"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

As mulheres embarcadas nas naus lusitanas

Nu feminino, Amedeo Modigliani


Em meio a uma população quase que exclusivamente masculina, quando imperava uma proporção de mais de cinquenta homens para cada mulher, o gênero feminino se tornava um foco de tensão a bordo. A ideia de violentar as órfãs, esposas e noivas em viagem instigava a imaginação dos marujos, que sempre que possível chegavam às vias de fato.

Percebendo isso, a Coroa tentou não só desencorajar a ida de portuguesas para a Índia como também legislou especificamente contra o embarque de raparigas solteiras e de mulheres desacompanhadas de um membro masculino da família. No entanto, não conseguiu impedir a presença de mulheres a bordo, pois a lei era contornada com facilidade e muita frequência.

Além disso, nada obstava que um chefe de família e a esposa pudessem levar consigo não só filhas como também sobrinhas e primas. Havia ainda moças que, buscando marido nas colônias, faziam-se passar por familiar ou criada de um chefe de família complacente.

Apesar da preocupação da Coroa em "preservar a honra" das moças solteiras, não se criou qualquer legislação para proteger as mulheres casadas ou as celibatárias (viúvas ou freiras) das investidas masculinas. Tampouco existia qualquer tipo de proteção oficial à honra das órfãs do rei, originárias de Porto e Lisboa, enviadas para as colônias pela própria Coroa para casar-se com homens da baixa nobreza em além-mar.

As únicas proteções efetivas contra o assédio sexual eram a alta condição social da passageira ou sua faixa etária. Em concordância com o costume observado na Idade Média, a menos que a vítima fosse menor de 14 anos, o estupro de mulheres de baixa extração nunca era punido por lei. Além de os violadores não serem castigados, as vítimas acabavam depreciadas no mercado matrimonial e várias delas, entregues pelas autoridades a um bordel público, já que, acreditava-se, não encontrariam mais quem as quisesse como esposa. Quando as vítimas pertenciam a um estamento mais elevado, apesar de sujeitas a igual depreciação social, os violadores, quando identificados, recebiam punição exemplar. Portanto, o simples fato de uma mulher pertencer à nobreza inibia o assédio dos que temiam os castigos da justiça.

No pesadelo dos navios, as ciganas, por serem as mais indefesas, eram as vítimas preferenciais, embora, de fato, e conforme aumentavam as privações, os marinheiros iletrados não guardavam respeito por mulher alguma.

A cobiça pelo corpo feminino não poupava nem mesmo as religiosas embarcadas. Em certa ocasião. uma freira precisou ser vestida de rapaz para evitar atrair atenções indesejáveis. Mulheres acompanhadas pelo marido tampouco estavam isentas. Em 1601. mulher e filhos de Ventura da Mota, meirinho-geral da frota da Índia, foram confinados para sua própria segurança em uma câmara trancada a cadeado pelo capitão, que ordenou que ninguém se aproximasse mais de cinco palmos da porta.

As órfãs do rei eram vítimas constantes de violações coletivas nos navios. Eram garotas entre 14 e 17 anos. e atraíam a atenção dos homens do mar com o frescor de sua tenra idade. Grupos de marinheiros mal-intencionados espreitavam essas meninas por algum tempo, até que surgisse a oportunidade ideal de burlar a vigilância dos religiosos que as guardavam para, então, atacá-las. À vítima só restava calar. Queixando-se, a pobre coitada poderia ser repudiada pelo futuro marido assim que chegasse à colônia e enviada de volta ao reino para ser metida em um bordel.

O fato de os estupros serem comumente praticados não por indivíduos isolados, mas, sim, por grupos de homens tornava muito difícil a identificação dos responsáveis. Se isso era verdade em terra, mais ainda nos navios, onde o anonimato da violência somava-se à "lei do silêncio" ou à cumplicidade entre marujos e soldados, criando a certeza de impunidade, que, por sua vez, perpetuava a prática.

Os marinheiros pareciam ter uma libido insaciável. Os estupros tornaram-se tão habituais que alguns capitães chegaram a proibir a presença de mulheres a bordo. Em certa ocasião, após aprisionar uma embarcação pirata que carregava donzelas para serem vendidas como escravas, em vez de fazê-las passar ao seu navio e, em seguida, queimar o dos piratas, como era usual, o capitão optou por deixar as mulheres no barco inimigo. junto com dois padres e alguns soldados de confiança, forçando um pequeno grupo de marinheiros a conduzi-lo até um porto, onde pudesse fazê-las desembarcar.

PESTANA, Fábio. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 106-107.

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