferente das famílias animais. Isto ficou mais
evidente quando os antecessores do Homo sapiens se tornaram maiores. Por
exemplo, cabeças maiores, necessárias para acomodar cérebros maiores,
significavam que as crianças seriam maiores antes do nascimento e isto se
refletia em mudanças na pelve feminina que permitiram o nascimento de bebês com
crânios maiores e também foi necessário um período mais longo de crescimento
depois do nascimento para que as crianças amadurecessem. Nenhuma mudança
fisiológica na fêmea podia fornecer aos fetos acomodação que os protegesse até
a maturidade física. Em consequência, as crianças humanas - diferentes da
maioria dos mamíferos, cujos filhotes amadurecem em meses - necessitam de
cuidados maternos até bem depois do nascimento. Uma infância prolongada,
dependência e apoio às crianças pela família e pela sociedade durante a
imaturidade significava que as famílias humanas se desenvolveram de forma muito
diferente das famílias dos outros animais. Em parte isto era resultado de uma
seleção genética: grandes ninhadas deixaram de ser a maneira pela qual se
assegurava a sobrevivência das espécies. Em vez disso, as sociedades humanas
aprenderam a dar atenção maior e mais demorada à proteção, à alimentação e ao
treinamento dos seus jovens [...]. Apareceram diferenças mais agudas entre os
padrões de vida de machos e fêmeas. As mães hominídeas eram muito mais tolhidas
do que as mães de outros primatas e os pais passaram a se envolver mais na
provisão de comida por meio da caça, o que demandava uma atividade árdua e
prolongada da qual as fêmeas não podiam participar facilmente.
Outro resultado da infância prolongada foi que o aprendizado
e a memória se tornaram cada vez mais importantes. Com o Homo erectus parece
que ultrapassamos outra etapa. O aprendizado consciente e a reflexão sobre o
meio ambiente substituíram de alguma forma a programação genética dos
antecessores da humanidade. Em algum lugar [...] aconteceu uma mudança, onde a
tradição e a cultura - as coisas que os membros de uma comunidade aprendem um
dos outros - assumem o lugar da herança fisiológica como fator de seleção
evolucionária. É óbvio que a herança fisiológica ainda permanece muito
importante. Por exemplo, é claro que importou muito para a futura forma da
sociedade humana que um grupo genético particular há muito tempo ainda tenha
dado à nossa espécie uma característica sexual única. Entre todos os outros
mamíferos, tanto a atração sexual exercida pela fêmea sobre o macho quanto a
sua fertilidade restringiam-se a certos períodos. Diz-se que nestas épocas os
animais estão "no cio" e nessa condição as suas vidas ficam muito
desintegradas. Se precisassem tomar conta de filhos, com certeza não poderiam
continuar a alimentá-los. As fêmeas humanas não funcionam assim, e isto é muito
importante. Se fossem como os outros animais, os filhotes, de amadurecimento
vagaroso, teriam sido negligenciados na infância e dificilmente sobreviveriam.
Pode ter levado um milhão de anos mais ou menos para surgir um grupo genético
com características sexuais que dispensassem o "estro", como se diz,
mas quando isto aconteceu foram enormes as consequências para o futuro
desenvolvimento da humanidade, o que afetou a nossa maneira de viver muito mais
do que admitimos. O fato de as fêmeas humanas atraírem continuamente os machos
humanos (e não apenas em períodos em que cada sexo era regido por mecanismos
automáticos de atração) deve ter transformado a escolha individual num fator
muito mais importante no acasalamento. É o começo de uma estrada muito longa e
obscura que leva a noções posteriores de amor sexual. Junto com a infância mais
longa e a menor dependência, possibilitadas por melhor coleta de alimentos,
também aponta para uma unidade familiar humana mais estável e mais duradoura -
pai, mãe e prole - que permanecem juntos e constituem uma verdadeira
comunidade. [...]
[...] A cultura e a tradição pouco a pouco assumiram o lugar
da mutação genética e da seleção natural como fonte primária de mudança entre
os hominídeos - ou, em outras palavras, o que era aprendido estava se tornando
tão importante para a sobrevivência quanto o que era biologicamente herdado. Os
grupos com melhor "memória" de meios eficientes de fazer coisas e com
crescente poder de refletir sobre elas levariam adiante a evolução humana com
mais rapidez. [...]
[...] Tudo o que podemos dizer é que a vida do Homo erectus
se parece mais com a dos humanos do que a dos pré-humanos. Fisicamente, o
cérebro da criatura era de uma ordem de magnitude comparável à nossa, mesmo que
o seu crânio fosse ligeiramente diferente na forma. O Homo erectus fabricou
ferramentas de diferentes estilos e em diferentes locais, construiu abrigos,
tomou posse de refúgios naturais explorando o fogo e dali saiu para caçar e
coletar comida. Fez isto em grupos, mostrando alguma disciplina, e foi capaz de
transmitir ideias por meio da fala, fundou uma base de moradia e uma distinção
entre as atividades de machos e de fêmeas. Pode ter havido outras
especializações: portadores de fogo ou criaturas mais velhas cujas memórias os
transformavam em "bancos de dados" das suas "sociedades", e
que talvez tenham sido, até certo ponto, sustentados pelos outros.
[...] Quando o Homo sapiens evoluiu a partir de uma ou mais
subespécies do Homo erectus, já estavam à sua disposição um novo tipo físico,
grandes realizações e uma herança. Os indivíduos chegaram nus ao mundo, mas a
humanidade não. Ela trouxe consigo do passado tudo o que a constitui.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001. p. 34-7.
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