Mas o fato de seguir a natureza, de buscar a voluptuosidade,
era facilmente interpretado, em muitos, pela sensibilidade barroca como
desencadeamento dos instintos, como paixão de uma liberdade infrene, como
rejeição de quaisquer limites. As menoridades, as regências, o tempo de Maria
de Médicis, o de Ana d'Áustria, são épocas de galanterias escabrosas, de loucas
aventuras, em que gentis-homens como o Conde Bellegarde junto de Henrique IV,
os Duques de Guise, o Marechal de Roquelaure, dados às emboscadas, aos saques,
às violações, aos incêndios, movidos por ásperas paixões, vivem em orgias
furiosas, rixas, duelos, bebedeiras e blasfêmias. Jogam, renegam a Deus [...].
É da moda, entre certa juventude, considerar a religião uma trapaça. No sítio
de La Rochelle ,
alguns oficiais zombaram tanto de um de seus companheiros que falara de Deus,
que o obrigaram a solicitar licenciamento. O mesmo acontecia durante a Fronda.
A irreligião tornava-se notória entre a nobreza que cercava Gastão de Orléans e
Condé. Qual o seu número? Mersenne arquejava: "Só em Paris campeiam 50.000
ateus, no mínimo." Boucher, por volta de 1630, deplorava: "um milhão
de espíritos perdidos". Gritos de dor, sem valor estatístico. De 1623 a 1625, houve uma
verdadeira crise. Em dois anos apareceram o Romance de Francion, a Musa
Amalucada, o Gabinete Satírico, o Parnaso dos Poetas Satíricos, a Quintessência
Satírica. Os seus temas giravam em torno da equivalência da devoção e da
hipocrisia, do direito do prazer triunfar sobre a regra. Estabeleceu-se o
pânico. Os devotos acreditaram numa conjuração. "O ateísmo"
tornava-se um fato reconhecido, catalogado, uma força a combater.
MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995. p. 342. (História geral das civilizações, 9).
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