"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 5 de julho de 2011

EUA: a nova direita e os movimentos sociais

Reagan, um ex-ator de Hollywood que cumpriu dois mandatos presidenciais (1981-1989), tornou-se símbolo da nova direita nos Estados Unidos


Permaneceram alguns dos direitos políticos formais conquistados nos anos 1960 e 1970 por mulheres, negros e imigrantes, como a proibição da discriminação racial e sexual na sociedade civil e nas políticas públicas. A discriminação aberta contra mulheres, minorias raciais, gays e lésbicas tornou-se bem mais rara na linguagem, na cultura popular, na mídia e na sociedade "educada". Mas os progressos em direitos sociais e a expansão de liberdades não seguiram uma trajetória linear: mudanças econômicas, fragmentação dos movimentos sociais, novas contestações políticas e velhos problemas sociais também marcaram as décadas de 1980 e 1990.

A população americana mudou nos anos 1980 e 1990. O declínio da taxa de fecundidade e o aumento na expectativa de vida produziram uma população relativamente velha com consequências para a economia e os serviços públicos. Mais pessoas tornaram-se dependentes da aposentadoria e da saúde pública, bem como dos hospitais e dos caros planos de saúde, usando serviços médicos públicos e aumentando os gastos estatais nessa área.

* Imigrantes. Além disso, a falta de trabalhadores jovens forçou os Estados Unidos a permitirem aumento da imigração no fim do século XX. Depois da abolição de cotas raciais nas leis de imigração nos anos 1960, o número de imigrantes aumentou de forma constante. Em 2000, 10% da população do país havia nascido fora dos Estados Unidos. A proporção da população de ascendência europeia branca caiu para menos de 80% da população, contra os 90% de 1950. Latino-americanos e asiáticos foram os dois grupos de imigrantes mais numerosos até 1997, 14% da população tinha ascendência latino-americana, e imigrantes da China, Vietnã, Tailândia, Coréia, Índia e Filipinas constituíam 4% da população. Também havia mais de oito milhões de muçulmanos nos Estados Unidos em 2000. Cidades grandes, como Los Angeles, Nova York, Chicago e Miami, tornaram-se cada vez mais multiculturais, trazendo novas contribuições à sociedade americana e fomentando debates sobre o impacto dos "novos americanos" na educação, no trabalho e na cultura.


* Comunidade afro-americana. A comunidade negra de classe média mostrou vários avanços na época devido às heranças do movimento por direitos civis dos anos 1960. Negros entraram nas profissões qualificadas em números mais expressivos e, devido a "ação afirmativa" e a seu próprio esforço individual, constituíram, nos anos 1990, 12% dos estudantes do ensino superior, um aumento significativo comparado aos 5% no fim dos anos 1970. A proporção de negros que se formaram no ensino médio e que continuaram os estudos no ensino superior igualou-se à dos brancos em 2000, embora mais negros que brancos, proporcionalmente, não conseguissem completar o ensino médio. Ao mesmo tempo, porém, muitos programas de ação afirmativa nas universidades foram arrasados sob a pressão de desafios legais lançados por grupos discordantes.


No Sul, em alguns municípios e estados, até o poder político do voto negro foi minado. Depois do Ato de Direito de Voto de 1965, vários governos municipais e estaduais controlados por brancos redesenharam os distritos eleitorais, diminuindo a proporção de elementos negros em determinadas áreas e, portanto, seu efetivo poder eleitoral. Alguns também desqualificaram potenciais eleitores negros nos dias de eleição com procedimentos fraudulentos. Em 1982, o Congresso aprovou um novo Ato de Direito de Voto que estabeleceu uma série de diretrizes igualitárias para o legítimo redesenho dos distritos, baseado no princípio de "equilíbrio racial" dentro dos distritos. Em 1993, na decisão "Shaw contra Reno" da Suprema Corte, mais conservadora depois da nomeação de novos juízes por Reagan e George Bush Sr., essa parte do Ato foi revogada, proibindo o uso de qualquer critério racial na redefinição dos distritos. Efetivamente, isso deixou intactos numerosos distritos eleitorais no Sul, que foram redesenhados para diluir a força eleitoral dos negros. A Casa Branca de Bill Clinton não contestou a decisão da Suprema Corte. Ironicamente, seu vice-presidente Al Gore, perdeu a eleição para presidente em 2000 justamente por causa de fraudes que negaram a milhares de eleitores negros do estado da Flórida o direito de voto. A manutenção dos resultados dessa eleição pela Suprema Corte mostrou como mesmo os direitos formais são frágeis no contexto de mudanças políticas e ideológicas.


