"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Os fenícios

1. A Fenícia do século XX ao V - A situação do litoral sírio destinava-se a assistir a todas as invasões que desciam em direção ao sul, a servir incessantemente de campo de batalha, a sofrer as influências, sucessivas ou simultâneas, do Egito, da Ásia, dos egeus e sobretudo de Chipre, tão profundas que é praticamente impossível distinguir entre as produções da ilha e as da própria Fenícia, preferindo-se agrupá-las sob o nome de arte "ciprio-fenícia".

Até o início do segundo milênio, a influência egípcia predomina, e Biblos¹ continua a ser a primeira cidade da Fenícia, apesar do desenvolvimento de Tiro (Sur), Sídon (Saida), Aradus (Ruad), Trípoli, Berite (Beirute) e Ugarit. A da Ásia vem suplantá-la no momento das invasões, mas, ao expulsar os hicsos por volta de 1580, os faraós ocupam de novo a Fenícia com governadores e guarnições. (Nesse momento, as cidades sírias se dividem em dois grupos: o do norte, dominado por Sídon e que detesta o Egito, e o do sul, com Tiro, que lhe permanece fiel.) Em seguida, os Povos do Mar descem por sua vez, e os filisteus apoderam-se de Sídon e Tiro entre 1100 e 1090.


¹ Templo dos obeliscos, Biblos

Rapidamente reconstruídas, as cidades sírias conhecem, entre o século XII, que as liberta da influência egípcia, e o momento em que a Assíria se torna ameaçadora, um período de grande prosperidade. Tiro detém então a hegemonia (1000-500 aprox.) e realiza em seu proveito a unidade fenícia, opondo-se ciosamente ao estabelecimento de colônias gregas ou de feitorias egípcias. No interior, graças a hábeis concessões a povos mais fortes que eles, os fenícios instalam-se nas cidades onde chegam as caravanas do Oriente - Hamah, Damasco, Tapsaco, Nisídis -, e então, entre o mar e a Mesopotâmia, quase todas as trocas passam por eles.

São estabelecidas relações contínuas entre a Fenícia e o reino de Israel, principalmente sob os governos de Davi e Salomão. Hirão I, rei de Tiro (970-936), abate os mais belos cedros do Líbano e envia-os a Salomão juntamente com seus melhores operários para construir o templo de Jerusalém. É ainda ele quem fornece a Salomão os navios e as tripulações para sua expedição a Ofir. Os dois soberanos trocam cartas, e mesmo enigmas e rébus, onde provam um ao outro sua agudeza e requinte. No século seguinte, Jezabel, princesa tíria, desposa o rei de Israel, Acab (874-853), e sua filha Atalia, o rei de Judá, Jorão. Inteligentes e cultas, ambas contribuem para a penetração da influência fenícia em Israel e levam consigo seus deuses tírios. Em compensação, parece que a influência dos hebreus sobre os fenícios foi extremamente fraca, enquanto os últimos muito devem aos egípcios e aos asiáticos. Os israelitas - entre os quais se constituía o monoteísmo espiritualista, que permanece absolutamente único nos tempos antigos -, considerando-se o povo eleito, tinham tanta repugnância em difundir seu culto fora da Judéia quanto em introduzir no país os deuses estrangeiros.

Mas eis que uma nova potência, a Assíria, se empenha em estender-se na direção do mar. As expedições de Teglat Falasar (1196-1090) e, depois, de Salmanassar III, em 853, inquietaram Tiro e Sídon, que oferecem tributos. O que, aliás, não os impede de serem subjugados um pouco mais tarde; mas, sob o domínio assírio, as revoltas multiplicam-se - não raro estimuladas pelo Egito, que promete seu apoio e se omite na última hora - e são duramente reprimidas. Tiro é tomada e destruída em 702 e posteriormente em 672; Sídon, por sua vez, é tomada e arrasada em 678. Quando da queda do império assírio (612), o Egito restabelece seu domínio na Síria, mas Nabucodonosor, rei da Babilônia, triunfa em 588 sobre o Egito, a Fenícia e a Judéia e apodera-se de Tiro em 574, após um sítio de treze anos. Quando, por sua vez, a Babilônia cai, a Fenícia passa às mãos dos persas e torna-se uma satrapia; conserva, porém, uma certa independência e recusa emprestar uma frota a Cambises contra Cartago, mas essa mesma frota distingue-se em Salamina ao lado dos persas. Os fenícios, com efeito, nunca simpatizaram com os helenos e, sob o domínio persa, passam definitivamente para o lado do Oriente.

2. A expansão fenícia - No fim do segundo milênio, apesar da superioridade marítima dos egeus e de suas colônias nas costas da Anatólia, de onde alcançam facilmente os povos orientais pela rota do sul e pela Via Real, os fenícios estabelecem-se por toda parte onde é possível. Possuem em Mênfis uma feitoria, o "campo dos tírios". Ocupam, em Chipre, as cidades de Kition, Idálion, Lápetos e Amatonte, junto às jazidas de cobre ou na costa; suas ambições aí, porém, são incessantemente contrariadas pelas dos gregos, egípcios e assírios. Em Rodes, eles estabelecem-se em Ialisisos e Camiros, de onde os dórios e os cários os expulsam. Nas Cíclades e nas Espórades, deparam com a mesma concorrência e tomam consciência de que precisam procurar um campo de ação mais vasto e mais livre.

É então que o Mediterrâneo ocidental, que os progressos da navegação lhes permitem afrontar, se oferece a eles. Costeando o litoral da África, onde, desde o século XII, negociam com as caravanas do Sudão, fundam por volta de 1100 a cidade de Utica, na desembocadura do Medjerda; atingem Gibraltar e a famosa Tartesso (Társis, em fenício), perto da qual edificam Gadés (Cádiz), defronte de Lixos (El Arish), na costa da África, entre os séculos X e VIII. Em 814, diz a tradição, Elissa, rainha de Tiro, destronada por seu irmão Pigmalião, dirigiu-se à África sob o nome de Dido (a fugitiva) e fundou, não longe de Utica, a "cidade nova", Karthadast, a futura Cartago. Esta permaneceu durante muito tempo como simples colônia de Tiro, a quem pagou tributo até 574, mas, a partir do século VII, sua riqueza cintila nos túmulos da necrópole de Dermeche: jóias de ouro, bibelôs egípcios, vasos etruscos e coríntios. A própria cidade era célebre por seu duplo porto e suas poderosas muralhas, dominadas pela acrópole, erigida sobre a colina de Birsa.

A fundação de Cartago, na orla da rica planície tunisiana, encerra o período de tranquilidade na expansão fenícia. No século VIII, aparecem os etruscos e os gregos. Se os fenícios continuam a ser até certo ponto os senhores na costa da África, com Hadrumeto (Susse), Hippo Diarhytus (Bizerta), Hippo Regius (Bone)..., e na Espanha, fundam com dificuldade na Sicília Panormos (Palermo), Soloeis (Solonte) e Motia, no largo de Libeleu, pois os gregos ocupam as regiões mais férteis, a leste e ao sul. Possuem, na Sardenha, Nora, Sulcis, Cáralis (Cagliari) e as ilhas de Malta, Gaulos (Gozzo) e Pantelária; mas as costas do mar Tirreno, da Ligúria e de Provença lhes são praticamente proibidas.

