"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A desigualdade, a escravatura e a guerra

As diferenças entre ricos e pobres, que as grandes novidades do Neolítico tinham reforçado, tornaram-se um traço comum a todas as sociedades. Mesmo nas tribos nómadas distinguiam-se famílias nobres que se agrupavam em torno de chefes. Nas cidades-estados, houve sempre "grandes famílias" e gente pobre. Quando o comércio era próspero, as riquezas aumentavam, mas a diferença entre ricos e pobres também aumentava.

Assim, quando os romanos dominavam todo o Mediterrâneo, o comércio fazia afluir a Roma produtos de luxo, como a seda proveniente da China. Os romanos ricos tinham comprado terras que, pouco a pouco, se transformaram em enormes propriedades. Mas os camponeses espoliados comprimiam-se nos bairros pobres de Roma, e numerosos escravos passaram a cultivar esses grandes domínios. [...]

[Os poderes dos grandes chefes feiticeiros] Os chefes fizeram muitas vezes com que as pessoas acreditassem que os seus poderes vinham dos deuses, e tiraram enorme partido disso. Na África negra, nos reinos em que as chefias agrupavam várias aldeias de agricultores, os chefes estavam, em geral, rodeados de funcionários e de parentes que beneficiavam de toda a espécie de vantagens. Entre alguns povos, os chefes trabalhavam na terra como toda a gente. Noutros lados, com o apoio dos feiticeiros, os chefes pretendiam possuir um poder mágico, e cobravam impostos aos seus súbditos. Quando praticavam a justiça ao ar livre, sob um pálio (uma espécie de tecto feito de tecido), os seus conselheiros colocavam-se à sua volta segundo a sua ordem de importância!

Só os clãs que continuavam a viver da caça e da recolecção conheciam, nesse tempo, uma espécie de igualdade, ligada à simplicidade das suas vidas. Este era o caso dos pigmeus das florestas da África central, ou de outros grupos humanos nas grandes planícies da América, nas regiões polares ou na Oceania.

[Um mundo à vontade dos deuses] As pessoas dessas épocas não tinham o sentimento, como nós hoje em dia, de que havia coisas justas e injustas. Tudo dependia das forças invisíveis e dos deuses, e as pessoas infelizes aceitavam a sua situação. A diferença entre ricos e pobres fazia parte da ordem das coisas. É claro que era mais fácil pensar assim. Sobretudo para aqueles que nunca sofriam as dificuldades da vida.

Por fim, quando os mais infelizes já não aguentavam, revoltavam-se. Mas, durante a Antiguidade, tais revoltas acabavam sempre mal, e os pobres eram massacrados pelos soldados do rei ou do chefe. [...]

[Na Índia forma-se uma sociedade de "castas"] Nos tempos que se seguiram à invasão dos arianos, sacerdotes e brâmanes interpretavam os Vedas, os textos sagrados dos arianos. Esses sacerdotes, que tinham um papel importante ao lado dos chefes guerreiros, afirmavam que os seres humanos estavam divididos em três principais grupos separados, ou seja, em três "castas": os brâmanes, os guerreiros e as pessoas responsáveis pela produção (camponeses, artesãos, mercadores). Mais tarde, apareceu uma quarta casta, a dos servidores das outras três. E, mesmo fora das castas, os rejeitados pela sociedade, os intocáveis, praticavam, e ainda hoje praticam, ocupações que continuam a ser consideradas impuras, por tocarem em animais mortos ou em desperdícios humanos. Na realidade, os intocáveis exercem profissões indispensáveis, tais como sapateiros, lavadeiros, trabalhadores dos esgotos e coveiros.

As castas existiam em total separação. Os brâmanes ensinavam as sagradas escrituras, mas também podiam ser funcionários ricos. Os guerreiros faziam a guerra e governavam. Proibiram-se casamentos entre as castas. Os intocáveis eram relegados para o exterior das aldeias.

Na religião dos brâmanes, a única esperança é que a alma encarne, depois da morte, no corpo de um membro de uma casta superior.

O Buda tinha pregado e não-violência e a pobreza nessa sociedade tão dura para os menos favorecidos. O imperador Açoka, depois de ter sido um grande conquistador, converteu-se ao budismo. Este imperador esforçou-se por fazer com que reinasse a paz e a tolerância à sua volta. Mas tal não durou muito. Hoje em dia, o budismo quase desapareceu da Índia.

[A escravatura nas cidades gregas e no Império Romano] As novas religiões, o cristianismo e o islamismo, não puseram fim à escravatura que já existia há muito tempo em volta do Mediterrâneo.

Ser um homem "livre" era aí uma exceção. Que homens e mulheres fossem "escravos", era, até certo ponto, algo de normal. Ora, um "escravo" era um objecto que fazia parte da propriedade de uma família. Também podia pertencer ao Estado ou ao templo de um deus. Mas os escravos não eram todos tratados da mesma maneira.

* Em Atenas, os escravos eram muito numerosos: talvez 400 000, enquanto a população total era de 550 000. Algumas grandes famílias podiam ter mais de cinquenta escravos. Um cidadão pobre, um ou dois. Os escravos na Grécia eram sobretudo prisioneiros de guerra, mas estes também se poderiam comprar em mercados especializados. A sua situação era mais ou menos difícil. Os escravos domésticos não eram muito infelizes. Alguns eram por vezes mais instruídos que os seus senhores e serviam-nos como administradores. Muitos "pedagogos" (professores) eram escravos. Outros eram secretários ao serviço do Estado.

Mas, nas minas de prata, a sua condição era terrível. Muitos desses escravos, alistados à força no exército, acabavam por fugir. Havia inúmeros escravos fugitivos e ofereciam-se recompensas a quem os encontrasse.

* Em Roma, as  grandes conquistas fizeram um grande número de escravos. Milhares trabalhavam nas grandes propriedades para um só senhor. Os romanos também os obrigavam a ser "gladiadores", ou seja, a combater até à morte, com animais selvagens ou outros escravos, para o prazer das multidões. Alguns escravos organizaram grandes revoltas, como Spartacus, um antigo pastor. Este conseguiu juntar 100 000 homens, mas acabou por morrer em combate enquanto os seus companheiros foram feitos prisioneiros e torturados até a morte.

Mas certos romanos também tinham o hábito de alforriar, ou seja, tornar livres os seus escravos.

E houve imperadores, como por exemplo Adriano, que tomaram medidas a favor deles. A situação melhorou assim um pouco.


Mosaico romano de Dougga, Tunísia, século II. Os dois escravos carregando jarras de vinho usam vestimenta típica de escravos e amuleto contra mau-olhado no pescoço. O jovem escravo à esquerda carrega água e toalhas, e o da direita carrega um cesto de flores.


[Mesmo os filósofos o achavam "normal"] A escrita não melhorou a vida dos escravos. E os escritores gregos ou romanos raramente tomaram posição contra a escravatura.

A Ilíada e A Odisseia põem em cena um mundo de guerreiros mas também de escravos, servidores das grandes famílias. Quando se lê o texto de Homero, que nos encanta pela sua poesia, não nos apercebemos de que a escravatura seja um assunto para ser discutido.

Os dois grandes filósofos, Platão e Aristóteles, não consideravam os escravos como seres humanos. Nunca desejaram que as suas vidas fossem melhoradas. Platão lamentava o facto de certos escravos serem tão livres como as pessoas que os tinham comprado. E Aristóteles dizia que a guerra permitia vermo-nos livres dos animais selvagens e dos escravos. Ele indignava-se com o facto de que os escravos, "que tinham nascido para servir", se recusassem a obedecer.