A situação econômica nos guetos negros dos centros das cidades piorou ao longo dos anos 1970 e 1980. Um terço da população negra ficou abaixo da linha da pobreza, sem recursos suficientes para educação e outros serviços públicos, carente de emprego, treinamento e oportunidade. No fim dos anos 1990, a renda familiar branca ficou quatro vezes maior que a das famílias negras. [...] A redução do estado de bem-estar, ao longo dos anos 1980 e 1990, também piorou as condições de vida dos negros desproporcionalmente em relação aos brancos. Frustração com o racismo ainda existente, poucas oportunidades econômicas e violência policial provocaram vários motins urbanos desencadeados por questões raciais em Miami, Nova York e outras cidades nos anos 1980 e 1990.


* A rebelião urbana de Los Angeles. O evento mais marcante nas "relações de raça" na época foi a rebelião urbana de Los Angeles, em 1992. Em março de 1991, um motorista negro, Rodney King, foi parado na estrada e brutalmente espancado pela polícia. Uma pessoa filmou o incidente, que acabou amplamente divulgado pela mídia. Os quatro policiais julgados pela violência foram absolvidos, um ano mais tarde, por um júri branco. A população pobre de Los Angeles explodiu em reação: por cinco noites seguidas, multidões enfurecidas queimaram prédios, saquearam lojas e lutaram contra a polícia. Cinquenta e oito pessoas morreram, 2,3 mil ficaram feridas, 9,5 foram presas, mais de mil prédios foram destruídos e 10 mil danificados. Os danos financeiros somaram US$ 1 bilhão.


A rebelião em Los Angeles foi diferente de outros motins urbanos do século XX em três aspectos. Primeiro, a ira dos manifestantes foi alimentada não somente pelo racismo, mas também pelo profundo mal-estar econômico que tinha germinado há décadas na cidade. "Preste atenção ao que essas pessoas estão roubando" - comentou na ocasião a poetisa Meri Nana-Anna Danquah -, "comida, fraldas, brinquedos". Segundo, as pessoas envolvidas na rebelião eram de origem diversa. De acordo com a polícia, de todos os presos, 30% eram negros; 37% latino-americanos; 7% brancos e 26% "outra etnia ou desconhecida". Terceiro, além de atingir símbolos do poder público, os participantes direcionaram muito da sua fúria contra lojistas coreanos instalados nos bairros pobres negros e latino-americanos da cidade. Como o historiador Mike Davis concluiu, a sublevação de Los Angeles foi uma "revolta social híbrida" dos pobres multirraciais e um conflito interétnico, refletindo simultaneamente os novos rumos e os velhos enigmas da sociedade americana.


* Mulheres. De todos os ganhos dos anos 1960, as mudanças na vida das mulheres foram as mais profundas e irreversíveis. As posturas dominantes sobre o papel e o direito das mulheres, a sexualidade e a família se alteraram significativamente, com certos valores da contracultura passando para o senso comum e com muitos estilos de vida tornando-se aceitos pela população em geral. Em 1980, mais da metade das mulheres casadas trabalhavam fora de casa, a taxa de divórcio aumentara e atitudes mais liberais com relação à sexualidade prevaleciam. Campanhas contra abuso sexual de mulheres e regulamentações contra o comportamento machista - no funcionalismo público, nas universidades e até em muitas corporações - foram bem sucedidas e passaram a ser respeitadas.