No começo do século VI, a expansão dos foceus e de Marselha rumo às costas da Espanha, a tomada de Tiro em 574 e a conquista persa colocam as cidades fenícias do Ocidente em situação crítica. É então que Cartago, livre de sua metrópole, procura criar um império marítimo. Após um fracasso em 560, apodera-se em 509 da Sardenha, submete ou repele os indígenas e expulsa os colonos gregos e etruscos. Para o oeste, sua frota, com a ajuda dos etruscos, vence os foceus em Alalia (Aleria), na Córsega (535), destrói a fociana Mainaké para edificar Málaga, assenhoreia-se às Colunas de Hércules e provavelmente arruína a própria Társis por volta de 500. Na África e na Sicília, Cartago domina pouco a pouco todos os estabelecimentos fenícios: repele Dorieus de Esparta, que tentava estabelecer-se no golfo de Sirtes, na embocadura do Cínips, e funda nesse local Leptis Magna (Lebda). Mas, em 480, os cartagineses sofrem em Hímera, na Sicília, uma pesada derrota que arruína por um século suas ambições na ilha. Por fim, no curso do século V, as expedições de Himílcon ao longo da orla do oceano até Uessant, e de Hannon até o golfo da Guiné, superam os mais ousados navegadores da época.

3. A civilização fenícia - Tantas influências se mesclaram na Fenícia que é difícil falar de uma civilização fenícia, se por tal se entende um conjunto de crenças, costumes e elementos artísticos peculiares a um determinado povo.

Esse caráter compósito e essa falta de originalidade são visíveis já no segundo milênio. Em Biblos, um túmulo continha um harpé de bronze, arma puramente babilônica, incrustada de motivos egípcios em ouro. Uma taça de metal apresenta-se ornada com a espiral egéia. Uma grande jarra encerrava escaravelhos hicsos, dois cilindros da Capadócia, jóias de estilo muito variado, entre outras, um pingente redondo decorado a serrilha, segundo um processo que parece originário da Mesopotâmia. A arquitetura, depois de imitar os templos egípcios, inspirou-se nos túmulos micênicos em Ugarit (século XIV).

Lugar à parte merece o belo sarcófago do rei Ahiram² de Tiro (século XIII). A cuba maciça repousa sobre quatro leões deitados, muito orientalizantes, mas está ornada, em baixo-relevo, com cenas de oferenda ao rei, carpideiras e um friso de lótus de estilo egípcio. [...] Essa obra, associada à arte sírio-hitita, é de um vigor e de um sentimento artístico infelizmente raros na Fenícia.


² Sarcófago do rei Ahiram de Tiro

A arquitetura, nos séculos seguintes, busca o colossal: diques do porto de Tiro, muralhas de Cartago, baluarte ciclópico apoiado à montanha, perto de Sídon, onde se eleva o templo de Eshmun. O próprio santuário não passa de uma capela ornada de motivos muito compósitos: palmeiras, protomes de touros, esfinges e grifos, mais cipriotas que egípcios ou assírios. Mas é sobretudo a propósito do metal e da cerâmica que se pode falar de arte cíprio-fenícia. Distinguem-se aí elementos heteróclitos - egeus, asiáticos e egípcios -, constituindo porém um repertório característico de formas e motivos amplamente difundido.

Até o século XII, aproximadamente, os vasos cipriotas, de inspiração micênica, ornados de motivos repletos de quadrículos pretos sobre fundo branco, e às vezes de uma decoração animal ou vegetal muito estilizada, são muito distintos dos jarros, dos pequenos bilbils de gargalo deseixado e dos vasos querenados, sem decoração pintada, fabricados na Síria. A seguir, as formas e os ornamentos de Chipre penetram na Fenícia e unem-se a motivos orientais, como o dos touros justapostos.

Em compensação, desde o século XV, os magníficos vasos fenícios de metal cinzelado ou em relevo, encontrados em Biblos e Ugarit, igualam-se aos mais belos produtos cipriotas. As pateres são taças pouco profundas em bronze, ou em prata, por vezes douradas, que se encontram, a partir do século VIII, na Fenícia, em Chipre, na Assíria, na Grécia e na Itália. A decoração, formada de um motivo central e de zonas circulares concêntricas, é muito compósita: heróis lutando contra cães de caça, faraó em combate, trajes assírios, lótus do Egito e palmetas sírio-fenícias... Algumas das mais belas peças foram provavelmente executadas em Chipre, mas a maioria é constituída por obras de oficinas fenícias, exportadas para todas as partes.

A mesma inspiração compósita manifesta-se nos sinetes, nas pedra gravadas, nos marfins esculpidos, nas jóias de ouro ou de prata cinzelada, estampada, filigranada, nos pesados colares em pasta de vidro, todo um aparato luxuoso e vistoso que se encontra por todo o Mediterrâneo e até nos ombros da Dama de Elche, na Espanha.

A religião fenícia deve muito aos mitos da Caldéia e ao Egito, que erigiu no terceiro milênio um templo em Biblos. Os deuses fenícios são chamados Baal e Baalat, "senhor" e "senhora", porque é proibido pronunciar seus verdadeiros nomes. O Baal de Tiro, frequentemente assimilado a Héracles, chama-se também Melquart; a Baalat de Biblos, Ashtoret (Astartéia em grego), forma um casal divino com Adônis, deus da vegetação, cuja morte ela chora todos os anos, quando as águas da torrente Adônis (Nahs Ibrahim) se tingem de vermelho devido à argila arrastada pelas enchentes. Cartago venera Astartéia sob o nome de Tanit, um Baal Hammon frequentemente confundido com o Amon egípcio, e o deus Eshmun, que lembra Asclépio. A religião fenícia destaca-se por um aspecto rude e cruel, conservado durante muito tempo: os sacrifícios humanos foram regularmente praticados e não se podem negar as oferendas de crianças ao Molok de Cartago.

Cúpido, ávido de lucros, não raro velhaco, esse povo só tinha uma lei: a do lucro; uma autoridade: a do dinheiro. O poder pertence teoricamente a dois sufetas, como em Cartago, mas, na realidade, está nas mãos de magistrados recrutados nas famílias de armadores e de grandes negociantes; a dos Magônidas, em Cartago, deteve por muito tempo os cargos mais importantes da cidade. Tirânica e desconfiada, essa aristocracia busca antes de mais nada o enriquecimento: as feitorias e as colônias não passam de fontes de rendas e pagam tributos opressivos à metrópole; os estrangeiros são submetidos a taxas e direitos de todo tipo; os indígenas, explorados sem escrúpulos, cultivam as terras na qualidade de servos; o exército, pouco estimado, é composto de mercenários, com os quais a cidade entra frequentemente em conflito: em Hímera, combateram por Cartago líbios, iberos, sardos, corsos e lígures.

As riquezas assim defendidas vêm da agricultura, da indústria e sobretudo do comércio. A estreita planície da Fenícia possui vinhas, pomares carregados de frutas, espigas de trigo, "mais abundantes que os grãos de areia nas praias". Acrescentam-se a isso a criação e a exploração das florestas. Na Tunísia e na Sardenha, as culturas de cereais são muito desenvolvidas graças à mão-de-obra indígena; os próprios romanos traduziram um célebre tratado de agricultura de Magon.

A indústria orienta-se principalmente para o comércio e a exportação: construções navais, tecelagem do linho e da lã, fabricação de púrpura, trabalho do couro, cerâmica e trabalho do metal cinzelado, martelado ou fundido; indústria do vidro, que se inspirou no Egito, mas foi aperfeiçoada: vidro opaco, vidro tingido ou colorido na massa, pérolas e pedras de imitação; trabalho do marfim ou do ouro, ourivesaria e joalheria, fabricação de perfumes...

