"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Robin Hood: a rainha dos bosques de Sherwood

João Pequeno e Robin Hood, Frank Godwin

É Primavera nos bosques de Sherwood. As aves cantam e esquilos correm pelos ramos das velhas árvores. Pelo caminho aberto na floresta avança o anafado frei Tuck desfrutando o ar puro e o sol quente que espreita pela alta ramagem. De repente, ouvem-se alegres risadas e gemidos que vêm duma moita próxima. O frade levanta um pouco o seu hábito, avança em bicos dos pés e, com um gesto rápido, afasta os arbustos, que descobrem um par de robustos arqueiros regozijando-se com as calças pelos tornozelos. Robin dos Bosques e João Pequeno, literalmente surpreendidos, interrompem o seu jogo e olham frei Tuck com cara de caso.

"Então rapazes! - o clérigo repreende-os carinhosamente. - Deixem de travessuras, que daqui a bocado não têm força para puxar o arco..."

A cena anterior é imaginária, mas o cenário e as personagens pertencem à conhecida lenda inglesa de Robin dos Bosques. E até pode ser credível a circunstância narrada, de acordo com os últimos documentos encontrados sobre a figura e as façanhas do pitoresco herói. Como todos lemos em criança ou vimos nos inúmeros filmes dedicados às suas aventuras, Robin dos Bosques era um jovem nobre da Inglaterra do século XII, corajoso protector dos desprotegidos, leal súbdito do nosso conhecido Ricardo Coração de Leão e ardente amante de uma jovem chamada maid (donzela) Mariana. Sabemos já que, quando o rei teve de partir para a Terceira Cruzada, ficou como regente o seu irmão João Sem Terra que, por necessidade da lenda, é pintado como um tirano cruel sem escrúpulos, opressor do povo e presumível usurpador do trono. Robin refugia-se no bosque de Sherwood com um punhado de arqueiros determinados a dedicar-se a atacar os odiados cobradores de impostos, a roubar os ricos para dar aos pobres, a expor ao ridículo João e a seduzir a bela Mariana com as suas proezas. Em suma, um puro protótipo de líder viril, modelo de galã fantasiado por muitas gerações de jovens românticas.

Já se disse que os historiadores britânicos gostam de demolir mitos da sua própria história, sobretudo quando a derrocada é consequência de assuntos menos santos, que escandalizam o seu rígido establishment. Robin dos Bosques teve o azar de cair nas mãos de Stephen Knight, professor de história da literatura na Universidade de Cardiff. Este senhor realizou um profundo estudo das antigas canções e narrativas sobre o popular arqueiro emplumado e chegou à conclusão que a este interessavam muito mais os músculos atraentes dos seus companheiros João Pequeno ou Will Scarlet, que os encantos femininos da donzela Mariana. ão inquietante afirmação, expressada recentemente numa douta e controversa conferência do autor na Universidade de Glamergan é apoiada por várias baladas do século XIV, primeiros registros escritos da história de Robin dos Bosques. Encontrou versos tão sugestivos como estes:

"Tinha Robin dos Bosques cerca de vinte anos
Quando conheceu João Pequeno;
Um agradável companheiro de viagem
Porque era um jovem alegre e robusto."

A balada não diz expressamente que ambos os jovens eram homossexuais, mas Knight vê nesses documentos claros indícios e ressonâncias homossexuais. "Robin dos Bosques e os seus companheiros viviam isolados numa comunidade exclusivamente masculina, sem participação feminina", explica o estudioso. "A balada contém abundante simbologia erótica e, se não chega a dizer abertamente que o herói era gay, deve-se ao clima moral da época." Segundo Knight, as árvores do bosque são um evidente símbolo fálico, assim como as flechas e as espadas. A isto poderíamos juntar a famosa cena em que João Pequeno e frei Tuck lutam empunhando compridas varas rígidas, em equilíbrio sobre... um grosso tronco que atravessa o rio!

Há também outros aspectos da lenda de Robin dos Bosques que Knight contradiz, baseando-se nas mesmas baladas. Descobriu, por exemplo, que a personagem não tinha origem na nobreza, mas em estratos sociais bastante mais baixos. Filho de um simples alabardeiro de origem campesina, o jovem Robin vagueava pelos bosques de Nottingham e do condado de Yorkshire, comandando uma pandilha de bandoleiros que assaltavam quem se arriscasse a passar por ali. Nunca lhe passou pela cabeça repartir os seus despojos de guerrilha com os pobres, embora tenha ficado famoso pela astúcia e truques para enganar a autoridade.

Tão-pouco parece ser certo que Robin utilizasse a sua astúcia para visitar às escondidas a donzela Mariana, porque nem essa nem qualquer outra donzela são mencionadas nessas fontes como eventuais noivas do herói. Knight sugere que esta personagem feminina foi adicionada no século XVI para dotar a lenda de romantismo heterossexual. O investigador também questiona a relação histórica entre o arqueiro e os reis Ricardo e João, já que se situa a existência de Robin dos Bosques entre um e dois séculos mais tarde. O seu colega Barry Dobson, professor de história medieval em Cambridge, concorda com Knight acerca de as baladas revelarem um Robin dos Bosques pelo menos ambíguo e acrescenta que entre os séculos XII e XIII se fez sentir em Inglaterra maior opressão sobre os homossexuais, muitos dos quais passaram a viver fora da lei em bandos clandestinos.

Apesar de tudo, os investigadores revisionistas não questionaram a existência do ladrão dos bosques, embora assinalem que as baladas sobre as suas aventuras foram enriquecidas por histórias aproveitadas de outras personagens semelhantes ou da própria imaginação dos trovadores, como no caso da inexistente donzela Mariana.

As afirmações de Knight e Dobson não foram muito bem recebidas por quem está actualmente relacionado com a personagem. A secretária da Robin Hood Society, Mary Chamberlain, acusou os investigadores de prejudicarem uma figura admirada em todo o mundo. "As crianças adoram brincar ao Robin dos Bosques", manifestou, "e essas declarações podem provocar muito dano".

Por sua partem o dirigente gay Peter Tatchell afirmou que Robin dos Bosques já estava há demasiado tempo "no armário". "Já é altura", disse, "de as lições escolares reconhecerem a contribuição dos homossexuais na história."

Ainda que o senhor Tatchell tenha muita razão, a contribuição de Robin dos Bosques para a história, independentemente de ser gay ou não, parece discutível. Se João Sem Terra não chegou a usurpar o trono, não foi por causa dos bandos de ladrões dos bosques, mas do ineficaz apoio de Filipe Augusto, da negação do imperador alemão em exigir a abdicação de Ricardo e de outras circunstâncias, entre elas a atitude decidida da rainha-mãe.

O certo é que, se a virilidade de Robin dos Bosques tivesse sido colocada em causa desde o início, esta personagem não teria protagonizado a lenda folclórica inglesa mais emblemática depois da saga de Artur nem reforçado a mítica aura de Ricardo Coração de Leão. Ambos são duas faces, uma guerreira e outra galante, da tradição nacionalista britânica. Esse sentimento de superioridade foi fundamental para justificar a impunidade que se outorgou a si mesma a "pérfida Albion" nas suas correrias e rapinas por todo o mundo.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 110-114.

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