"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Família e sexualidade na sociedade primitiva

[...] Ao se tornar dependente da carne, o Homo erectus se transformou num parasita das manadas desse jogo - e, portanto, precisava segui-las ou explorar novos territórios onde procurá-las - e era mais provável se estabelecer e se multiplicar em alguns locais do que em outros. Assim, foram estabelecidas as bases de moradia. [...]

A família que vivia na base de moradia também se desenvolvia. A existência desta base já tornou mais provável que a futura família humana fosse muito diferente das famílias animais. Isto ficou mais evidente quando os antecessores do Homo sapiens se tornaram maiores. Por exemplo, cabeças maiores, necessárias para acomodar cérebros maiores, significavam que as crianças seriam maiores antes do nascimento e isto se refletia em mudanças na pelve feminina que permitiram o nascimento de bebês com crânios maiores e também foi necessário um período mais longo de crescimento depois do nascimento para que as crianças amadurecessem. Nenhuma mudança fisiológica na fêmea podia fornecer aos fetos acomodação que os protegesse até a maturidade física. Em consequência, as crianças humanas - diferentes da maioria dos mamíferos, cujos filhotes amadurecem em meses - necessitam de cuidados maternos até bem depois do nascimento. Uma infância prolongada, dependência e apoio às crianças pela família e pela sociedade durante a imaturidade significava que as famílias humanas se desenvolveram de forma muito diferente das famílias dos outros animais. Em parte isto era resultado de uma seleção genética: grandes ninhadas deixaram de ser a maneira pela qual se assegurava a sobrevivência das espécies. Em vez disso, as sociedades humanas aprenderam a dar atenção maior e mais demorada à proteção, à alimentação e ao treinamento dos seus jovens [...]. Apareceram diferenças mais agudas entre os padrões de vida de machos e fêmeas. As mães hominídeas eram muito mais tolhidas do que as mães de outros primatas e os pais passaram a se envolver mais na provisão de comida por meio da caça, o que demandava uma atividade árdua e prolongada da qual as fêmeas não podiam participar facilmente.


Idade da Pedra: o festim, Viktor M. Vasnetsov

Outro resultado da infância prolongada foi que o aprendizado e a memória se tornaram cada vez mais importantes. Com o Homo erectus parece que ultrapassamos outra etapa. O aprendizado consciente e a reflexão sobre o meio ambiente substituíram de alguma forma a programação genética dos antecessores da humanidade. Em algum lugar [...] aconteceu uma mudança, onde a tradição e a cultura - as coisas que os membros de uma comunidade aprendem um dos outros - assumem o lugar da herança fisiológica como fator de seleção evolucionária. É óbvio que a herança fisiológica ainda permanece muito importante. Por exemplo, é claro que importou muito para a futura forma da sociedade humana que um grupo genético particular há muito tempo ainda tenha dado à nossa espécie uma característica sexual única. Entre todos os outros mamíferos, tanto a atração sexual exercida pela fêmea sobre o macho quanto a sua fertilidade restringiam-se a certos períodos. Diz-se que nestas épocas os animais estão "no cio" e nessa condição as suas vidas ficam muito desintegradas. Se precisassem tomar conta de filhos, com certeza não poderiam continuar a alimentá-los. As fêmeas humanas não funcionam assim, e isto é muito importante. Se fossem como os outros animais, os filhotes, de amadurecimento vagaroso, teriam sido negligenciados na infância e dificilmente sobreviveriam. Pode ter levado um milhão de anos mais ou menos para surgir um grupo genético com características sexuais que dispensassem o "estro", como se diz, mas quando isto aconteceu foram enormes as consequências para o futuro desenvolvimento da humanidade, o que afetou a nossa maneira de viver muito mais do que admitimos. O fato de as fêmeas humanas atraírem continuamente os machos humanos (e não apenas em períodos em que cada sexo era regido por mecanismos automáticos de atração) deve ter transformado a escolha individual num fator muito mais importante no acasalamento. É o começo de uma estrada muito longa e obscura que leva a noções posteriores de amor sexual. Junto com a infância mais longa e a menor dependência, possibilitadas por melhor coleta de alimentos, também aponta para uma unidade familiar humana mais estável e mais duradoura - pai, mãe e prole - que permanecem juntos e constituem uma verdadeira comunidade. [...]

[...] A cultura e a tradição pouco a pouco assumiram o lugar da mutação genética e da seleção natural como fonte primária de mudança entre os hominídeos - ou, em outras palavras, o que era aprendido estava se tornando tão importante para a sobrevivência quanto o que era biologicamente herdado. Os grupos com melhor "memória" de meios eficientes de fazer coisas e com crescente poder de refletir sobre elas levariam adiante a evolução humana com mais rapidez. [...]

[...] Tudo o que podemos dizer é que a vida do Homo erectus se parece mais com a dos humanos do que a dos pré-humanos. Fisicamente, o cérebro da criatura era de uma ordem de magnitude comparável à nossa, mesmo que o seu crânio fosse ligeiramente diferente na forma. O Homo erectus fabricou ferramentas de diferentes estilos e em diferentes locais, construiu abrigos, tomou posse de refúgios naturais explorando o fogo e dali saiu para caçar e coletar comida. Fez isto em grupos, mostrando alguma disciplina, e foi capaz de transmitir ideias por meio da fala, fundou uma base de moradia e uma distinção entre as atividades de machos e de fêmeas. Pode ter havido outras especializações: portadores de fogo ou criaturas mais velhas cujas memórias os transformavam em "bancos de dados" das suas "sociedades", e que talvez tenham sido, até certo ponto, sustentados pelos outros.

[...] Quando o Homo sapiens evoluiu a partir de uma ou mais subespécies do Homo erectus, já estavam à sua disposição um novo tipo físico, grandes realizações e uma herança. Os indivíduos chegaram nus ao mundo, mas a humanidade não. Ela trouxe consigo do passado tudo o que a constitui.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 34-7.

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