Esses produtos variados e muito admirados são distribuídos em toda parte pelos mercadores. A Ilíada cita o véu bordado que Hécuba oferece à deusa protetora de Tróia e o vaso cinzelado que Aquiles ganha nos jogos em homenagem a Pátroclo como obras fenícias. Esse comércio é feito por terra através de toda a Ásia Menor e por mar na orla do Mediterrâneo. Os fenícios vão buscar longe as matérias-primas ou os produtos exóticos: trigo da Sicília, da Sardenha ou do Magreb, metais da Espanha, da Etrúria ou do Cáucaso, pedras preciosas, lã e seda da Ásia, arômatas da Arábia ou do Egito, marfim, ouro, couros, escravos do Sudão ou do Oriente. Fornecem, em troca, objetos de luxo, hábeis imitações de um estilo compósito e de uma fatura quase sempre apressada, mas que satisfaz a sua clientela. Assim são as jóias delicadas realçadas por pedras, os frágeis objetos de vidro, os vasos de metal cinzelado, as armas luxuosas, os marfins perfurados, encontrados ainda hoje aonde quer que seus navios tenham atracado; juntem-se a esses artigos os produtos menos duradouros que os acompanhavam: mel da Judéia, frutos confeitados, perfumes e arômatas, couros e tecidos de lã, linho ou seda ricamente tingidos e bordados.

Tudo isso se empilhava nos portos da Fenícia, nos mercados cheirando a óleo, uvas secas e arômatas, nos cais onde se confundiam todos os idiomas e todos os povos mediterrânicos, graves egípcios vestidos de linho engomado, gregos fanfarrões, chlaina ao ombro, fenícios envergando tecidos multicores, assírios em longas vestes e a turba de estivadores e marujos com o tronco nu e queimado de sol vergando sob os fardos ou curvados sobre compridos remos.

4. Papel e influência dos fenícios - Apesar de sua ubiquidade, os fenícios quase não deixaram vestígios na civilização dos povos com os quais comerciavam, e mesmo dos que colonizaram. Na Espanha, a escultura indígena, conhecida pelas estátuas do Cerro de los Santos e da Dama de Elche, revela uma influência fenícia; a Sardenha adotou alguns cultos cartagineses, ou mesmo orientais; a África do Norte conservou por muito tempo restos da língua púnica; trata-se, porém, de regiões em que a ocupação foi completa e duradoura. Em todos os outros lugares, os fenícios não passaram de corretores do mundo mediterrânico, os intermediários entre os países orientais e ocidentais.

Essas relações com povos tão diversos e a necessidade de comunicar-se facilmente explicam o sucesso e a difusão de uma admirável invenção fenícia: a do alfabeto³, que, adotado quase imediatamente pelos gregos, se tornou o veículo do pensamento antigo, o instrumento literário do mundo mediterrânico. A despeito de Heródoto, que atribuía sua paternidade aos fenícios, supunham-se origens muito diversas para o alfabeto até a descoberta do sarcófago de Ahiram, que trazia uma inscrição alfabética da metade do século XIII. [...]


³ Inscrição em fenício e grego antigos

Certamente, nem todos os sinais empregados no sarcófago foram inventados pelos fenícios (a maioria deriva de sinais egípcios ou minóicos com valor silábico), mas constituem, pela primeira vez, um sistema reduzido a 22 letras simples e nitidamente diferenciadas que exprimem com clareza todas as articulações da língua fenícia. Os outros países mediterrânicos puderam adotá-lo facilmente, modificando ou acrescentando alguns sinais. É, pois, a esse povo egoísta e interesseiro, mas engenhoso e realista, que se deve o primeiro sistema de escrita universal.

GABRIEL-LEROUX, J. As primeiras civilizações do Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 69-78.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A época de Napoleão

"O grande homem é grande não porque suas particularidades individuais imprimam uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, mas porque é dotado de particularidades que o tornam mais capaz de servir às grandes necessidades sociais de sua época, surgidas sob a influência de causas gerais e particulares".
Georg Plekhanov

Bonaparte cruzando a passagem de Saint-Bernard Grand. Jacques-Louis David

É muito difícil prever com segurança quais serão os resultados finais de uma revolução. Quando o processo revolucionário é longo e abarca todos os setores de uma sociedade, mais difícil se torna a previsão. À medida que os acontecimentos vão se sucedendo, as reações das pessoas, dos grupos são incontroláveis. Adquirem, na maioria das vezes, rumos que nem os próprios líderes desejam.

Despedida de Napoleão para a Guarda Imperial no Cheval-Blanc, Antoine Alphonse Montfort 

Com a Revolução Francesa não foi diferente. Três anos após o início da luta armada, o país se viu mergulhado em uma profunda crise interna, sofrendo ameaças externas de todos os vizinhos conservadores. Os monarcas e os nobres temiam que os ventos revolucionários franceses os derrubassem do poder e que aquelas perigosas ideias liberais tomassem conta da cabeça dos trabalhadores e da burguesia.


O Imperador Napoleão em seu estúdio nas Tulherias, Jacques-Louis David

A República francesa, proclamada em 1702, era dirigida pelos revolucionários da ala mais moderada e com o apoio da alta burguesia que não desejava as medidas radicais da chamada ala dos jacobinos. Entretanto, de 1793 a 1794, foram os jacobinos que dominaram a Convenção e governaram o país. Mas, em 1794, novamente os moderados, chamados de girondinos, através de um golpe, tomaram o poder. Governaram até 1795 e esse período ficou chamado de República Conservadora. Não eram radicais, não defendiam os ideais dos trabalhadores e da pequena burguesia, estavam defendendo a alta burguesia: os donos de indústrias, os grandes comerciantes e os proprietários de terra.

Retrato de Napoleão Bonaparte como Primeiro Cônsul, Ingres

Os moderados criaram uma forma diferente de governar. O poder executivo ficou nas mãos de um grupo, o chamado Diretório. O poder legislativo foi exercido por dois Conselhos. Aos poucos foram acabando com os avanços revolucionários mais radicais, mas enfrentaram crises econômicas e frequentes conspirações. Os revolucionários viviam uma situação de temor e apoiaram a intervenção do exército na política.

Napoleão revista a Guarda Imperial antes da Batalha de Jena, Horace Vernet

O exército foi a força maior com a qual a alta burguesia contou. Conseguiu grandes vitórias no exterior, como a do Egito, onde derrotou os ingleses, e a Itália. À frente desse exército estava a figura que mais e mais se destacava. Era o general Napoleão Bonaparte¹.

¹ "A Revolução Francesa permitira a Napoleão Bonaparte, nascido na ilha de Córsega [...] e educado nas melhores escolas militares da França, ascender rapidamente ao posto de general". (HOLLANDA, Sérgio Buarque de et alli. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 210.)


Bonaparte na Ponte de Arcole. Antoine-Jean Gros

Foi assim que Napoleão deu o golpe militar, dissolvendo o Diretório em 18 de novembro de 1799. Para dirigir o país, Napoleão criou o Consulado formado por três chefes, dos quais ele era um.

Poucos meses depois Napoleão foi eleito cônsul e, em seguida, foi proclamado imperador com o apoio do exército e da alta burguesia. Como imperador, Napoleão governou de 1799 a 1815.

Napoleão Bonaparte no golpe de 18 Brumário em Saint-Cloud, François Bouchot

São os rumos inesperados da revolução: os liberais aclamaram Napoleão Bonaparte como imperador da França, um imperador com todos os poderes nas mãos; às vezes governava com o absolutismo dos reis tão condenados pelos liberais. Verdadeiramente esses rumos não foram traçados pelos revolucionários de 1789!


