Mais grave talvez do que todos esses ataques é o fato de a
Antiguidade fornecer o meio de dispensar o cristianismo. Deseja alguém dirigir
uma casa, educar filhos? Eis Xenofonte. Governar? Há Aristóteles, Platão,
Tácito. Conhecer as leis do Universo? Que leia Plínio, Lucrécio. Instruir-se
acerca dos limites entre a natureza e o milagre? Cícero escreveu o De
divinatione. Refletir sobre a imortalidade da alma? Aí estão o Fédon e o Sonho
de Cipião. Sobretudo os Antigos proporcionavam doutrinas que permitiam ao homem
bastar-se a si próprio para enfrentar as dificuldades, as penas, as angústias
da vida, doutrinas onde a razão soberana dita os atos que uma vontade livre
executa. Para Epicuro, a felicidade constitui-se de dois estados: "Corpo
sem dor, alma sem inquietação". Estes dois estados são a voluptuosidade,
objetivo essencial de nossa natureza, primeiro bem do homem. A razão sã dita os
objetos e as opiniões que é preciso evitar ou procurar a fim de atingir tais
estados. A razão levar-nos-á a rejeitar grandes prazeres, se maiores penas
devem segui-los, ou a aceitar grandes e prolongadas penas, se prazeres hão de
acompanhá-las. A razão mostrar-nos-á que a frugalidade, a honestidade, a
justiça nos conduzem aos estados de onde surge a voluptuosidade, que a
felicidade e a virtude formam duas irmãs inseparáveis. A moral do prazer
convertia-se, assim, num prudente cálculo utilitário. [...]
Outros preferiam os estóicos, Epicteto, Sêneca, cujo
estoicismo se matiza de epicurismo. Existem coisas que dependem de nós, a
opinião, o querer, o desejo, a aversão e, em geral, os nossos julgamentos e as
nossas representações. Somos os seus amos. Nossa imaginação nos dá o poder de
representar as coisas no espírito, de vê-las como boas ou más, de desejá-las ou
rejeitá-las, de suportá-las ou repeli-las. A faculdade de julgar e querer é
absolutamente livre.
Existem coisas, entretanto, que não dependem de nós, o
corpo, os bens, a reputação, a dignidade. Elas nos são estranhas. Dependem dos
outros.
Se desejamos aquilo que só depende de nós, isto é, bem
julgar e conformar nossa vontade ao nosso julgamento, seremos felizes, pois a
felicidade consiste em obter o que desejamos.
Os estóicos não eram raros entre os magistrados e os
fidalgos. Até um religioso pediu que o amortalhassem com um volume de Sêneca do
qual jamais se separara. Mais numerosos, contudo, eram os epicuristas. O
epicurismo transformou-se facilmente num utilitarismo que comprazia ao espírito
burguês. [...]
MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995. p. 340-341. (História geral das civilizações, 9).
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