Vendedoras de pão-de-ló, Debret
Acima de tudo, era um flaneur. Percorria, atento e deslumbrado, calçadas e cascatas, matas e morros, o cais e caminhos que dali partiam. Não dava um passo sem o bloco no qual rabiscava esboços minuciosos que, a seguir, no silêncio laborioso de seu ateliê, transformava em quadros e pranchas. Sem as cerca de duzentas gravuras que Jean-Baptiste Debret realizou do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul - seus nobres e seus escravos, seus costumes e seus animais, suas ruas e suas casas -, é difícil supor que imagem faríamos do Brasil de 1820. [...] Debret registrou os avanços e as mazelas, os horrores e as maravilhas, a rudeza e os encantos do país com o rigor de um historiador e a finesse de um artista inspirado. [...]
Jean-Baptiste Debret nasceu em Paris em 18 de abril de 1768, filho de funcionário público graduado e primo do pintor Jacques-Louis David, seu primeiro mestre. Em 1789, ao eclodir a Revolução Francesa, teve de abandonar a Escola de Belas-Artes. Formou-se, então, engenheiro na Escola Politécnica. Voltou a pintar em 1789, e foi premiado no Salão de Paris com obras sobre as campanhas de Napoleão, de quem era admirador. Em 1814, a derrota do imperador não abalou Debret apenas moralmente: acabou com sua carreira na França, além de surpreendê-lo num momento de crise financeira. Foi, portanto, com alívio e alegria que recebeu o convite de Lebreton para juntar-se à missão francesa que viria para o Brasil. Só não podia imaginar que permaneceria por quinze anos no Novo Mundo.
Ao longo da década e meia durante a qual esteve no Brasil, Jean-Baptiste Debret jamais obteve as condições ideais para a realização de seu trabalho. Ainda assim, deixou uma obra monumental que, um século e meio após sua publicação, ainda se impõe na iconografia brasileira. Ao desembarcar no Rio, em março de 1816, Debret já se envolvera em polêmicas internas que abalavam a Missão Artística Francesa. Mas o ambiente com o qual se deparou transformaria aquelas meras discussões acadêmicas em mexericos de comadres. Embora tenha sido nomeado pintor da Casa Imperial e tenha ajudado a decorar o Rio para a festa de aclamação de D. João VI [...], Debret esbarrou na muralha da ignorância e inveja erguida por artistas e políticos locais. Decidido a não voltar para a França, alugou uma casa no Catumbi e passou a viver de aulas particulares. Conseguiu fazer alguns retratos da família real, mas os "nobres" cariocas, acostumados a viver em casas de paredes nuas, jamais lhe encomendaram um só quadro. Debret tinha, assim, tempo de sobra para flanar pelo Rio, que se transformava rapidamente.
Em 1827, tomou a sua grande decisão e partiu rumo ao Rio Grande do Sul, acompanhando um grupo de tropeiros. Praticamente refez a trilha que seu conterrâneo Auguste de Saint-Hilaire percorrera poucos anos antes. Ao retornar ao Rio, depois de passar por Rio Grande, Florianópolis, Curitiba, Sorocaba e São Paulo, trazia o material para sua obra definitiva. Em 1831, voltou para a França e deu início à edição da Voyage pittoresque et historique au Brésil, obra monumental, lançada em três volumes, entre 1834 e 1839, na qual, em 151 pranchas, capturou um país efervescente, que se "civilizava" com rapidez e brutalidade. O livro segue o "traçado lógico da civilização no Brasil": o primeiro volume é dedicado aos indígenas e às florestas; no segundo, surgem escravos e artesãos; o terceiro investiga os usos e costumes urbanos e os acontecimentos políticos. Constituem uma aula inesquecível, repleta não apenas de cores: é como se as pinturas de Debret possuíssem também sons e odores preservados no tempo e no espaço.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 140-141.
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