Napoleão diante da Esfinge, Jean-Léon Gérôme

Ao longo de seu governo, Napoleão Bonaparte tomou muitas medidas liberais, jamais abandonando os burgueses endinheirados, que tinham grandes interesses econômicos. Foi para eles que o imperador de fato fez as reformas, porque acreditava que seriam eles os homens que fariam da França um país capitalista industrializado.

Primeira esposa de Napoleão: Imperatriz Josefina em trajes de coroação, François Gerard

Napoleão nunca foi um democrata. Jamais acreditou que se poderia governar no regime democrático. Mas também foi muito mais liberal do que os reis absolutos. Muitas reformas feitas por ele foram tão importantes e necessárias que vigoram até hoje, em quase todo o mundo ocidental.

Segunda esposa de Napoleão: Imperatriz Marie-Louise, Jean-Baptiste Isabey

Entre suas várias reformas algumas provocaram impacto extraordinário. Napoleão subordinou a Igreja ao Estado, que passou a pagar os salários dos padres; criou os liceus e as universidades e determinou que a educação² fosse monopólio do Estado; tornou obrigatório o ensino primário, que ficou a cargo das prefeituras; promulgou o Código Civil, que praticamente influenciou todo o mundo ocidental, e incentivou a industrialização.

² "No setor educacional ordenou o funcionamento de numerosas escolas públicas, até então escassas, para o ensino em diferentes graus, às quais acorreram crianças, adolescentes e jovens, em número cada vez maior". (HOLLANDA, Sérgio Buarque de et all. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 212.)


Napoleão abdicando em Fontainebleau, Paul Delaroche

O período em que Napoleão ficou no poder não foi fácil. Houve crises financeiras, greves nas fábricas e ele usou sua força no sentido de reprimir e vigiar.

A Europa toda foi sacudida por Napoleão e a América, também.

Napoleão atravessando os Alpes, Paul Delaroche

Na Europa, a grande rival era a Inglaterra³, que, já bastante industrializada e com uma economia liberal, não desejava ter a burguesia francesa também ocupando os seus espaços. Mas os outros países, como a Prússia, a Rússia e a Áustria, sentiam o impacto das ideias francesas e tentavam abafá-las.

³ "A Inglaterra, primeira potência naval da época, era o único país que Napoleão não conseguia vencer pelas armas. Como a nação inglesa dependia em grande parte do seu comércio com as demais nações europeias, Napoleão decidiu mover-lhe uma guerra econômica. Para tanto decretou o Bloqueio Continental (1806), isto é, declarou todos os portos europeus fechados a navios e mercadorias inglesas, interditando também o comércio europeu com a Inglaterra. Apesar do bloqueio, a Inglaterra intensificou o comércio de produtos coloniais, procedentes do Extremo Oriente, dos Estados Unidos, e sobretudo de produtos coloniais da América Latina, através de portos do Mar do Norte, do Mediterrâneo e outros de Portugal, seu tradicional aliado". (HOLLANDA, Sérgio Buarque de et alli. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 213.)

[...] A Rússia quebrou o Bloqueio, porque precisava importar produtos industrializados da Inglaterra. Napoleão, furioso, marchou com seu exército contra ela, e enfrentou dificuldades insuperáveis, como o frio e a fome. Foi uma campanha sem sucessos. A derrota foi flagrante e marcou o início de seu declínio.


Retirada de Napoleão de  Moscou. Adolph Norther

Em 1814, a situação do país era tão difícil que Napoleão foi obrigado a abdicar, retirando-se para uma ilha. Voltou logo a seguir e governou mais cem dias. Finalmente, em 1815, numa batalha na Bélgica, em Waterloo, foi derrotado pelo exército inglês e enviado prisioneiro para a ilha de Santa Helena, onde ficou até morrer.

Napoleão em Santa Helena, Francois-Joseph Sandmann

"Na minha carreira encontrar-se-ão erros, sem dúvida; mas Arcole, Rivoli, as Pirâmides, Marengo, Austerlitz, Iena, Friedland são de granito; o dente da inveja nada pode contra elas [...] Eu aterrei o abismo anárquico e pus ordem no caos. Eu limpei a Revolução [...] E depois sobre que poderiam atacar-me de que um historiador não pudesse defender-me? [...] Enfim, seria a minha ambição? Ah! sem dúvida, ele encontra-la-á em mim - e muita; mas a maior e a mais alta que talvez jamais tenha existido: a de estabelecer, de consagrar o império da razão e o pleno exercício, o inteiro gozo de todas as faculdades humanas [...] Em poucas palavras, eis, pois, toda a minha história [...] Milhares de séculos decorrerão antes que as circunstâncias acumuladas sobre a minha cabeça possam encontrar um outro na multidão para reproduzir o mesmo espetáculo." BONAPARTE, Napoleão. O processo Napoleão. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. Lisboa: Plátano, 1976. v. III, p. 124.

A Batalha de Austerlitz, François Gérard

O poder político voltou para as mãos da família dos Borboun - Luís XVIII - que governou até 1824. Surpresa nos rumos da grande revolução!

BONAPARTE, Napoleão. O processo Napoleão. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. Lisboa: Plátano, 1976. v. III, p. 124.
GARCIA, Ledonias Franco. Estudos de história: sociedades contemporâneas. Goiânia: UFG, 1998. p. 79-83.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de et alli. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 210, 212-213.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Os mistérios na Grécia antiga. Elêusis. Orfismo

Além da mitologia, existia o ritual. Nesse ritual dos antigos helenos, acham-se elementos de vetustas magias: ritos para a obtenção da fertilidade, sacrifícios aos espíritos, aos deuses ou aos demônios inimigos.

"Algumas dessas sobrevivências - diz Dampier - eram sem dúvida largamente espalhadas e, prolongadas aos tempos clássicos, constituíram provavelmente a substância dos mistérios elêusicos e órficos. Contra esse fundo sombrio e perigoso ergueran-se, a mitologia olímpica de um lado e, de outro, a filosofia e ciência primitivas". 

Os mistérios eram cerimônias secretas, vinculadas ao culto de alguns deuses, às quais só podiam assistir os fiéis que tivessem passado por uma iniciação. Sua revelação castigava-se com penas que chegavam até a morte.

O mais famoso desses cultos misteriosos era o de Elêusis, pequena localidade próxima de Atenas, à beira-mar. Nos mistérios de Elêusis venerava-se Deméter, deusa da terra fecunda, cuja filha Coré (Perséfone) tinha sido raptada por Hades, de quem se tornara esposa. Coré volta, por seis meses, à superfície da terra; e Deméter, novamente alegre, espalha seus dons por entre os homens (primavera e verão). Mas Coré deve retornar às entranhas da terra, e Deméter se entristece (outono e inverno). O ciclo da vegetação se repete anualmente: é o mito de Deméter. Do periódico alternar-se da morte e ressurreição dos frutos da terra devia surgir a noção da ressurreição da alma, não aniquilada com a morte. Os gregos tinham a esperança de que o homem pudesse tornar à vida - após a morte. E acreditavam que isso pudesse ser obtido mediante os ritos secretos, celebrados pelos iniciados.

Mistérios de Elêusis. Hydra, ca. 340 a.C.


As cerimônias constavam de banhos purificadores (no mar), jejuns rituais, a representação do drama sagrado (a história de Deméter: o rapto de sua filha Perséfone), jogos, procissões e cenas de caçoada e de regozijo. O iniciado (mystes) era considerado um privilegiado, não só neste mundo, mas também após a morte.