Mas, mais tarde, alguns escritores latinos afirmavam que os escravos eram homens e não coisas. Deste modo, o filósofo latino Séneca lembrava a um senhor: "O teu escravo goza do mesmo céu e respira, vive e morre como tu."

[A escravatura na Bíblia e no Corão] As três religiões, judaica, cristã e muçulmana, nunca se preocuparam com o problema da escravatura.

* A Torah (os cinco primeiros livros da Bíblia) fala da escravatura como de uma coisa natural. Mas o profeta Jeremias, no momento em que muitos judeus vão ser deportados para Babilônia pelo rei da Assíria, indigna-se contra certos hebreus por se apossarem de escravos que eles próprios já tinham alforriado (Jeremias 34, 15-17).

* Segundo os Evangelhos, Jesus vivia pobremente e pregava ao ar livre por entre uma multidão de pessoas simples, Ele tinha contra si as pessoas poderosas, escribas, sacerdotes e dirigentes romanos que finalmente o condenaram à morte. Jesus pregava a não-violência. Mas nem ele nem os apóstolos propuseram suprimir a escravatura, fosse na Palestina, fosse nas cidades do mundo mediterrânico. Em contrapartida, para eles, os escravos eram pessoas tais como os seus amos, e não simples objectos. Os primeiros cristãos foram, muitas vezes, escravos.

* O Corão não aconselha a supressão da escravatura, mas aconselha, por vezes, que os escravos devem ser alforriados.

[Na Europa cristã] Durante a longa história da Igreja e dos cristãos, que começa com a morte de Jesus, a escravatura continuou a ser admitida por muito tempo. Desenvolveu-se até, mesmo após as grandes migrações que puseram fim ao Império Romano do Ocidente. Ainda que se tivessem tornado cristãos, os chefes francos traziam numerosos prisioneiros das suas expedições de conquista e de pilhagem; estes tornavam-se escravos nos grandes domínios desses chefes.

Os bispos tentaram em seguida proibir os cristãos de reduzirem à condição de escravos as pessoas que tinham sido baptizadas como cristãs. Mas tal proibição nunca foi respeitada. No leste da Europa, durante muito tempo, os escravos eram capturados e arrebanhados pelos mercadores cristãos e vendidos aos muçulmanos.

[Nos países muçulmanos] Os árabes, antes de Maomé, tinham escravos. Tal como a Torah e o Novo Testamento, o Corão não defendeu a supressão da escravatura. Este estado de coisas manteve-se durante muito tempo nos países muçulmanos. Os escravos eram propriedade dos seus amos mas estes tinham que observar algumas regras. Os escravos casados viviam juntos com os filhos. Os maus tratamentos, em princípio, eram proibidos. Tal como em Roma, os escravos domésticos eram menos infelizes do que aqueles que trabalhavam nos grandes domínios ou nas empresas do Estado. Rebentaram revoltas. No século IX, na Mesopotâmia, deu-se o levantamento dos Zanj, escravos [...] de origem africana, que durou quinze anos. O seu chefe, cognominado "O Encoberto" acabou por ser executado, e os sobreviventes foram assassinados selvaticamente.

A partir do momento em que o islamismo se estendeu da Espanha até à Índia, o tráfico de escravos fez-se em grande escala. Os negros eram capturados na costa oeste da África. As mulheres brancas da região do Cáucaso eram muito procuradas para escravas domésticas.

Mercadores cristãos participavam nesse tráfico ao lado dos mercadores muçulmanos e de certos chefes negros.

[A servidão na Europa] A escravatura acabou por desaparecer na Europa cristã. Mas foi substituída por outra desigualdade, a servidão.

Perante o perigo dos ataques dos vikings e dos húngaros, os camponeses livres pediam a protecção dos senhores instalados nos seus castelos.

Os senhores estavam seguros da obediência daqueles que protegiam. Então libertaram grupos de escravos e instalaram-nos em pequenas propriedades. Os antigos escravos e os antigos camponeses livres eram protegidos pelo senhor, mas tinham de prestar-lhe toda a espécie de serviços. Todos eles se tinham tornado "servos".

No entanto, trabalhavam agora no seu pedaço de terra com mais afinco. E as culturas progrediram, mesmo que uma parte da colheita tivesse que ser entregue ao senhor.

[Os que rezam, os que combatem e os que trabalham] A Igreja, à qual alguns cristãos piedosos tinham cedido enormes propriedades, tornara-se muito rica. Os bispos e os chefes da Igreja pertenciam quase sempre a famílias nobres. Contrariamente, nos campos, a vida dos padres era semelhante à dos camponeses. E, durante muito tempo, estes padres eram casados. Mas não eram estes que dirigiam a Igreja.

Por volta do ano 1000, alguns bispos instruídos escreveram textos defendendo a ideia de que os cristãos estavam divididos em três grupos, três "ordens": os que rezavam (os padres), os que combatiam (os senhores), e os que trabalhavam para sustentar os outros (os camponeses). Os padres e os senhores eram "os superiores"; os camponeses "os inferiores". Era um pouco a mesma divisão que se observava na sociedade indiana, excepto que não havia "intocáveis".

Deste modo, na Europa cristã, a desigualdade era justificada por aqueles que possuíam os conhecimentos, o poder e as riquezas. Diziam que esta era a ordem determinada por Deus desde a criação do mundo, como afirmavam, por seu lado, os brâmanes na Índia ou os chefes feiticeiros na África.

[...]

[Guerras santas e perseguições religiosas] [...] Os combates entre tribos nómadas e povos sedentários, as pilhagens e as conquistas de reinos e de impérios fizeram-se sempre com a ajuda de armas, mesmo se em seguida as lentas misturas entre povos de origens diferentes se puderam produzir com menos violência e, por vezes, de um modo mais feliz.

* Conquistar em nome de Deus e de Alá. No Velho Testamento, Israel, após se ter libertado da escravatura no Egipto, torna-se um povo de guerreiros que conquista a região de Canaã - a Palestina -, repelindo os seus habitantes, e que, em seguida, se terá que defender.

O cristianismo e o islamismo nada fizeram para impedir as guerras. Antes pelo contrário, como cada uma dessas religiões pensava que só ela era a detentora da verdade, isso iria dar aos crentes novas razões para o combate: faziam-no, então, em nome de Deus.

Contudo, Jesus tinha dito no Evangelho: "felizes os 'pacíficos' (os que querem a paz), pois eles serão chamados 'filhos de Deus'." E, no Corão, cada capítulo ou surata começa por "Em nome de Deus clemente e misericordioso", ou seja, "benevolente e que perdoa".

Apesar desses textos, a religião, muitas vezes, serviu-se do espírito de conquista e da vontade de dominar.

- Do lado cristão, a Igreja deu apoio, nas suas guerras contra os não-cristãos - os pagãos -, aos chefes e aos príncipes que aceitassem reconhecer a sua autoridade, como por exemplo Clóvis ou Carlos Magno. O Grande Império Carolíngio alargou-se à custa de massacres e da submissão dos saxónios convertidos à força ao cristianismo.

- A partir da Hégira - a fuga de Maomé para Medina -, as conquistas árabes foram fulgurantes. Num século, da Espanha e de Marrocos até ao rio Indo na Índia, um imenso império muçulmano tinha nascido, em breve partilhado entre vários califas.

