O movimento cético contribuía para distanciar do
cristianismo baseado em
razões. O cristianismo dos libertinos pretende de um lado
que, remontando aos objetos criados ao Criador, é possível provar a existência
de Deus, de outro, que uma crítica histórica racional estabelece os fatos
históricos de onde podemos inferir a divindade de Cristo. Ora, os libertinos
eram todos pirrônicos, céticos absolutos: La Mothe Le Vayer dizia, em
1630, no diálogo de Orasius Tubero:
Toda a nossa vida, pensando bem, não passa de uma fábula;
nosso conhecimento, de uma asneira, nossas certezas, de contos; em suma, todo
este mundo não passa de uma farsa e de uma comédia perpétua.
Movidos pela sensibilidade barroca, ampliaram e
desenvolveram a lição dos grandes italianos da Renascença e de Montaigne. [...]
Desse materialismo resultavam inúmeras consequências.
Primeiro, a impossibilidade de saber algo a respeito da essência das coisas.
Nossos sentidos só nos permitem alcançar uma verdade relativa, o que nos basta
para a prática. A natureza real das coisas escapa-nos. O que valem as
especulações acerca da natureza do Ser e da natureza de Deus? O que valem mesmo
as provas da existência de Deus? O que vale esta prova da existência de Deus
pelo consentimento universal dos povos que possuiriam. todos, a ideia inata de
Deus? Não possuímos ideia inata, tudo vem dos sentidos e a imaginação combina
os dados dos sentidos de formas tão diversas que muita gente talvez não tenha
ideia alguma de Deus. Para Gassendi, tal ideia de Deus, com suas noções de infinito,
eternidade, perfeição, onipotência e bondade suprema, não é - porquanto todas
as ideias gerais procedem dos sentidos - senão a extensão e o engrandecimento
das perfeições constatadas na espécie humana. Deus é o Homem desenvolvido ao
extremo.
Provinha daí a desconfiança no tocante ao testemunho
histórico. Como fiar-se em testemunhas cujas ideias se formam de modo a
permitir tais possibilidades de erro? [...] Em geral, os fundadores e os chefes
de Império apresentam-se como órgãos de uma divindade a fim de formar sua
autoridade. Os monges da Tebaida inventava, falsas histórias de combates com o
Diabo para conquistar renome e subtrair dinheiro dos ingênuos. A conversão de
Clóvis, a vocação de Joana d'Arc, a inspiração de Maomé por Gabriel e a de
Moisés por Deus constituem subterfúgios políticos. Mas no que se transformam
então os testemunhos evangélicos e o cristianismo?
MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995. p. 337-339. (História geral das civilizações, 9).
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