O culto de Orfeu entrelaça-se ao de Dionísio. A mitologia ensinava que Dionísio fora devorado pelos Titãs, filhos da Terra e do Céu, dos quais descende o homem. Assim, pois, há simultaneamente dois elementos opostos na criatura humana: um, que é material, rude, provindo dos Titãs; outro espiritual, divino, herdado de Dionísio. A fim de redimir-se do pecado dos Titãs, os homens tinham de sublimar a alma, aprisionada na mesquinha roupagem carnal. Deviam submeter o corpo a normas rígidas de ascetismo e amoldar o comportamento a princípios duma rigorosa ética. Desta forma, graças à vitória do elemento divino, haveria uma ressurreição - que seria eterna - e a morte seria derrotada definitivamente.

A partir do século VI a.C., o orfismo se espalhou por todo o mundo. Foi sempre um culto esotérico, como iniciados reunidos em confrarias secretas. O orfismo colaborou na difusão da crença na vida de além-túmulo, que seria a recompensa duma vida nobre na terra. Tais ideias infiltraram-se no culto a Deméter - e reaparecem, nitidamente, no cristianismo. Elas se encontram no Novo Testamento (que, lembremos, foi redigido em idioma grego).

BECKER, Idel. Pequena história da civilização ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 103-104.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A guerra dos Cem Anos e o progresso da arte militar

1. Causas da guerra dos Cem Anos. A guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra foi uma renovação da antiga rivalidade criada pela ascendência dos Plantagenetas ao trono da Inglaterra. Várias causas haviam surgido para incentivar o antagonismo existente entre a França e a Inglaterra, porém três delas são muito importantes:

a) A região de Flandres era cobiçada pelos soberanos franceses, por seu comércio e suas indústrias têxteis. As cidades flamengas, desejando conservar sua liberdade, procuraram o apoio dos ingleses, com quem tinham grandes relações comerciais, pois eram o mercado consumidor das lãs da Inglaterra. A aliança flamengo-inglesa irritou profundamente os reis franceses.

b) A Aquitânia (Guiena), única possessão feudal que os ingleses possuíam na França, era também pretendida pelos Capetos.

c) As pretensões dos reis da Inglaterra ao trono da França. O último dos Capetos, um filho de Filipe o Belo, havia morrido sem deixar descendentes masculinos. O parente mais próximo do rei morto era Eduardo III da Inglaterra, mas por linha feminina. Os nobres franceses preferiam o parentesco de Filipe de Valois, mais afastado, porém parente por linha masculina. A aplicação da "lei sálica", velho costume dos francos que vedava às mulheres ocupar como governantes o trono francês e consequentemente transmitir a herança ao mesmo, foi apenas um motivo para os barões feudais franceses descartarem-se de um possível rei inglês.

2. Características da guerra dos Cem Anos. Primeiro Período. Inicialmente os ingleses desembarcaram perto de Calais com um exército bem aparelhado, no qual uma infantaria composta de arqueiros representava papel de destaque, apoiada por excelente cavalaria. Em Crécy (1346) os franceses opuseram aos invasores um exército menos disciplinado, composto fundamentalmente da pesada cavalaria feudal, complementada por tropas munidas de bestas (armas de origem oriental que lançavam virotes por meio de molas).


Rendição de Calais (1347). Autor anônimo.


Quando a cavalaria francesa arremeteu contra as tropas inglesas, foi recebida por uma chuva de flechas, antes do clássico combate corpo a corpo, desorganizando-se completamente, do que resultou a vitória dos invasores, que se apoderaram de Calais.

Após Crécy, franceses e ingleses passaram a morrer não nos campos de batalha, mas vitimados pela peste negra de 1348. Tão terrível mal, possivelmente a peste bubônica, no decorrer de poucos anos dizimou de um meio a um terço da população europeia. O impacto provocado pela epidemia foi de tal ordem que provocou acentuado declínio do feudalismo.


Batalha de Crécy. Manuscrito do século XV. Jean Froissart


Só dez anos mais tarde renovaram os ingleses as hostilidades. Durante o período de paz a legislação inglesa procurou instituir o trabalho obrigatório para a camada inferior da sociedade, com salários a níveis inferiores à grande epidemia, e a impedir o camponês de aprender um ofício manual, fixando-o assim ao campo.

Novamente a França foi invadida e novamente derrotada em Poitiers (1356), tendo sido aprisionado o soberano francês João o Bom. Pelo Tratado de Brétigny (1360), Eduardo III recebia Calais e o extenso território atlântico da França, ao sul do Loire.

Na guerra dos Cem Anos foram usadas as primeiras armas de fogo. Na batalha de Crécy os ingleses usaram os canhões ou bombardas, cujo alcance limitado e as dificuldades de pontaria tornavam uma arma mais de efeito moral do que de destruição. Os árabes já haviam usado anteriormente a pólvora como arma, no século XIII, no cerco de Algeciras.

Os franceses no fim da guerra melhoraram sua infantaria e dotaram-na de colubrinas de mão, primeiro esboço de espingarda.

Segundo período da Guerra dos Cem Anos. Um dos grandes problemas de Carlos V, sucessor de João II o Bom, foi dominar bandos de soldados mercenários que haviam sido aliciados para guerrear contra os ingleses. Agrupados em "companhias", recebiam soldo e parte do saque. Formavam bandos com chefes eleitos e com certa organização.

Feita a repressão das "companhias", tarefa na qual foi ajudado pelo destemido Bertrand Du Guesclin, Carlos V resolveu atacar os ingleses. Foi modificada a tática militar. Em vez de grandes combates com cavalaria e pesadas armaduras, os franceses usaram o sistema de emboscada, o que possibilitou a recuperação de quase todos os territórios cedidos à Inglaterra pelo Tratado de Brétigny.

Seu sucessor, Carlos VI, que já era um doente mental, perdeu completamente a razão. O país passou então pelos horrores de uma guerra civil, entre o Norte, onde era mais acentuado o espírito feudal, e o Sul, onde prevalecia o elemento celta romanizado.


Tropas inglesas desembarcando na Normandia. Século XV. Virgil


Os ingleses aproveitaram-se da situação e desembarcaram novamente na França, conquistando toda a Normandia e derrotando os franceses em Azincourt (1415). Firmou-se então o Tratado de Troyes, que entregava em matrimônio a filha do soberano francês ao monarca inglês Henrique V e o reconhecia como futuro rei da França, prejudicando assim os legítimos direitos do próprio filho de Carlos VI, do mesmo nome. Este, nada podendo fazer contra os ingleses, retirou-se para o sul e estabeleceu sua corte em Bourges, onde, entre festas frívolas e pequenas investidas contra os ingleses, foi reduzindo de tal maneira seus domínios que, em 1428, a sua mais importante cidade, Orléans, já estava sitiada pelos inimigos. Nesta época, aparece a figura extraordinária de Joana D'Arc.

Joana D'Arc. A Donzela de Orléans nasceu em Domrémy, em 1412. De espírito místico, começou a ter visões que a exortavam a socorrer Carlos VII.

Depois de uma longa viagem e dos naturais obstáculos para falar com o rei, foi por ele recebida no Castelo de Chinon. Impressionado pelo entusiasmo fervoroso de Joana D'Arc, deu-lhe Carlos VII um exército de 5.000 homens para a libertação de Orléans, então sitiada pelos ingleses. O cerco da cidade foi levantado e a jovem tornou-se um símbolo. O entusiasmo das tropas francesas levou-as a conquistar Reims, onde Carlos foi coroado, tendo a seu lado Joana D'Arc. Mais tarde a jovem guerreira tentou libertar a cidade de Compiègne, sitiada pelos borgonheses, que numa sortida aprisionaram a heroína, que foi vendida aos ingleses. Julgada como "herética, relapsa, apóstata e idólatra", por um tribunal de teólogos e prelados controlados pelos ingleses, foi condenada à morte na fogueira, em Ruão, nada tendo feito Carlos VII para salvá-la.