* Muçulmanos bastante tolerantes. Nos livros de História de França, insisti-se muito nas pilhagens e nas razias dos muçulmanos, que os cristãos da época chamavam sarracenos. O objectivo dos árabes nas suas conquistas foi primeiramente o de converter toda a gente ao islamismo. Mas logo que os muçulmanos se instalaram no poder, os não-convertidos não ficaram sujeitos a violências. Os cristãos e os judeus tinham que pagar um imposto e isso enriquecia os califas. Mas, como quer uns quer outros pertenciam também ao povo do Livro (a Bíblia), os cristãos e os judeus beneficiavam de uma protecção especial.

O mundo muçulmano englobava as regiões do Médio Oriente onde existiam as mais velhas cidades do mundo e onde o comércio era florescente. No Médio Oriente e na Espanha, os árabes viviam lado a lado com os judeus e com os cristãos. Sábios e filósofos eram aí bastante numerosos.

O mundo muçulmano era assim muito mais variado do que o mundo europeu cristão. Os muçulmanos também se dividiram a propósito das suas crenças e também se guerreavam entre si. Mas, cerca do ano 1000, o mundo muçulmano aceitava melhor os não-muçulmanos que o mundo cristão aceitava aqueles que não eram cristãos. 

Certos conquistadores muçulmanos fizeram, no entanto, terríveis razias, como, por exemplo, o califa Al-Mansur nos finais do século X, na parte cristã da Espanha. Um dos mais terríveis foi Tarmelão, de origem turca, que mandou massacrar dezenas de milhares de pessoas na Pérsia e na Índia.

* Na Europa cristã, antes do ano 1000, judeus e cristãos viviam lado a lado. Durante séculos, judeus viveram em boa vizinhança com os cristãos. Depois da sua dispersão pelas cidades do Império Romano, os judeus espalharam-se pelas regiões onde os príncipes se tinham convertido ao cristianismo.

Na época de Carlos Magno, alguns judeus eram grandes viajantes. Estes circulavam por terra e por mar e facilitavam as relações entre o Oriente e os países europeus. Falavam, na maior parte dos casos, várias línguas, a dos francos, dos eslavos, dos espanhóis, mas também o persa, o árabe e o grego. Tal como no mundo muçulmano, os judeus eram então altamente considerados pelos príncipes e podiam viver de acordo com as suas próprias leis. 

Por vezes, até os cristãos se convertiam ao judaísmo e certos bispos começaram a inquietar-se. Para eles, os judeus eram pessoas ímpias, infiéis que não queriam reconhecer Cristo nem a autoridade da Igreja. No entanto, a situação dos judeus continuava a ser boa. Eram numerosos na Provença, no condado de Tolosa, e comunidades novas criaram-se nas duas margens do Reno. Tudo iria mudar com a primeira cruzada.


Cavaleiro prestando juramento antes da cruzada. Ca. 1250


* A Cruzada cristã contra os infiéis. Depois do ano 1000, acabaram as invasões dos vikings e dos húngaros. Mas os senhores mantinham ainda um espírito batalhador. Alguns homens da Igreja pensavam que os cristãos não se deveriam combater uns aos outros e tentaram proibir a guerra ao domingo, através da "trégua de Deus".

Para os afastar da Europa, a Igreja propôs-lhes partirem para longe para irem combater na Palestina para "libertar o túmulo de Cristo", caído nas mãos dos muçulmanos de origem turca, os seljúcidas. Prometiam-lhes, se partissem assim em "cruzada", se se tornassem "cruzados", ser-lhes-iam perdoadas todas as suas más acções, ou seja, os seus pecados.

Deste modo, as cruzadas foram guerras imaginadas pelo papa para reconquistar a Palestina e Jerusalém aos muçulmanos.

Para os cristãos, o importante era os lugares santos onde Jesus Cristo tinha morrido. Mas, para os árabes, os cruzados a que eles chamavam "franj", apresentaram-se durante a primeira cruzada como terríveis assassinos. Com efeito, logo que chegaram à Síria, os cruzados destruíram aldeias pacíficas e fizeram perecer a população de Jerusalém através de um horrível banho de sangue.


Cruzados atacam Constantinopla, Geoffreoy de Vilehardouin, Veneza, ca. 1330.


* Os pequenos reinos cristãos no Médio Oriente. Houve oito cruzadas durante duzentos anos. Em 1204, os cruzados pilharam atrozmente Bizâncio, cidade cristã ortodoxa. Os "franj", cristãos da Europa, criaram reinos no Médio Oriente. Mas Jerusalém foi rapidamente reconquistada pelo sultão Saladino. Finalmente, os europeus tiveram que abandonar o Oriente que os tinha maravilhado e instruído. Os árabes, porém, nunca se esqueceram das atrocidades cometidas pelos "franj".


Batalha de Ager: cristãos x muçulmanos. Ca. 1337


* Outras cruzadas na Europa e a Inquisição. Outras cruzadas tiveram lugar na Europa. Primeiro, contra os califas muçulmanos de Espanha. Os cristãos chamaram a esses combates a Reconquista. Esta durou quase quinhentos anos.

Houve também cruzadas contra aqueles que a Igreja apodava de heréticos, aqueles cujas ideias o papa condenava como, por exemplo, os cátaros.

Com efeito, desde que o cristianismo se tornou religião obrigatória, a Igreja foi sempre muito rígida no que dizia respeito ao que se podia ou não se podia acreditar. Os bispos reuniam-se em assembleias, em concílios, para decidirem sobre o que se deveria acreditar. O papa tinha ganho cada vez mais importância.

Para exterminar os heréticos, um monge espanhol, Domingos, criou, em 1231, um terrível tribunal, a Inquisição. Padres interrogavam os suspeitos de não pensarem como recomendava a Igreja. E, se eles não reconhecessem os seus erros, eram queimados vivos numa fogueira.

Joana d'Arc, condenada pela Inquisição, foi queimada como "bruxa" em 1431. Os processos de bruxaria eram raros nessa época. Mas, mais tarde, nos séculos XVI e XVII, milhares de pobres mulheres jovens e velhas foram condenadas e queimadas como bruxas em toda a Europa cristã. E essas nunca foram "reabilitadas" (reconhecidas como inocentes) pela Igreja, como Joana d'Arc em 1456.

* A primeira cruzada foi fatal para os judeus. Cerca do ano 1000 as coisas começaram a ficar mal para os judeus. Muitos cristãos começaram a ficar inquietos. Pensavam que o fim do mundo vinha aí, precedido de toda a espécie de acontecimentos terríveis. Deram então ouvidos às afirmações dos bispos sobre a maldade dos judeus que tinham condenado Jesus à morte. Pensavam que os judeus os ameaçavam e atribuíam-lhes actos de bruxaria e o assassínio de crianças cristãs... Tinham esquecido completamente que o próprio Cristo era judeu!

Mas a infelicidade dos judeus na Europa cristã começou realmente com a Primeira Cruzada. Alguns cruzados, animados pela ideia de irem combater os "infiéis", quiseram, antes de ganhar a guerra santa, começar por matar os infiéis que viviam em terras cristãs. Pilharam e massacraram as pacíficas comunidades judaicas que encontraram pelo caminho.

Horríveis matanças de homens, mulheres e crianças tiveram lugar em Ruão, depois no vale do Reno em Spira, em Worms, em Colónia e em Trèves. Tudo se passou durante o Verão de 1096.

* Perseguições e expulsões. A Primeira Cruzada marcou realmente o início das perseguições aos judeus na Europa cristã. O papa decidiu que estes deveriam trazer uma marca que os distinguisse, uma roda em tecido, a "rodela" sobre os seus fatos. Os judeus começaram, cada vez mais, a agrupar-se em bairros à parte, que se chamaram guetos. No reino de França, o rei Luís IX (São Luís) foi o primeiro a fazê-los usar a rodela. Mais tarde, em 1394, foram expulsos do reino.