Novamente, a questão da classe complicava a questão de gênero: mulheres de fato melhoraram a sua posição relativa aos homens, mas, em grande parte, porque o salário dos homens havia diminuído. A renda média das mulheres era de 54% com relação a dos homens em 1996, uma melhoria se comparada aos 39% de 1985.


Entretanto, as mulheres sofreram intensamente com os cortes nos serviços públicos, especialmente muitas mães solteiras que se viram obrigadas, sob as reformas de Clinton, a trabalhar em serviços públicos tais como limpeza de parques e ruas - o termo em inglês é workfare, que é um jogo de palavras, misturando work (trabalho) com welfare (bem-estar social) - ou fazer cursos de capacitação profissional em troca de previdência social. Isso também minou os salários e o poder de barganha dos sindicatos de funcionários públicos, cujos membros eram em boa parte mulheres.


O Congresso e muitos estados também proibiram o uso de dinheiro público para custear abortos nos anos 1970 e 1980, reduzindo o acesso de mulheres pobres a esse serviço.


* Gays e lésbicas. Gays e lésbicas aumentaram sua visibilidade na vida americana nessas décadas, apesar da existência contínua de preconceitos. Comunidades de gays e lésbicas foram consolidadas nas grandes cidades, postas em evidência pelas passeatas anuais do Dia do Orgulho Gay, que atraíam enorme público em cidades como Nova York e São Francisco. Mas a violência física não era incomum e poucos ganhos legais foram de fato conquistados. Nos anos 1980 e 1990, além disso, os gays foram as primeiras pessoas a enfrentar a agonia da aids, que matou mais de 427 mil americanos até 2000. As melhorias no tratamento da doença foram impressionantes, mas não houve acesso dos pobres aos avanços médicos.


* Fragmentação dos movimentos sociais. Se é verdade que algumas das heranças dos anos 1960 permaneciam na sociedade americana de 2000, é também evidente que as ondas de protesto social tinham diminuído. Os grandes movimentos sociais dos anos 1960 e 1970 se enfraqueceram por causa da repressão, de novas pressões políticas e econômicas e das divisões internas. Lutas contra a opressão, entretanto, não desapareceram, continuando no nível local e às vezes atraindo atenção nacional e mobilização intensa, como algumas manifestações em Washington nos anos 1990 em resposta às ameaças ao direito de aborto. Mas as políticas de identidade e separatismo, cada vez mais comuns nos movimentos contra o racismo, o machismo e a homofobia da época, contribuíram para a fragmentação política e acirrados debates internos. Diante de toda essa situação, muitos se desiludiram e abandonaram a militância nos movimentos. Diversos ativistas também passaram a se dedicar a políticas eleitorais e judiciais, cujos representantes, o Partido Democrata e o Judiciário, pouco compromisso tinham com propostas de transformações sociais mais radicais.


[...]


* A nova direita norte-americana. Os vários elementos da nova direita sagazmente construíram abastadas redes de mídia e fundações de pesquisa, nos anos 1970 a 2000, para fazer avançar suas ideias conservadoras. A Olin Foundation, por exemplo, bancou pesquisas, relatórios, publicações e programas de televisão e rádio com a intenção de criticar atitudes econômicas, sociais e culturais liberais, conter a ação da "mídia liberal" e influenciar eleitores e políticos. Várias redes de televisão cristãs surgiram com programação focalizada nos "valores familiares tradicionais"e no "jeito americano de viver". [...]


Em 1980, mais de 70 milhões de americanos se descreveram como "cristãos renascidos", quase um terço da população total. Enquanto alguns evangélicos consideravam sua religião a base para justiça social e racial, a maioria se preocupou em combater a expansão de valores seculares e liberais na sociedade e cultura. Defenderam o imperialismo americano, a economia livre e a autonomia nas políticas locais.


Mas o combate pelo que diziam ser "os valores cristãos" se concentrou mais nos debates contra feminismo e os movimentos homossexuais. Evangélicos criticaram o feminismo, a homossexualidade, o aborto, o divórcio, "a falta geral de autoridade social" e o ensino da Teoria da Evolução nas escolas. [...]


PURDY, Sean. O século americano. In: KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 263-269.

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