Cerco de Paris por Joana D'Arc em 1429. Martial d'Auvergne


A Franca, incentivada pelo sacrifício de sua jovem mártir, renasceu militarmente, e os ingleses que não mais contavam com os senhores feudais do Norte, foram perdendo todas as suas praças-fortes, restando-lhes apenas Calais. A guerra terminou em 1453, no mesmo ano da queda de Constantinopla.

3. Consequências da guerra dos Cem Anos. A França havia perdido milhares de homens e muitas de suas aldeias estavam despovoadas. A nobreza perdera grande parte de seu prestígio em virtude de a autoridade real ter sido reafirmada, desta vez, pelas vitórias de um exército que se tornara regular e permanente.

Muitos nobres arruinados foram obrigados a concluir com os camponeses acordos com mais vantagens para estes do que os anteriores. As garantias que a burguesia conquistara vão traduzir-se por uma administração real nitidamente orientada no sentido de sua proteção. Luís XI, sucessor de Carlos VII, não foi somente um príncipe, foi também um perfeito burguês.

SOUTO MAIOR, Armando. História geral. São Paulo: Nacional, 1979. p. 235-239.

domingo, 26 de maio de 2013

Invasão dos povos do mar

Na segunda metade do século XIII a.C., o Oriente Próximo conheceu deslocamentos maciços e complexos de populações chamadas - segundo uma qualificação egípcia - os "povos do mar". Por razões desconhecidas, povos vindos da Europa oriental penetraram brutalmente na Anatólia ocidental, multiplicando nela as destruições. Alguns se instalaram ali, outros prosseguiram seu caminho para o leste, acompanhados ou precedidos pelas populações anatólias que haviam expulsado.


Representação egípcia dos povos do mar

Esse vasto movimento de guerreiros acompanhados de suas famílias atravessou a Anatólia, depois desceu ao longo da costa mediterrânea, do oriente às costas do Egito. Deslocavam-se à pé ou de navios e sua chegada nas regiões controladas até então pelos impérios hitita e egípcio provocou uma verdadeira onda de choque. É difícil saber se teriam sido diretamente responsáveis pelo mais espetacular desses esfacelamentos, o do Império Hitita na Anatólia.

Em contrapartida, atribui-se a eles, de maneira segura, as destruições violentas constatadas na ilha de Chipre, em Ugarit, e em vários principados levantinos. As principais cidades fenícias, instaladas em ilhas ou promontórios rochosos, chegaram a resistir-lhes. Os povos do mar foram finalmente detidos às portas do Egito, em 1208 a.C., pelo faraó Merneptah, que matou e fez prisioneiros vários milhares deles, "façanha" repetida por seu sucessor Ramsés III em 1117 a.C.

A partir de então, uma vez rompido o ímpeto principal, certos povos do mar, como os filisteus, instalaram-se na região à qual deram seu nome (Palestina), enquanto outros retomavam o mar em direção oeste. As fontes egípcias, que viam neles invasores vindos da Ásia, fornecem-nos os nomes de vários desses povos - Luka, Shirdana, Sikala, Akawasha, Peleset, Turusha - que foram ligados a países (Lácia, Sardenha, Sicília) ou a povos (aqueus, filisteus, etruscos). Esses nomes poderiam corresponder a suas regiões de origem ou a seu destino final, sem que essas identificações sejam perfeitamente determinadas.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas 1: Dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 71.

sábado, 25 de maio de 2013

Breve relação da destruição das Índias (Frei Bartolomé de las Casas)

Frei Bartolomé de las Casas. Anônimo, século XVI.

Depois das enormes e abomináveis tiranias que estes fizeram na cidade do México e nas cidades e muitas terras que há por redor, dez, quinze e vinte léguas de México, onde foram mortas infinitas gentes, passou adiante essa sua tirânica pestilência, e foi infeccionar e assolar a província de Pánaco, admirável pela multidão de pessoas que tinha e os estragos e matanças que ali fizeram.

Depois destruíram da mesma maneira a província de Cututepeque, e depois a província de Ipilcingo e depois a de Colima. Cada uma delas é maior que o reino de Leão e o de Castela. Contar os estragos, mortes e crueldades que fizeram em cada uma será sem dúvida muito difícil e impossível de dizer e trabalhosa de escutar.

É de se notar que o modo com que entravam e pelo qual começavam a destruir todos aqueles inocentes e despovoar aquelas terras, que tanta alegria e gozo deveriam causar aos que fossem verdadeiros cristãos com sua tão grande e infinita população, era dizer que viessem sujeitar-se e obedecer ao rei da Espanha; caso contrário haveriam de matá-los e fazê-los escravos. E aos que não vinham rapidamente cumprir tão irracionais e estúpidas mensagens e colocar-se nas mãos de tão iníquos, cruéis e bestiais homens, chamavam-nos rebeldes e revoltados contra o serviço de sua Majestade. E assim escreviam para cá ao rei nosso senhor.

E a cegueira dos que regiam as Índias não alcançava nem entendia aquilo que em suas leis está expresso e mais claro que qualquer outro de seus primeiros princípios, a saber: que ninguém, é nem pode ser chamado rebelde, se primeiro não é súdito.

[...] E o que é mais espantoso é que, aos que de fato obedecem, colocam em áspera servidão, com incríveis trabalhos e tormentos ainda maiores e que duram mais do que os que lhes dão enfiando-lhes a espada, daí que no final eles perecem, suas mulheres e filhos e toda sua geração.

Las Casas, Frei Bartolomé de. Brevíssima relación de la destrucción de las Indias. In: XIRAU, Ramón. Idea y querella de la Nueva España. Madri: Alianza, 1973. p. 29-30.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O modo americano de viver

"Mãe migrante", Dorothea Lange. A outra face do "american way of life".

Vivemos nosso dia a dia geralmente sem nos perguntar de onde vieram nossos hábitos, nossa alimentação e ate mesmo nossas diversões. Mas tudo isso tem história. Hoje você come um hambúrguer no McDonald's, anda de skate, vai ao shopping center e fala as muitas palavras em inglês incorporadas ao nosso vocabulário, sem se dar conta de que esses costumes pertencem originalmente a uma outra cultura: a cultura norte-americana.

Ao longo de sua história, os norte-americanos criaram um modo de vida próprio - o American way of life (em português, o "jeito americano de viver") - e, convencidos de que ele era superior ao dos demais povos, procuraram difundi-lo pelo mundo afora, exportando seus ideais, comportamentos e produtos (entre os quais o hambúrguer), e consolidando-se como a maior potência mundial.

Comer hambúrguer pode parecer um ato normal, sem maiores consequências, mas, praticado em massa, faz parte de uma mudança de hábitos que atingiu os mais diversos países do planeta, fruto da curiosidade pelo que é diferente e "mais adiantado". Sua difusão ajudou a abrir as portas para a influência política e econômica norte-americana.

Assim, para entender como o American way of life se criou e se difundiu, dar uma passada num McDonald's pode ser muito esclarecedor. Vamos lá?

As lojas são facilmente identificáveis, por seu aspecto exterior chamativo. São todas semelhantes, por dentro e por fora, em quase todos os países do mundo. Isso acaba atraindo o turista, que se sente mais seguro comendo algo conhecido do que se aventurando com pratos típicos estranhos a ele. Pelo menos, é nisso que se aposta, servindo-se no mundo inteiro praticamente os mesmos lanches.