No século XIV, uma terrível epidemia de peste devastou toda a Europa. Acusaram então os judeus de terem envenenado os poços e houve novos massacres.

Os judeus, expulsos de Inglaterra e de França, refugiaram-se primeiramente no Império Germânico. Finalmente, foram bem acolhidos na Polônia e na Lituânia pelo rei cristão Casimiro, o Grande.

Numerosas comunidades judaicas foram então estabelecidas no leste da Europa. Estas existiam ainda antes da Segunda Guerra Mundial.

Os judeus tinham podido viver durante séculos na Espanha muçulmana, mas tudo mudou depois da "Reconquista" cristã. Os reis católicos Isabel e Fernando obrigaram todos os judeus que não se quisessem converter ao cristianismo a deixar a Espanha. Algumas famílias viviam aí há mais de mil anos. Os judeus partiram então em grande número, alguns para a Holanda e a maior parte para os países muçulmanos.

Os espanhóis que quisessem permanecer muçulmanos foram também obrigados a partir.

[...]

CITRON, Suzanne. A história dos homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 133-153.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A relação Mito-História

Júpiter e Tétis, Ingres

Você conhece a Mitologia grega?

E sabe o que é um mito?


O Homem, no seu enfrentamento diário com a Natureza e com os outros homens, tem necessidade de compreender os fenômenos que ocorrem à sua volta: sua atuação, tanto do ponto de vista individual quanto social, exige um conhecimento do mundo que o rodeia. Não sabemos quando, onde, como e por quem foi lançada pela primeira vez a pergunta por quê? No entanto, podemos constatar que os homens sempre procuraram respondê-la, isto é, sempre procuraram compreender os fenômenos.

Sabemos que, em contextos culturais mais primitivos, o Homem se vincula à vida através de uma percepção predominantemente sensorial. É extremamente dependente do meio ambiente: os problemas de sobrevivência lhe tomam todo o tempo; todo os seus sentidos e seu pensamento estão voltados para isso. E não poderia ser de outra forma. Por isso, o Homem primitivo apenas simboliza: criando um conjunto de símbolos para representar a realidade, ele dá respostas aos porquês; as magias, os totemismos, os mitos nada mais são do que uma expressão desse esforço de compreensão do mundo. Portanto, todo o grupo humano no seu enfrentamento com o mundo cria cultura, isto é, cria objetos, para satisfazer a suas necessidades físicas e materiais, e cria ideias, para satisfazer a suas necessidades intelectuais.

Então, o que você pode concluir?

Toda cultura tem sua forma de explicar a realidade. O que varia é a forma de apreensão dessa realidade, e isso depende das possibilidades de o Homem, em uma dada sociedade, com determinadas condições de vida, tomar consciência de si mesmo, de tudo que o cerca e de sua historicidade. Logo, o mito é uma explicação do mundo, fruto de uma apreensão sensorial-afetiva. É uma explicação que incorpora todos os fenômenos em um contexto transcendental, heróico, divino, mágico...

E, o que é mais importante: os mitos, as magias, os totemismos são explicações do mundo vividas e compartilhadas por todos os elementos de um grupo, em um estágio de comunidade primitiva onde o regime de propriedade é coletivo. Assim, a produção intelectual dessas sociedades significa um esforço de compreensão do mundo, cujo resultado é transmitido através de uma linguagem inteligível para todos no grupo... É, sem dúvida, um estágio de pensamento que ainda hoje convive conosco, mesmo nos grandes centros urbanos... Por quê?

Repare! Quando perguntamos se você conhece a Mitologia grega é porque ela representa um primeiro estágio de explicação do mundo dentro da nossa cultura. Estágio que, longe de ser superado, sobrevive simultaneamente com explicações presididas pelo logos, isto é, por uma apreensão racional.

Ora, qual o significado de uma apreensão racional? Quais as condições necessárias ao seu surgimento?

Quando o grupo humano, vivendo sob o regime da comunidade primitiva, conseguiu, através de um aperfeiçoamento técnico, produzir um excedente econômico, criou condições para maior divisão do trabalho. Evidentemente, os elementos do grupo que passaram a ter por função o controle desse excedente econômico assumiram um poder de coação sobre os demais membros do grupo. Ora, essa minoria, cujo trabalho passou a se fundamentar em tarefas de organização e administração, sentiu a exigência de um maior nível de abstração da realidade, além da necessidade de escrever para registrar os dados importantes. Daí, compreendemos que a própria racionalização começava a ser mais uma forma de exercício do poder dessa minoria em relação aos demais membros do grupo, de vez que a linguagem utilizada para expressar os resultados de seus esforços de compreensão do mundo não mais era compartilhada por todos os membros do grupo.

Percebeu, então, quanto é importante para nós, homens do século XXI, procurarmos reviver todos esses momentos de nossa cultura?

Se desejamos realmente crescer como seres humanos, amadurecer emocional e intelectualmente, precisamos superar etapas. Mas isso só será possível quando a totalidade dos homens puder viver todos os níveis de abstração de sua cultura.

O ato de conhecer, que existe no Homem como essência mesmo - na medida em que sem o conhecimento do mundo não poderia sobreviver (sem conhecer as utilidades do fogo, por exemplo, ele não poderia usá-lo) - passou a ser considerado um saber que, se tornando atributo de alguns poucos "eleitos", fez surgir as figuras do sábio, do filósofo, do cientista... Aprofundou-se a hierarquia e a dicotomia entre os que sabiam e os que não sabiam. Na verdade, a dicotomia era entre os que possuíam e os que trabalhavam...

Agora, preste atenção! Voltemos ao termo "História". Evidentemente, a História não foge à análise que fizemos até aqui. A princípio, você pode imaginar, a História esteve associada às lendas e aos mitos, revividos por todos os elementos do grupo através de rituais. Era a forma de o grupo manter viva na lembrança de todos a História - as tradições culturais transmitidas oralmente. Aos poucos, no entanto, foi-se tornando um saber: a vida vivida por todos a ser revivida por alguns através da palavra escrita. E o saber histórico, isto é, a forma de conhecimento da realidade, assumida como ofício por alguns elementos da nossa cultura, é, aqui, o objeto de nossas preocupações.

[...]

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 39-41.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Ser índio

Índios Yalawapiti tocam flauta de bambu. Parque Nacional do Xingu.

Índio é um termo ambíguo, como muitos outros, aliás.

Os espanhóis e portugueses, no século XV, navegavam pelo Atlântico em busca de um caminho para as Índias. Do vale do rio Indo e suas adjacências, vinham produtos muito apreciados - as especiarias - que serviam tanto para temperar como para preservar as comidas em uma época em que não havia geladeiras e refrigeradores. O avanço dos turcos otomanos pelo Mediterrâneo Oriental contribuiu para a diminuição do tráfico oriental, e os ibéricos tomaram a iniciativa de buscar uma rota alternativa para a Índia. Primeiro tentaram pela África, até que Cristóvão Colombo buscou um caminho direto, navegando sempre a ocidente. Chegou ao Novo Mundo, como ficaria conhecido, sem saber que de fato era uma nova terra. Pensou ter chegado ao continente asiático: China ou Índia. Mesmo quando, algum tempo depois, os europeus perceberam que a América era outro continente, continuaram a usar o termo "índio" para se referirem aos habitantes dessas terras.

