"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 20 de novembro de 2016

"Mais doce que o amor das mulheres"

Talvez a narração mais popular do Antigo Testamento seja a história de David e Golias, o triunfo do pequeno pastor sobre o aguerrido gigante filisteu que definiu a vitória de Israel na batalha de Terebinto. Segundo conta o Livro de Samuel, depois desta façanha, o rei Saul cumulou David de honras e convidou-o a residir no palácio. Ali, o heróico pastor e o filho primogénito do monarca estabeleceram uma íntima relação de adolescentes, que o autor bíblico anuncia sem pudor no título do capítulo 18 como "Amizade mais do que fraternal" entre David e Jónatas. E diz assim na Bíblia...

"Jónatas fez um pacto com David, porque o amava com toda a sua alma e tirou o manto que levava, e deu-o a David, assim como os seus arreios militares, o seu arco, a sua espada e o seu cinturão. David ia combater onde Saul o enviava e saía-se sempre bem." 
(1 Samuel 18: 4-5)

Os êxitos do novo capitão começaram a provocar os receios de Saul, que invejava os aplausos com que o povo aclamava David, o qual, além disso, se tinha relacionado sexualmente com o filho e brilhava em todas as batalhas como um autêntico protegido de Javé. Claro que nada era mais doloroso do que sentir-se postergado no favor do Deus de Israel. Claro que Jónatas não partilhava a opinião do pai e, sempre que podia, atirava-lhe à cara o seu ressentimento para com o belo e glorioso oficial. Porém, Saul devia ser um homem difícil e várias vezes chegou a ameaçar de morte David com a sua lança. Nessas ocasiões, o jovem tangia a harpa, imperturbável, e tocava doces melodias que acalmavam a fúria do monarca.

Saul chegou a convencer-se que David estava protegido por Javé e não se atrevia a intervir pessoalmente. Urdiu então o truque de oferecer-lhe em casamento a sua filha mais velha, Merob, para quem sendo genro do rei, pudesse comandar o exército de Israel. "Não lhe quero pôr as mãos", dizia segundo a Bíblia, "que o matem as dos Filisteus." Mas David, que pressentiu, respondeu-lhe humildemente: "Quem sou eu e o que é a minha vida ou a casa de meu pai, para que eu me torne genro do rei?" Se essa resposta provocou um suspiro de alívio no coração de Jónatas, foi porque não contava com a teimosia de seu pai. Merob acabou por se casar com outro, enquanto Saul voltava à carga oferecendo a David a mão da sua segunda filha, a princesa Micol, que, segundo parece, estava profundamente apaixonada pelo nosso herói. Então, este respondeu aos mensageiros do rei: "Parece-vos coisa fácil ser genro de rei? Eu não preciso de nada e tenho poucos bens", desculpava-se por não ter dote para oferecer à princesa. Mas também não teve em conta a persistência de Saul.

David com a cabeça de Golias e dois soldados, Valentin de Boulogne. Depois de derrotar o gigantesco Golias, o jovem David viveu um intenso romance com Jónatas, filho do rei Saul.

Sempre através de emissários, o rei fez saber a David que um herói como ele não precisava de outro dote além da prova do seu valor; por exemplo, os prepúcios de cem filisteus abatidos em combate. O texto bíblico conta assim a reacção de David: "Quando os servos disseram a David as palavras que Saul tinha dito, agradou-lhe aquela condição para ser genro do rei. E David saiu com os que estavam sob o seu comando e matou cem filisteus, tirou-lhes os prepúcios e entregou-os ao rei (1 Samuel, 18: 26-27). Não é explicado qual foi o destino do tão extravagante dote de Micol, mas o casamento desta com David não acalmou a paixão de Jónatas nem o ódio de seu pai pelo novo príncipe de Israel: "Temia-o Saul cada vez mais e toda a sua vida foi inimigo de David". Pouco depois, o monarca decidiu cortar o mal pela raiz e encarregar-se de uma vez por todas do seu genro, mas Jónatas convenceu-o a não o fazer, enquanto prevenia David, que se foi refugiar em casa de Samuel.

O resto do primeiro livro de Samuel é um enorme e animado relato das peripécias do jovem David, constantemente ameaçado e perseguido pelo seu temível sogro. Contando também sempre com a amizade "mais que fraterna" de Jónatas. Quando Saul o foi buscar a casa de Samuel em Naiote de Ramá, David foge e vai encontrar-se com o seu amigo:

"Que crime cometi eu contra o teu pai, para que me persiga até à morte?
- Não, não será assim, não morrerás. O meu pai esconder-me-ia isso? Se não me esconde nada, nem grande nem pequeno, tudo me dá sempre a saber. Por que haveria de me ocultar isto? Isso não é verdade.
- O teu pai sabe muito bem que me amas e deve ter dito: que Jónatas não fique a saber para não sofrer, mas, por Deus e pela tua vida, estou a um passo da morte." 
(Samuel, 20: 1-3)

Jónatas mostrou-se convencido com o argumento de David e, com medo de perder o seu amado, estabeleceu com ele o pacto de o manter sempre informado das intenções de seu pai. No dia seguinte, cumpriu pela primeira vez esse compromisso, salvando David de uma armadilha organizada por Saul e despediu-se do amigo com estas palavras: "Vai em paz, já que jurámos um ao outro, em nome de Javém que ele estará entre ti e mim e entre a minha e a tua descendência para sempre."

Pouco depois, David visitou o sumo sacerdote Ajimelec, no templo de Nob, a quem pediu comida e armas para se defender. Ajimelec ofereceu-lhe alojamento e entregou-lhe a espada que Golias tinha utilizado no célebre combate do vale de Terebinto. Avisaram-nos então que o rei se aproximava com as suas hostes, mas David conseguiu escapar a tempo. Saul consolou-se da sua frustração degolando o sumo sacerdote e todos os servidores do templo.

Além de excluir David da corte, Saul obrigou Micol a casar-se com outro homem, um tal Palti de Galim, de quem não existem quaisquer outros registros. É provável que Jónatas tivesse ficado feliz com aquela separação forçada, porque dadas as circunstâncias, já há muito tempo que não o via. Porém, David rapidamente esqueceu aquela perda e casou com duas mulheres em vez de uma: a bela Abigail de Nabal e Ajinoim de Jezrael. O fugitivo e os seus homens vagueavam por todo o território de Israel e de Judá, escapando ao seu infatigável perseguidor. Por duas vezes, David teve a vida de Saul nas suas mãos e de ambas as vezes impediu que os seus homens matassem o rei, por este ser "o ungido de Deus" (talvez tenha tido em conta que se tratava do pai do seu amigo). Mas os Filisteus não se preocupavam com essas coisas e, depois de derrotarem os Hebreus na batalha do monte Gelboé, executaram Jónatas e os seus dois irmãos. Quando se dispunham a fazer o mesmo com Saul, este matou-se, lançando-se sobre a lâmina da sua espada.

Quando soube da morte de Saul e de Jónatas, David cantou uma bela elegia em homenagem aos ilustres defuntos, cujos últimos versos dizem assim:

"Como sofro por ti, Jónatas, meu irmão!
Como eu te queria bem!
Para mim, o teu amor era muito doce,
Mais do que o amor das mulheres!" 
(2 Samuel: 26)

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 80-84.

Nenhum comentário:

Postar um comentário