Qual é a atração da loja? Um ambiente de eficiência, onde todo mundo, atrás do balcão, corre para servir o cliente. A comida chega rapidamente. Tudo é limpo e padronizado. O que se oferece é razoavelmente barato e nunca falta troco. A ideia é criar entre o cliente e a loja uma relação de confiança mútua. A rede está sempre oferecendo promoções, dando ao freguês a impressão de que, mesmo consumindo um pacote de batatas fritas e um copo de Coca-Cola cada vez maiores - e pagando mais por isso, evidentemente -, ele levou vantagem.

Ao lado do balcão, há sempre a foto do "funcionário do mês". O que ele fez para merecer esse título honroso? Foi o mais rápido, organizado e gentil com o público e, dessa forma, permitiu que o negócio andasse mais rápido, aumentando a produtividade da loja. E o funcionário, será que ele ganhou mais por isso? Certamente não. Ganhou apenas a promessa de uma promoção: se continuar assim, poderá chegar antes dos colegas ao topo de sua carreira na empresa. Ou seja: ele se fará por seu próprio esforço, em competição com o restante do grupo. Os menos dotados, ou menos obedientes aos métodos da empresa, vão ficar para trás ou desempregados. Essa é a fórmula do sucesso profissional.

Do lado de fora da loja está o Drive Thru, onde se pode comer sem sair do carro e, com isso, ganhar tempo. Mas por que é preciso comer tão rápido? Porque é preciso liberar o espaço para outros clientes que estão chegando apressados e também têm que retomar rapidamente suas outras atividades: o trabalho, a escola ou a academia, na qual se exercitam para ficarem mais rápidos, mais saudáveis. Para quê? Para trabalhar mais, comprar mais e ajudar a colocar em marcha esta máquina de reprodução incessante de trabalho e dinheiro: a máquina do capitalismo.

A preocupação fundamental é, pois, com a rapidez, que gera eficiência e permite maior produtividade: maior número de clientes atendidos e satisfeitos e, no caixa, cada vez mais dinheiro, aumentando o negócio e vencendo a concorrência. Quanto ao funcionário, a ideia é que ele se dedique o máximo possível ao trabalho e à empresa, que faça deles o centro da sua vida.

Essa forma de encarar o trabalho, baseada na competição e na necessidade constante de progresso, não existe por acaso nem é obra de um gênio do hambúrguer: trata-se apenas de uma das facetas do American way of life, que é a forma de vida que os americanos desenvolveram ao longo dos séculos, mas também o mito que construíram em torno desse jeito de ser, fazendo com que em todo o mundo se acredite que essa é a melhor forma de vida para o ser humano em todos os lugares do planeta.

SCHVARZMAN, Sheila. O modo americano de viver. São Paulo: Atual, 2011. (A Vida no Tempo das máquinas)

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Usos e costumes dos hebreus

Prisioneiros hebreus na Babilônia. 
Baixo relevo.

Vestiam uma túnica simples e chapéus em forma de turbante. Praticamente não tinham indústria. Na agricultura exploravam a oliveira, a vinha e o figo, porém a economia hebraica baseava-se sobretudo na criação.

"As crianças tomam um pouco de leite coalhado e os pais beliscam pão e azeitonas quando vão para o trabalho. Durante o dia o almoço é feito sem interromper o trabalho: pão e queijo, frutas frescas ou secas, leite ou vinho diluído em água. Ao pôr-do-sol, a família se reúne. Todos sentam sobre esteiras no chão. Come-se uma sopa. Trata-se geralmente de um tipo de sopa espessa feita de trigo, cevada, grão-de-bico, favas e lentilhas, que são cozidos durante horas em fogo brando. Acrescentam-se ervas silvestres ou legumes e sal. Comem todos no mesmo prato. Carne ou peixe é servido somente no sábado ou nas festas". (GASTALDI, Silvia; MUSATTI, Claire. Vida e costumes do povo da Bíblia. São Paulo: Salesiana, 2009. p. 10.)


Cativos torturados. Os tronos e palácios de Babilônia e Nínive. 
John Philip Newman

Até a época do cativeiro da Babilônia não usavam os judeus a moeda cunhada; o ouro e a prata eram pesados no momento do pagamento.

Nenhum outro povo do Oriente Próximo teve a família em tão elevado nível quanto os judeus. Organizada em bases tipicamente patriarcais, na família hebraica a autoridade do pai era extremamente severa.

"A partir dos 10 anos de idade, os meninos começavam a ser treinados pelo pai para assumirem um papel de destaque na tribo. Já as meninas eram cercadas de cuidados e, desde cedo, preparadas para o casamento. Quando se casavam, elas tornavam-se propriedade do marido. 

O concubinato era uma prática aceita entre os hebreus. A esposa tinha direitos que as concubinas não possuíam. A herança também não era partilhada de forma igual entre filhos legítimos e ilegítimos." (BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 81.)

Os membros mais idosos de cada família, reunidos, formavam um conselho de anciãos, espécie de supremo tribunal da tribo, e cooperavam com os chefes de outras tribos em casos de emergência.

"A exemplo dos demais povos do Oriente, a sociedade hebraica era escravista. Os escravos eram divididos em dois grupos: o dos escravos hebreus e o dos escravos estrangeiros, prisioneiros de guerra. Ambos detinham alguns direitos assegurados pela lei religiosa, como o de possuir bens materiais e os de converter-se ao judaísmo e casar." (BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 81.)

[...] Os homens livres podiam vender-se como servos para pagamento de dívidas, ao vender em seu lugar os filhos, costume que perdurou até a época de Cristo. No entanto, a própria lei judaica determinava que de sete em sete anos fossem perdoadas as dívidas e restituída a liberdade aos hebreus que estivessem em servidão. Os servos de outras nacionalidades eram beneficiados pelo Jubileu, celebrado cada 50 anos, quando todos os devedores e escravos eram perdoados e postos em liberdade. Diz expressamente o Antigo Testamento (Levítico, 25, 10): 

"Santificareis o ano quinquagésimo e proclamareis liberdade por toda a Terra a todos os seus habitantes; o ano do jubileu será para vós. Voltareis cada um à posse de si mesmo e para sua família".

Os estrangeiros eram tratados com relativa benevolência. Jamais se apagou da memória dos hebreus o fato de terem sido estrangeiros no Egito.

[...]

"A prática rígida dos judeus era trabalhar seis dias da semana e, no sétimo dia, participar de sua religião e descansar. Esse sétimo dia, de acordo com sua crença, era o sábado. Uma das primeiras leis de bem-estar social de grande alcance no mundo, o dia de descanso do sábado dos judeus se estendia não só aos donos da casa, mas também aos serventes, fossem esses mulheres ou homens. [...]" (BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 76.)

Toda a vida de Israel foi regulada minuciosamente por sua legislação de natureza autenticamente religiosa; os sacerdotes eram juízes e os templos tribunais. Além do Antigo Testamento deve ser lembrado também o Talmud, redigido pelos rabinos, constituído de comentários sobre leis e coleções de preceitos morais, religiosos, higiênicos, etc.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004.
BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010.
GASTALDI, Silvia; MUSATTI, Claire. Vida e costumes do povo da Bíblia. São Paulo: Salesiana, 2009.
SOUTO MAIOR, Armando.  História geral. São Paulo: Nacional, 1979. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Onde foi parar o Mar Tenebroso?