Outros nomes foram também usados: aborígene, indígena e nativo. São termos mais eruditos, que designam aquele que é nascido em determinado lugar. Termos latinos, os três nomeiam a pessoa original (ab origine) e o nascido em casa (indigena, natiuus). Porém, o nome que se popularizou foi mesmo índio.

Os índios foram, assim, designados por seus conquistadores, pois nunca se chamaram a si mesmos dessa forma antes de 1492. Como se chamavam, então? De milhares de maneiras, cada povo a seu modo, com nomes que podiam significar simplesmente "seres humanos", por oposição aos outros grupos. O caso dos tupiniquins e tupinambás dá uma ideia dessas autodenominações. "Tupi" significa "o ancestral", e então "os descendentes do ancestral" são os tupinambás ("nambá" quer dizer descendente), enquanto "tupinamki" (o nome original dos tupiniquins) quer dizer "o galho do ancestral", em que "galho" possui sentido de ligações de parentesco. Pode parecer muito banal, mas o mesmo processo de nomeação ocorre em outros povos, ainda que não tenhamos consciência do sentido das palavras. Assim como tupi é ancestral, Abraão quer dizer, em hebraico, justamente, ancestral! "Guarani" significa "guerreiro", nome apropriado para um grupo humano que se valoriza, assim  como "inca", que na língua quíchua significa "senhor". Podiam ser "bons na caça aos caranguejos", como os guajajaras. Nem sempre sabemos como um povo chamava a si mesmo, mas podemos conhecer como descreviam outro povo, como no caso dos "guarulhos", "os barrigudos", ou os "nambiquaras", "orelhas furadas".

Com o passar dos séculos e com a interação de nativos e colonizadores, o termo "índio" passou a ser usado como um genérico, muitas vezes de forma pejorativa, mas também com o devido orgulho por eles próprios. Em muitos países, os movimentos pelos direitos dos nativos usam o termo índio, ou seus derivados, como o Movimento Índio Peruano (MIP). Há órgãos oficiais como a Fundação Nacional do Índio (Funai), assim como o United States Bureau of Indian Affairs, nos Estados Unidos. Isso significa que "indígena", "nativo" ou "índio" corresponde a uma designação ampla que procura englobar a diversidade de grupos humanos autóctones da América.

Em todo o continente americano, há maneiras muito variadas de definir quem seria índio. No Brasil, segundo estatísticas oficiais, a porcentagem de indígenas é muito baixa, menos de 1% da população, já que no ano 2000, 734 mil pessoas se definiram como índios (0,4%). Mas [...] uma grande parcela da população tem ascendência indígena. Já em países como o Paraguai ou a Guatemala, a maioria da população se define como indígena e fala línguas nativas, como o guarani e o maia, respectivamente. Contudo, mesmo nesses casos, os indígenas estão mesclados geneticamente com os colonizadores europeus, ainda que prevaleça a língua indígena, como ocorre no Paraguai, com 90% de falantes do guarani - idioma oficial do país.

Não existe pureza de origem em nenhum lugar do mundo nem ser índio depende apenas da genética ou mesmo da autodefinição. [...]

FUNARI, Pedro Paulo; PINÕN, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.  p. 17-20.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

As formas de controlar os costumes na Idade Moderna

A forma tradicional de controlar os costumes. Durante muito tempo era comum o controle dos costumes pela comunidade. A censura se manifestava particularmente nas ocasiões especiais, como nos casamentos. Mas o comportamento das moças solteiras e a relação entre marido e mulher, por exemplo, também estavam sob o olhar atento dos membros da comunidade. O indivíduo, mesmo depois da morte, não escapava de ser censurado publicamente nas cerimônias fúnebres.

Essa censura pública era mais comum nos vilarejos, embora ocorresse também nos bairros urbanos.

A maneira mais comum de punir a infração ao costume era divulgá-la, realçá-la publicamente, expondo os infratores à jocosa censura pública. [...]

[...]

Viúvos e viúvas que se casavam novamente eram vítimas de uma série de ações coletivas: encenações maldosas, desfiles, zombarias variadas na porta das suas casas etc. O casal, por ocasião das núpcias, podia ser alvejado com excrementos de animais, ser atirado na lama ou obrigado a desfilar pela aldeia montado em um asno.

Condenáveis também eram os casamentos entre pessoas de diferentes estratos sociais. [...]

Condenava-se ainda o casamento de uma pessoa com forasteiros. Parecia haver um sentimento de que as mulheres de uma localidade pertenciam aos homens dessa mesma localidade.

Um outro casamento condenado e sujeito a situações constrangedoras e humilhantes era o de pessoas com grandes diferenças de idade.

O marido que apanhava da mulher ou por ela era dominado também sofria hostilidades da comunidade. A mulher que arrancava o marido que estava bebendo ou jogando na taverna e o arrastava para casa provocava igualmente uma reação da comunidade. Encenações do episódio eram feitas debaixo da janela do casal. Versos alusivos ao comportamento da mulher eram cantados e acompanhados de sons de cornetas e tambores.

O marido traído também era desprezado. Armavam-se verdadeiras "cortes" para encenarem julgamentos satíricos sobre os suspeitos. Promoviam-se também, em determinadas épocas do ano, desfiles com esses indivíduos pelas ruas do vilarejo e arredores.

As alcoviteiras sofriam a mesma censura. Sob apupos e acompanhadas de um ruidoso cortejo, eram obrigadas a desfilar pelas ruas montadas de costas em um asno.

O comportamento das jovens também sofria a censura popular. [...] Uma planta com muitos espinhos, transportada de outro lugar e fincada ao lado de uma residência, significava que a moça que ali morava era orgulhosa, não deixava ninguém se aproximar dela. [...]

Todos esses rituais, referentes ao comportamento das moças, à autoridade dos maridos e aos casamentos adequados e inadequados, lembravam aos membros da sociedade qual era o comportamento que se esperava deles. Os rituais expressavam uma indignidade sobre a qual a população estava de acordo. O rito denunciava o que, na verdade, todos já sabiam. A denúncia era ao mesmo tempo o castigo, e este se tornava mais rigoroso quando as vítimas se recusavam a negociar.

Negociar significava aceitar a censura, participar dela de uma maneira conformada. Uma dessas maneiras era convidar todos para beber. Pagar bebidas era uma maneira de mostrar que se aceitava a censura e de se confraternizar com os promotores do ritual. Assim, era possível transformar o ritual punitivo em festivo. Tornava-se festa sem perder o caráter punitivo.

Os agentes da censura. Quem eram os participantes desses rituais que ridicularizavam e censuravam as pessoas com comportamento considerado inadequado em relação ao casamento e à sexualidade?

A regra, não sem exceções, era que os agentes e promotores da censura ritual fossem os jovens. Eram eles que promoviam as algazarras, extorquiam as vítimas obrigando-as a pagar bebidas e comidas, encenavam os episódios que queriam ridicularizar, organizavam os desfiles satíricos, os rituais da morte e os tribunais que julgavam os maridos traídos.

Por que esse papel cabia aos jovens? Por que eram eles os detentores da expressão ritual da censura coletiva?

Os rituais, para terem o efeito de censura e punição, precisavam ser exagerados. Lembravam a ordem tradicional a ser seguida por meio da desordem momentânea. Os excessos necessários à eficácia do ritual são mais aceitáveis se forem feitos pelos jovens. A tolerância com a juventude se prendia ao fato de que ela faz algo que também já fizemos. O que é próprio da juventude não ficaria bem para o senhor respeitável da comunidade.

