"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Ruínas de Potosí: o ciclo da prata

Potosí

[...] Nos séculos XVI e XVII, a montanha rica de Potosí foi o centro da vida colonial americana: ao seu redor, de um modo ou de outro, giravam a economia chilena, que a provia de trigo, carne seca, peles e vinhos; a pecuária e os artesanatos de Córdoba e Tucumán, que a abasteciam de animais de tração e de tecidos; as minas de mercúrio de Huancavélica e a região de Arica, por onde era embarcada a prata para Lima, principal centro administrativo da época. O século XVIII marca o princípio do fim da economia da prata que teve seu centro em Potosí [...].

Aquela sociedade potosiana, doente de ostentação e desperdício, só legou para a Bolívia vaga memória de seu esplendor, as ruínas de suas igrejas e palácios e oito milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante incrustado no escudo de um fidalgo rico valia mais do que a quantia que um índio podia ganhar em toda sua vida de mitayo, mas o fidalgo fugiu com os diamantes. [...] Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia [...]. Essa cidade condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo frio, ainda é uma ferida aberta do sistema colonial na América: uma acusação. [...]

[...] Em Potosí, agora se explora o estanho que os espanhóis descartaram como lixo. Vendem-se as paredes de casas velhas como estanho de primeira. [...]

Em seus anos de apogeu, em meados do século XVII, a cidade abrigou muitos pintores e artesãos espanhóis ou nativos ou santeiros indígenas que imprimiram sua marca na arte colonial americana. [...] Os artistas locais cometiam heresias, como o quadro que mostra a Virgem Maria oferecendo um seio a Jesus e outro ao marido. Os ourives, os cinzeladores de prataria, os mestres do repuxado, os ebanistas, os artífices do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres abasteceram os numerosos mosteiros e igrejas de Potosí com talhas e altares de infinitas filigranas cintilantes de prata, e púlpitos e valiosíssimos retábulos. As fachadas barrocas dos templos, trabalhadas em pedra, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não se deu com os quadros, em muitos casos mortalmente mordidos pela umidade, ou com as figuras e objetos de pouco peso: turistas e párocos tiraram das igrejas tudo aquilo que podiam carregar: dos cálices e sinos até as talhas de Cristo e São Francisco em faia e freixo.

Essas igrejas pilhadas, fechadas em sua maioria, estão vindo abaixo, avariadas pelos anos. É uma lástima, porque mesmo as saqueadas são formidáveis tesouros em pé de uma arte colonial que funde e realça todos os estilos, valiosa no gênio e na heresia [...]. Há igrejas que foram restauradas para prestar, já vazia de fiéis, outros serviços.  [...]

[...]

Junto com Potosí, decaiu Sucre. Essa cidade do vale [...] desfrutou boa parte da riqueza que manava das veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalou ali sua corte, faustosa como a do rei que ele quis ser e não conseguiu; igrejas e casarões, parques e quintas de lazer brotavam continuamente, junto com juristas, místicos e poetas retóricos [...]. "Silêncio, é Sucre. Não mais do que o silêncio. Mas antes..." Antes ela foi a capital cultural de dois vice-reinados, a sede do principal arcebispado da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais faustosa e culta da América do Sul. [...]

Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo, e dizem que com as joias de sua Virgem poderia ser quitada a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas que, em 1809, saudaram com júbilo a emancipação da América, hoje produzem um toque fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes anunciou sublevações e motins, hoje dobra pela mortal estagnação de Sucre. [...] Pelas ruas transitam rábulas adoentados e de pele amarela, testemunhas sobreviventes da decadência [...].

Em Potosí e em Sucre só permaneceram vivos os fantasmas da riqueza morta. [...]

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 54-59.

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