Mapa do Oceano Pacífico, 1589. Ortelius

Apesar das dificuldades, as expedições foram bem-sucedidas, tanto as que seguiram para o Oriente quanto as que foram para o Ocidente. Inúmeras descobertas: mares, terras, povos, animais, plantas... Retornos cheios de glória e com muitos relatos. Isso tudo causou grande impacto e fez com que muitas ideias sobre o universo e a Terra, aceitas como verdadeiras, sofressem alterações.

Um cronista espanhol, Francisco Lópes de Gómara, em 1522, escreveu que a descoberta da América "foi o maior acontecimento desde a criação do mundo". Hoje, passados 500 anos, é difícil imaginar como as pessoas da época receberam as notícias. O espanto e a surpresa seguramente não foram sem razão. Os relatos aguçaram a curiosidade e o desejo dos reis, dos comerciantes, dos navegadores e dos estudiosos.

Américo Vespúcio, que fez várias viagens à América, em uma de suas cartas a um amigo se mostrava deslumbrado com a natureza encontrada:

"[...] fomos à terra e descobrimo-la tão cheia de árvores que era coisa maravilhosa, não somente a grandeza delas, mas seu verdor e cheiro suave que delas saía e que dava tanto conforto ao olfato [...] E o que vi aqui foi uma feíssima coisa de pássaros de diversas formas e cores, e tantos papagaios que era deslumbrante [...] E a mata é de tanta beleza e suavidade que pensávamos estar no paraíso terrestre".

Em outra carta, Américo Vespúcio apresenta um aspecto em que a realidade era diferente das ideias que corriam:

"[...] parece-me que a maior parte dos filósofos nesta minha viagem seja reprovada, pois afirmam que dentro da tórrida zona não se pode habitar por causa do grande calor, e eu vi nessa minha viagem ser o contrário [...]". (VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo, cartas de viagens e descobertas. p. 50, 51 e 55).

Os europeus tiveram que mudar muitas teorias. Por exemplo, aquelas que afirmavam ser o Oceano Atlântico um mar tenebroso e cheio de monstros. Ficou provado que as sereias e os ímãs que atraíam os navios para o fundo do mar não passavam de uma lenda, pois nenhum navegador sofreu qualquer dano dessa ordem. Também não se tem notícias de mortes provocadas pelo calor, na região do Equador.

Os habitantes encontrados na América, vivendo em diversos níveis de desenvolvimento as mais diferentes formas de vida, assustaram também os europeus¹, que tiveram de refazer muitas de suas ideias sobre a população da Terra. Encontraram pessoas, animais e plantas vivendo em regiões muito frias, temperadas ou de muito calor. Gente morando nos desertos, nas planícies, nas montanhas, nos alagados e ilhas. Gente muito diferente! Nos costumes diários, na forma de religião, nas concepções de riqueza, na alimentação, no vestuário, nas habitações...

¹ [O europeu diante dos índios americanos] "Andavam nus como a mãe lhes deu à luz [...] E todos os que vi eram jovens, nenhum com mais de trinta anos de idade: muito bem feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos, quase como pêlos de cavalos, e curtos [...] Eles se pintam de preto e são da cor dos canários, nem negros nem brancos, e se pintam de branco, e de encarnado, e do que bem entendem, e pintam a cara, o corpo todo, e alguns, somente os olhos ou o nariz. Não andam com armas, que nem conhecem, pois lhes mostrei espadas, que pegaram pelo fio e se cortaram por ignorância. Não têm nenhum ferro: as suas lanças são varas sem ferro, sendo que algumas têm no cabo um dente de peixe e outras uma variedade de coisas". (COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América. 1492, p. 45.)

Em muitas cidades da Ásia e da África oriental, os europeus ficaram fascinados pelo luxo e riqueza encontrados. No entanto, era mais ou menos o que esperavam encontrar, de acordo com as descrições que já tinham chegado à Europa através dos mercadores e viajantes. Mas ficaram espantadíssimos com as cidades ricas da África, de população negra, e com as dos astecas e incas, na América.


Templo do Sol, Palenque


Também as populações mais simples, tanto da África quanto da América, assombraram os europeus. Quem são elas? Por que se comportam assim? Como chegaram a se organizar dessa forma? Por que não se interessam, como os europeus, pelas riquezas, por exemplo, o ouro e as pedras preciosas? Seguramente, essas questões estavam na cabeça dos descobridores e das pessoas que passaram a ter conhecimento do que existia no mundo, um mundo muito maior do que tinham imaginado.

Nos diários, nas cartas e relatos diversos que nos deixaram os navegadores, os escrivãos e outros estudiosos que faziam parte das expedições, as descrições são inúmeras e demonstram o espanto do primeiro encontro. Na África², encontraram populações que possuíam o ouro e a prata, mas esses metais de nada lhes serviam e, como moeda, usavam os búzios. Em certas regiões da América e em algumas ilhas da Oceania, encontravam povos vivendo de forma muito simples. Quase todos andavam nus, enfeitavam-se com penas coloridas e viviam do que coletavam na natureza. Um exemplo é o caso dos índios do Brasil e de várias outras partes do continente americano.

² [Os africanos diante do europeu] "Os negros, tanto homens como mulheres, acorriam todos para me ver [...] Alguns mexiam-me nas mãos e friccionavam-me os braços com saliva, para ver se minha brancura provinha de qualquer pintura ou se a carne era mesmo assim. Quando verificavam isso, ficavam muito espantados". (CADAMASTO, A. Relação da viagem à costa ocidental da África. 1457, p. 70).

Mas, por outro lado, a organização política, social, econômica e cultural, principalmente dos astecas e incas³, espantou os espanhóis. Tenochtitlán, capital dos astecas (onde hoje é a cidade do México), deixou Cortés, conquistador espanhol, absolutamente surpreso. Ele a descreveu em detalhes e chegou a compará-la com as grandes cidades da Espanha. Para alguns historiadores, Tenochtitlán, no século XVI, juntamente com Constantinopla, eram as duas maiores cidades do mundo, apesar de se ignorarem.

³a [Os incas diante dos espanhóis] "Atahualpa (cacique dos incas) viu chegar os primeiros soldados dos espanhóis, montados em briosos cavalos ornamentados com casquetes e penachos, que corriam provocando ruído e poeira com seus cascos velozes: tomado pelo pânico, o inca caiu de costas". (GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina).

³b [Os astecas diante dos espanhóis] "[...] rápido dispararam um canhão: tudo ficou confuso. Corriam sem rumo, as pessoas dispersaram-se sem que nem porque, debandavam, como se fossem perseguidos. Tudo era como se todos tivessem comido cogumelos estupefacientes, como se tivessem visto algo assombroso. O terror dominava a todos, como se todo mundo tivesse perdido o coração. E, quando anoitecia, era grande o espanto, o pavor se estendia a todos, o medo dominava todos, por temor perdiam o sono". (LEÓN-PORTILLA, Miguel. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. p. 76).

As descrições dos contemporâneos são muitas e cheias de assombro. Era o espanto diante do diferente e do inacreditável, tanto do lado dos europeus quanto dos povos africanos e americanos. O Mar Tenebroso deixou de ser o lugar perigoso que separava os povos para tornar-se o mar que conduzia as embarcações, os homens e as ideias, ligando a Europa ao Oriente, África e América. Mundos diferentes! Pessoas diferentes! Ideias diferentes! Mas, no entanto, vivendo o mesmo tempo histórico e, a partir dos descobrimentos, não mais podendo se ignorar.

GARCIA, Ledonias Franco. Estudos de história: sociedade dos tempos modernos. Goiânia: UFG, 1998. p. 79-84.