Dessa forma, a juventude era o agente da censura da comunidade contra os que ameaçavam a ordem tradicional com um comportamento inadequado. [...] Uma perversão da ordem na busca do divertimento e do prazer era uma norma de vida para os jovens, que, no entanto, se dedicavam a punir os outros.

De uma outra forma, as mulheres também desempenhavam um enorme papel no controle social. Grupos de mulheres funcionavam, por meio de sutis mecanismos de exclusão, como censores. A mulher de "má conduta" sofria múltiplas discriminações no sentido de excluí-la do convívio social mais amplo na comunidade.

Nesse sentido, as mulheres, alvos privilegiados da censura social, agiam como censoras de si mesmas, contribuindo para a manutenção de uma moral social da qual eram as principais vítimas.

A imagem mostra a ação coletiva de censura aos costumes. Vemos os maridos traídos sendo vítimas de um festivo ritual popular. William Hogarth


A reação contra a censura coletiva. Essa forma de controle social, com mecanismos criados pela própria comunidade, sofreu, ao longo da Idade Moderna na Europa, a concorrência do poder do Estado. Do século XIV ao XVIII esses ritos e práticas passaram a receber a oposição dos poderes religiosos e civis, ambos representantes do Estado. [...] durante o Antigo Regime, nos diversos países europeus, o poder religioso estava associado ao poder político do Estado, tanto nos países protestantes como nos católicos.

As autoridades civis e religiosas, principalmente a partir do século XVII, se uniram para, em nome da ordem e da decência, proibir as algazarras populares organizadas por ocasião dos casamentos, brigas entre maridos e mulheres, cerimônias fúnebres.

A família burguesa começou, cada vez mais intensamente, a apresentar queixa às autoridades contra a interferência em sua vida familiar e privada. Aos poucos ela parecia se convencer de que tinha direito a uma vida privada, longe da censura pública. Isso está ligado ao processo de urbanização e de fortalecimento do Estado. Os agentes da justiça, os padres e a polícia pouco a pouco substituem o controle coletivo do comportamento social pelo poder da lei, pela autoridade pública.

[...]

Pastor de almas e guardião das famílias. A tensão entre os costumes tradicionais e a nova ordem controlada pelo Estado se concentrou na figura do padre da paróquia, o vigário.

A disciplina dos seminários da Contrarreforma conseguiu unificar a posição desses padres sobre a religião e os costumes. Eles se colocavam, portanto, como os principais adversários das formas tradicionais de controle. Desde o final do século XVII o vigário de aldeia acumulou à sua função de ministro religioso a de representante da Monarquia. Ele registrava os batismos, casamentos e óbitos, tendo o dever de guardar essas informações de interesse do Estado. Além disso, depois da missa, lia para os fiéis os decretos e regulamentos governamentais, lembrando aos ouvintes o dever de obediência às determinações legais.

Nas regiões protestantes o ministro religioso assumiu funções semelhantes, funcionando como agente do poder do Estado e como pastor das almas. Assim, mantinha sobre os fiéis uma dupla vigilância, a civil e a religiosa.

Esses religiosos tinham ainda nas mãos vários instrumentos punitivos. Podiam recusar a comunhão aos depravados e imorais, assim como interditar o cemitério ao sepultamento do libertino e do mau cristão.

Além disso, como instrumento de controle e como meio de intervir nos segredos da intimidade e do lar, havia o confessionário. Nesse espaço, principalmente por meio das mulheres e das jovens, o religioso tinha a dimensão dos perigos que ameaçavam a moral e a ordem pública.

[...]

O controle exercido pelos agentes do Estado e da religião era muito mais abrangente. Como adversários e concorrentes da censura tradicional, eles ampliaram, sistematizaram e intensificaram o controle sobre a vida privada dos indivíduos e das famílias.

Assim, o poder público embrenha-se cada vez mais nos segredos familiares. Além da censura à imoralidade, ao adultério e à ligação amorosa proibida, eram também passíveis de condenação a homossexualidade, o incesto, o concubinato, a poligamia e a sodomia.

Por tudo isso, a censura ritual se voltou contra o vigário e o ministro religioso, vistos como ameaça aos costumes tradicionais, na medida em que criavam novas formas de controle social.

A reação da juventude contra esse processo foi ostensiva. O padre e o ministro foram sumariamente vigiados pelos jovens, como também mais tarde o mestre-escola, outro agente do poder estatal. Com isso, procuravam encontrar deslizes sexuais ou de qualquer outra natureza que servissem para desmoralizar esses agentes. Esses deslizes eram temas para os ritos de censura tradicionais: desfiles, canções satíricas, encenações, julgamentos burlescos.

[...]

PEDRO, Antônio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 284-289.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Revolução Haitiana

Batalha em Santo Domingo, January Suchodolski

Os ideais europeus do século XVIII, como o de que "o homem nasce livre e igual em direitos" e de "liberdade, igualdade e fraternidade", também se espalharam para as praias do Caribe, onde foram traduzidos em questões sobre propriedade, trabalho e raça. Logo depois da Revolução Francesa (1789), fazendeiros brancos em Santo Domingo (o terço ocidental da ilha de Hispaniola, atual Haiti) receberam o controle das assembleias coloniais e uma grande parcela de autonomia. Então, na Assembleia Nacional de Paris, em 1791, respondendo às pressões da sociedade abolicionista europeia, Lês Amis des Noirs ("Os Amigos dos Negros"), aprofundaram a extensão dos direitos a todas as pessoas livres, incluindo mulatos (aqueles com mistura de raças), decretando que as "pessoas de cor, nascidas de pais livres" deveriam ter direito a voto nas assembleias coloniais. Os fazendeiros brancos exigiram que a lei fosse repelida e ameaçaram aliar-se ao império britânico se não fossem atendidos. Tanto os fazendeiros brancos quanto os mulatos começaram a se armar, e então o conflito que estourou entre eles ofereceu aos escravos a oportunidade de se revoltar.

Ataque e tomada de Crête-à-Pierro, Auguste Raffet

A ameaça potencial da revolta escrava de Santo Domingo foi enorme. A maior parte dos escravos, diferentemente daquelas nos Estados Unidos, era nascida na África, e eles formavam a maioria da população, superando em números outros grupos étnicos por uma razão de 30 para 1. Como o interior montanhoso da colônia oferecia amplos esconderijos inacessíveis, existiram várias comunidades de quilombos (em guerra pela liberdade). Crenças comuns, como aquelas da religião derivada da África do Vodum (Vudu), e o compartilhamento de mitos e heróis, uniu diversas populações escravas. Em 1791, os escravos do norte de Santo Domingo exigiram sua própria liberdade e se rebelaram; durante grande parte do período entre 1791 e 1792, ataques e revoltas escravas se espalharam pela ilha. Os franceses enviaram tropas com  relutância. Tentativas de negociação para restaurar a ordem colonial falharam ao tentar ganhar o apoio de escravos. Em 1793, a Assembleia Nacional Francesa garantiu a emancipação dos escravos, um ato que liberou os negros e irritou ainda mais os fazendeiros, que aceitaram o auxílio dos britânicos (os quais estavam alarmados com a possibilidade de que a rebelião escrava pudesse se espalhar para suas colônias) contra os escravos rebeldes.

O general Toussaint L'Ouverture, Artista desconhecido

Mais de 100 mil escravos participaram da rebelião sob a liderança de Toussaint L'Ouverture (1746-1803), o filho instruído de pais escravos. Em seus esforços para libertar seus companheiros negros escravos, Toussaint lutou durante uma década contra a intervenção, e o bloqueio das nações escravocratas (França, Grã-Bretanha, Espanha e Estados Unidos), e até mesmo contra a oposição dos mulatos. Em 1801, ele e seus apoiadores controlaram toda a ilha de Hispaniola, mas muitas batalhas foram travadas antes da vitória final estabelecer a independência do Estado-Nação do Haiti.

