É Primavera nos bosques de Sherwood. As aves cantam e
esquilos correm pelos ramos das velhas árvores. Pelo caminho aberto na floresta
avança o anafado frei Tuck desfrutando o ar puro e o sol quente que espreita
pela alta ramagem. De repente, ouvem-se alegres risadas e gemidos que vêm duma
moita próxima. O frade levanta um pouco o seu hábito, avança em bicos dos pés
e, com um gesto rápido, afasta os arbustos, que descobrem um par de robustos
arqueiros regozijando-se com as calças pelos tornozelos. Robin dos Bosques e
João Pequeno, literalmente surpreendidos, interrompem o seu jogo e olham frei
Tuck com cara de caso.
"Então rapazes! - o clérigo repreende-os
carinhosamente. - Deixem de travessuras, que daqui a bocado não têm força para
puxar o arco..."
A cena anterior é imaginária, mas o cenário e as personagens
pertencem à conhecida lenda inglesa de Robin dos Bosques. E até pode ser
credível a circunstância narrada, de acordo com os últimos documentos
encontrados sobre a figura e as façanhas do pitoresco herói. Como todos lemos em
criança ou vimos nos inúmeros filmes dedicados às suas aventuras, Robin dos
Bosques era um jovem nobre da Inglaterra do século XII, corajoso protector dos
desprotegidos, leal súbdito do nosso conhecido Ricardo Coração de Leão e
ardente amante de uma jovem chamada maid (donzela) Mariana. Sabemos já que,
quando o rei teve de partir para a Terceira Cruzada, ficou como regente o seu
irmão João Sem Terra que, por necessidade da lenda, é pintado como um tirano
cruel sem escrúpulos, opressor do povo e presumível usurpador do trono. Robin
refugia-se no bosque de Sherwood com um punhado de arqueiros determinados a
dedicar-se a atacar os odiados cobradores de impostos, a roubar os ricos para
dar aos pobres, a expor ao ridículo João e a seduzir a bela Mariana com as suas
proezas. Em suma, um puro protótipo de líder viril, modelo de galã fantasiado
por muitas gerações de jovens românticas.
Já se disse que os historiadores britânicos gostam de
demolir mitos da sua própria história, sobretudo quando a derrocada é
consequência de assuntos menos santos, que escandalizam o seu rígido
establishment. Robin dos Bosques teve o azar de cair nas mãos de Stephen
Knight, professor de história da literatura na Universidade de Cardiff. Este
senhor realizou um profundo estudo das antigas canções e narrativas sobre o
popular arqueiro emplumado e chegou à conclusão que a este interessavam muito
mais os músculos atraentes dos seus companheiros João Pequeno ou Will Scarlet,
que os encantos femininos da donzela Mariana. ão inquietante afirmação,
expressada recentemente numa douta e controversa conferência do autor na
Universidade de Glamergan é apoiada por várias baladas do século XIV, primeiros
registros escritos da história de Robin dos Bosques. Encontrou versos tão
sugestivos como estes:
"Tinha Robin dos Bosques cerca de vinte anos
Quando conheceu João Pequeno;
Um agradável companheiro de viagem
Porque era um jovem alegre e robusto."
A balada não diz expressamente que ambos os jovens eram
homossexuais, mas Knight vê nesses documentos claros indícios e ressonâncias
homossexuais. "Robin dos Bosques e os seus companheiros viviam isolados
numa comunidade exclusivamente masculina, sem participação feminina",
explica o estudioso. "A balada contém abundante simbologia erótica e, se
não chega a dizer abertamente que o herói era gay, deve-se ao clima moral da
época." Segundo Knight, as árvores do bosque são um evidente símbolo
fálico, assim como as flechas e as espadas. A isto poderíamos juntar a famosa
cena em que João
Pequeno e frei Tuck lutam empunhando compridas varas rígidas,
em equilíbrio sobre... um grosso tronco que atravessa o rio!
Há também outros aspectos da lenda de Robin dos Bosques que
Knight contradiz, baseando-se nas mesmas baladas. Descobriu, por exemplo, que a
personagem não tinha origem na nobreza, mas em estratos sociais bastante mais
baixos. Filho de um simples alabardeiro de origem campesina, o jovem Robin
vagueava pelos bosques de Nottingham e do condado de Yorkshire, comandando uma
pandilha de bandoleiros que assaltavam quem se arriscasse a passar por ali.
Nunca lhe passou pela cabeça repartir os seus despojos de guerrilha com os
pobres, embora tenha ficado famoso pela astúcia e truques para enganar a
autoridade.
Tão-pouco parece ser certo que Robin utilizasse a sua
astúcia para visitar às escondidas a donzela Mariana, porque nem essa nem
qualquer outra donzela são mencionadas nessas fontes como eventuais noivas do
herói. Knight sugere que esta personagem feminina foi adicionada no século XVI
para dotar a lenda de romantismo heterossexual. O investigador também questiona
a relação histórica entre o arqueiro e os reis Ricardo e João, já que se situa
a existência de Robin dos Bosques entre um e dois séculos mais tarde. O seu
colega Barry Dobson, professor de história medieval em Cambridge, concorda com
Knight acerca de as baladas revelarem um Robin dos Bosques pelo menos ambíguo e
acrescenta que entre os séculos XII e XIII se fez sentir em Inglaterra maior
opressão sobre os homossexuais, muitos dos quais passaram a viver fora da lei
em bandos clandestinos.
Apesar de tudo, os investigadores revisionistas não
questionaram a existência do ladrão dos bosques, embora assinalem que as
baladas sobre as suas aventuras foram enriquecidas por histórias aproveitadas
de outras personagens semelhantes ou da própria imaginação dos trovadores, como
no caso da inexistente donzela Mariana.
As afirmações de Knight e Dobson não foram muito bem
recebidas por quem está actualmente relacionado com a personagem. A secretária
da Robin Hood Society, Mary Chamberlain, acusou os investigadores de
prejudicarem uma figura admirada em todo o mundo. "As crianças adoram
brincar ao Robin dos Bosques", manifestou, "e essas declarações podem
provocar muito dano".
Por sua partem o dirigente gay Peter Tatchell afirmou que
Robin dos Bosques já estava há demasiado tempo "no armário". "Já
é altura", disse, "de as lições escolares reconhecerem a contribuição
dos homossexuais na história."
Ainda que o senhor Tatchell tenha muita razão, a
contribuição de Robin dos Bosques para a história, independentemente de ser gay
ou não, parece discutível. Se João Sem Terra não chegou a usurpar o trono, não
foi por causa dos bandos de ladrões dos bosques, mas do ineficaz apoio de
Filipe Augusto, da negação do imperador alemão em exigir a abdicação de Ricardo
e de outras circunstâncias, entre elas a atitude decidida da rainha-mãe.
O certo é que, se a virilidade de Robin dos Bosques tivesse
sido colocada em causa desde o início, esta personagem não teria protagonizado
a lenda folclórica inglesa mais emblemática depois da saga de Artur nem
reforçado a mítica aura de Ricardo Coração de Leão. Ambos são duas faces, uma
guerreira e outra galante, da tradição nacionalista britânica. Esse sentimento
de superioridade foi fundamental para justificar a impunidade que se outorgou a
si mesma a "pérfida Albion" nas suas correrias e rapinas por todo o
mundo.
TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial
Estampa, 2006. p. 110-114.
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