Uma vez que Napoleão assumiu firmemente o controle na França, ele enviou um enorme exército para invadir Santo Domingo. L'Ouverture foi induzido a se encontrar com os franceses, e foi traçoeiramente capturado e levado para a Europa, onde foi aprisionado e depois morto em 1803. Jean-Jacques Dessalines e Henri Christophe continuaram a luta no Haiti; a tenacidade negra e a febre amarela derrotaram os massivos esforços franceses de recuperar o controle de Santo Domingo. Em 1º de Janeiro de 1804, a independência da metade ocidental de Hispaniola foi proclamada, à nova nação foi dado o nome de Haiti. Mas a independência veio com um alto preço, deixando o país empobrecido e infestado de disputas políticas pelos próximos 200 anos.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 214-215.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

1492: Memória e trocas culturais

O ano de 1492 tornou-se um marco histórico, entre outras coisas, porque deu início a uma série de transformações. Tanto na Europa, de onde vieram os pretensos descobridores, como na América, a terra descoberta. Uma e outra nunca mais seriam as mesmas. Nós, habitantes da América, somos resultantes desse fato histórico.

A América foi descoberta ou conquistada? Essa pergunta é relativamente recente. Do ponto de vista europeu, a América foi descoberta pela expedição comandada por Cristóvão Colombo, em 12 de outubro de 1492, a serviço do rei da Espanha. A partir dessa data os europeus passaram a conhecer uma terra antes desconhecida por eles, portanto, descobriram-na. Mas, do ponto de vista dos povos indígenas que aqui viviam, essa terra, denominada América pelos europeus, foi invadida e conquistada.

Se antes se falava em descoberta e hoje, em conquista, não é, obviamente, porque se ignorava que essa terra já era habitada. Isso decorria do fato de que a história era escrita e contada do ponto de vista europeu, ou seja, dos vencedores. Mais recentemente tenta-se recuperar o ponto de vista dos vencidos, das vítimas da descoberta e da conquista europeia.

Mas esse ponto de vista novo não é fácil de ser estabelecido. Os testemunhos chegaram até nós de maneira indireta, muitas vezes por meio de textos escritos pelos próprios conquistadores, ou por indígenas que já haviam assimilado muito da cultura do conquistador, principalmente a escrita. Assim, as vozes dos vencidos estão na boca dos vencedores.

Além disso, não temos apenas um povo vencido, pois havia, e há, na América uma variedade de povos, com diferenças muito grandes entre si. O termo "índios" é inadequado. Criado pelo europeu, esse termo refere-se a povos muito diferentes um do outro. Mesmo assim, continuamos a usá-lo.

A experiência de cada um desses povos no contato com os europeus invasores também não foi a mesma. A conquista não se fez apenas pela força das armas, ela se deu também pela colonização e pela catequese.


Imagem do Códice Florentino em que indígenas são acometidos pela rubéola


Se as vozes dos vencidos são muitas, as dos vencedores também são variadas e, não raro, discordantes. Um dos textos mais citados para denunciar a violência dos espanhóis contra os povos indígenas foi o escrito pelo padre dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas, em 1552. Uns praticavam a violência e a escravização, outros as denunciavam.

"É temerária, injusta e cruel a guerra que aos infiéis, ou seja, àqueles que nunca souberam nada acerca da fé ou da igreja, nem de nenhum outro modo ofenderam esta mesma Igreja, lhes é declarada, com o único objetivo de que submetidos ao império dos cristãos se preparem para receber a fé ou a religião cristã, ou também para retirar os impedimentos para a catequese.

[...] É contra o direito natural esta guerra que lhes causa inúmeros e irreparáveis danos, como mortes, selvagerias, estragos, roubos, servidão e outras calamidades semelhantes, a pessoas que vivem em suas terras e reinos, separadas do império dos cristãos e sem ter, de sua parte, nenhuma culpa;

[...] É também contrária ao direito divino, que proíbe matar nossos semelhantes, principalmente os inocentes, despojá-los de seus bens, tais como seus servos e servas, bois, burros, ou qualquer outra coisa que lhes pertença, caluniá-los, oprimi-los, dar falso testemunho contra sua vida, tomar o que lhes pertence com violência, e outras proibições semelhantes, inclusive os entristece. [...] LAS CASAS, Frei Bartolomé de. Del único modo de atraer a todos los pueblos a la verdadera religión. In: Coletânea de documentos para a História da América. São Paulo: CENP, 1983. p. 35-36.

Todavia, para além da oposição entre conquistadores e conquistados, invasores e invadidos, vencedores e vencidos, senhores e escravos, existiram as trocas culturais [...].

Quando dois ou mais povos entram em contato entre si, seja por meio da guerra, do comércio ou por outra forma qualquer, sempre vai haver uma troca cultural. Ao nos defrontarmos com o novo e o diferente, tentamos incorporá-lo ao nosso esquema de pensamento. Essa incorporação está condicionada pelos nossos conhecimentos e valores anteriores. O desconhecido é incorporado ao conhecido e, ao mesmo tempo, altera esse conhecimento anterior. Mesmo quando há uma rejeição ao novo, essa rejeição já passa a ser uma experiência nova para quem o rejeitou.

PEDRO, Antonio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 121-122.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

A América Latina no século XIX: o fenômeno do caudilhismo

Autorretrato na fronteira entre México e Estados Unidos, Frida Kahlo. 

Em meados do século XIX, México e Estados Unidos travaram uma guerra que deve ser analisada no contexto da expansão territorial norte-americana. Como resultado da derrota, o México perdeu mais da metade de seu território original. A pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954), na obra intitulada Autorretrato na fronteira entre México e Estados Unidos, de 1932, representa a si própria com um vestido colonial e usando colar, que faz referência a um dos deuses da cultura asteca. Há uma grande quantidade de justaposições entre sua roupa, seus adereços e a bandeira de parada cívica do México, que se contrapõem a inúmeros símbolos da moderna cultura norte-americana, representada pelos maquinários e a poluição de uma era industrial. Estes estabelecem para o observador uma ambiguidade quando colocados ao lado de símbolos da cultura asteca, como uma pirâmide e outros ligados à terra e à cultura camponesa. Como bem observou Andrea Kettenmann, "o mundo mexicano é pintado com cores naturais e quentes da terra; nascem flores e mesmo os produtos das esculturas feitas pelos homens e as pirâmides são construídas com materiais naturais. As nuvens do céu mexicano têm o seu correspondente na fumaça que sai das chaminés das fábricas da Ford, enquanto a rica flora, à esquerda, dá lugar a vários itens de equipamento elétrico, à direita em que cabos rasteiros se transformam em raízes, através das quais a energia do chão é sugada. Há o contraste entre a paisagem do antigo México, dominada pelas forças da natureza e pelo ciclo natural da vida, e, do outro, a paisagem morta norte-americana, dominada pela tecnologia". (KETTENMANN, Andrea. Frida Kahlo. 1907-1954. Dor e paixão. Lisboa: Paisagem, 2003. p. 33;)

Diferentemente do que ocorreu no Brasil, país no qual se manteve a unidade territorial construída no contexto da colonização portuguesa, implementou-se a Monarquia e viveu-se uma experiência parlamentarista, o processo histórico do restante da América Latina ao longo do século XIX foi bastante diferente.

Examinar a história da América Latina ao longo do século XIX significa compreender que os movimentos de independência não provocaram profundas transformações na estrutura socioeconômica. Ao contrário, uma das características marcantes da fase que se seguiu à dos movimentos de independência foi a conservação dessa estrutura, isto é, a chamada "herança colonial".

No contexto da organização dos Estados latino-americanos, o ideário liberal, pelo menos em tese, esteve presente. A tradição autoritária e a mais absoluta hegemonia socioeconômica das antigas elites criollas dificultaram a aplicação prática dos princípios liberais.

Assim, na elaboração de suas respectivas constituições, puderam ser identificados os princípios do liberalismo (liberdade, igualdade e divisão de poderes), assim como os conceitos de República e de federalismo (segundo o modelo da Constituição dos Estados Unidos).

No entanto, tanto o modelo federativo quanto a ideia de res publica (coisa pública), assim como os princípios liberais, de uma maneira geral, encontraram sérios limites - também no Brasil - que inviabilizaram sua real aplicação.

O modelo federativo, por exemplo, aplicado à realidade da América Latina, se revelou inadequado, devido, em parte, à falta de tradição de autonomia dos governos locais, secularmente submetidos à Coroa espanhola. Ao federalismo se opôs o unitarismo (centralização), mais associado à cultura política das lideranças latino-americanas.

A exclusão política das camadas populares, resultante da adoção do voto censitário - inspirado nas Constituições liberais de países europeus e dos Estados Unidos -, contribuiu para que o poder político ficasse concentrado nas mãos dos grandes proprietários de terra, núcleo original das oligarquias, predominantemente agrárias, que exerceram, de fato, a hegemonia política ao longo do século XIX e até mesmo em boa parte do século XX. À exclusão política das camadas populares - negros, índios e mestiços - somou-se o preconceito e a discriminação em relação a elas, reforçados por critérios étnicos ("povos de cor") mantidos e legitimados pelas elites "brancas", que se orgulhavam da "pureza do sangue" e de suas origens europeias.

Largo do paço, Rio de Janeiro, Luigi Stallone. A cidade do Rio de Janeiro, capital do Império, no contexto da modernização latino-americana do século XIX, tornou-se um "palco de contrastes": se, por um lado, as ferrovias já se impunham, assim como os bondes utilizados no transporte urbano e a iluminação pública, por outro, graves problemas de saneamento ainda persistiam a ponto de a cidade ser evitada, quando possível, por europeus que visitavam a América do Sul. Nesta pintura, pode-se ver o Largo do Paço, onde localizava-se o Palácio Imperial.

A vida política dos países latino-americanos durante o século XIX foi marcada pela instabilidade política, pela submissão das massas e pelo predomínio das oligarquias rurais.

Diante da ausência de um poder político institucionalizado, no contexto dos movimentos de independência, surgiram os caudilhos, chefes locais que, à frente de exércitos particulares, foram responsáveis por uma tradição militarista que se manteve durante o século XIX, de forma predominante. Os caudilhos vincularam-se aos interesses das oligarquias agrárias e mesmo do capital estrangeiro, pois contribuíram para a perpetuação de uma ordem econômica que, em última instância, vinha ao encontro dos interesses desse capital.

O fenômeno político do caudilhismo foi, portanto, característico da América hispânica ao longo do século XIX e teve suas origens nas dificuldades decorrentes do processo de consolidação de Estados Nacionais unificados com forte poder central.

Assim, ao poder econômico os caudilhos somaram, por seu prestígio militar regional, o poder político.

Contribuíram, dessa forma, para que o militarismo, a instabilidade política, o desrespeito à ordem constitucional, a tradição autoritária, os sucessivos golpes militares (pronunciamentos), a desarticulação da sociedade civil e, por conseguinte, a fragilização da própria democracia e da noção de cidadania fossem uma constante na história da América hispânica.

BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem. Curitiba: Base Editorial, 2010. p. 225-228.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Ruínas de Potosí: o ciclo da prata

Potosí

[...] Nos séculos XVI e XVII, a montanha rica de Potosí foi o centro da vida colonial americana: ao seu redor, de um modo ou de outro, giravam a economia chilena, que a provia de trigo, carne seca, peles e vinhos; a pecuária e os artesanatos de Córdoba e Tucumán, que a abasteciam de animais de tração e de tecidos; as minas de mercúrio de Huancavélica e a região de Arica, por onde era embarcada a prata para Lima, principal centro administrativo da época. O século XVIII marca o princípio do fim da economia da prata que teve seu centro em Potosí [...].

Aquela sociedade potosiana, doente de ostentação e desperdício, só legou para a Bolívia vaga memória de seu esplendor, as ruínas de suas igrejas e palácios e oito milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante incrustado no escudo de um fidalgo rico valia mais do que a quantia que um índio podia ganhar em toda sua vida de mitayo, mas o fidalgo fugiu com os diamantes. [...] Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia [...]. Essa cidade condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo frio, ainda é uma ferida aberta do sistema colonial na América: uma acusação. [...]

[...] Em Potosí, agora se explora o estanho que os espanhóis descartaram como lixo. Vendem-se as paredes de casas velhas como estanho de primeira. [...]

Em seus anos de apogeu, em meados do século XVII, a cidade abrigou muitos pintores e artesãos espanhóis ou nativos ou santeiros indígenas que imprimiram sua marca na arte colonial americana. [...] Os artistas locais cometiam heresias, como o quadro que mostra a Virgem Maria oferecendo um seio a Jesus e outro ao marido. Os ourives, os cinzeladores de prataria, os mestres do repuxado, os ebanistas, os artífices do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres abasteceram os numerosos mosteiros e igrejas de Potosí com talhas e altares de infinitas filigranas cintilantes de prata, e púlpitos e valiosíssimos retábulos. As fachadas barrocas dos templos, trabalhadas em pedra, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não se deu com os quadros, em muitos casos mortalmente mordidos pela umidade, ou com as figuras e objetos de pouco peso: turistas e párocos tiraram das igrejas tudo aquilo que podiam carregar: dos cálices e sinos até as talhas de Cristo e São Francisco em faia e freixo.

Essas igrejas pilhadas, fechadas em sua maioria, estão vindo abaixo, avariadas pelos anos. É uma lástima, porque mesmo as saqueadas são formidáveis tesouros em pé de uma arte colonial que funde e realça todos os estilos, valiosa no gênio e na heresia [...]. Há igrejas que foram restauradas para prestar, já vazia de fiéis, outros serviços.  [...]

[...]

Junto com Potosí, decaiu Sucre. Essa cidade do vale [...] desfrutou boa parte da riqueza que manava das veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalou ali sua corte, faustosa como a do rei que ele quis ser e não conseguiu; igrejas e casarões, parques e quintas de lazer brotavam continuamente, junto com juristas, místicos e poetas retóricos [...]. "Silêncio, é Sucre. Não mais do que o silêncio. Mas antes..." Antes ela foi a capital cultural de dois vice-reinados, a sede do principal arcebispado da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais faustosa e culta da América do Sul. [...]

Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo, e dizem que com as joias de sua Virgem poderia ser quitada a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas que, em 1809, saudaram com júbilo a emancipação da América, hoje produzem um toque fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes anunciou sublevações e motins, hoje dobra pela mortal estagnação de Sucre. [...] Pelas ruas transitam rábulas adoentados e de pele amarela, testemunhas sobreviventes da decadência [...].

Em Potosí e em Sucre só permaneceram vivos os fantasmas da riqueza morta. [...]

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 54-59.