"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sociedade e cultura escravista brasileira na visão dos viajantes

"Oficina de sapateiro", Jean-Baptiste Debret


Nenhum entre os muitos estrangeiros que tiveram permissão para viajar pelo Brasil após a chegada da Corte ao Rio de Janeiro em 1808 e que, mais tarde, publicaram livros sobre suas experiências, deixou de fazer observações relativas à indolência da população livre, especialmente a masculina, fossem ou não proprietários de escravos. No mais das vezes, tais observações se vinculavam à perplexidade diante do controle entre a aparente fertilidade do solo e a exuberância da fauna e da flora e a pobreza das famílias livres não possuidoras de escravos. A maioria dos viajantes opinou que esta pobreza era obviamente auto-imposta, uma vez que mesmo o esforço mínimo seria fartamente recompensado na forma de colheitas abundantes ou da constante renovação dos rebanhos. A explicação dada pelos viajantes para a preguiça era que o calor tórrido dos trópicos talvez tivesse um efeito nocivo sobre a disposição para o trabalho. Quase nenhum dos viajantes percebeu qualquer ligação entre a ociosidade dos senhores de escravos e a indolência dos pobres.

Nem o passar do tempo nem as diferenças regionais conseguiram alterar a opinião dos viajantes. Em 1808, por exemplo, o comerciante inglês Luccock, comentou sobre a "loucura" dos artesãos brancos do Rio:

"...consideravam-se todos eles fidalgos demais para trabalhar em público, e que ficariam degradados se vistos carregando a menor coisa, pelas ruas, ainda que fossem as ferramentas do seu ofício".

Cerca de dez anos mais tarde, o naturalista francês, Saint-Hilaire, teceu as seguintes considerações sobre um pequeno distrito na capitania de Góias:

"Ainda que existem ao redor de Meia-Ponte mais terras que seria possível cultivar e inúmeros córregos auríferos dos quais é fácil recolher um pouco de ouro, e embora haja escassez de braços para a lavoura e, em consequência, qualquer homem válido tenha possibilidade de encontrar trabalho, não se consegue dar um passo no arraial sem esbarrar com mendigos".

Mais ou menos na mesma época, os naturalistas alemães, Spix e Martius, visitaram a cidade de Campanha, no sul de Minas Gerais, e comentaram que "... a perversão dos brancos recusa como desonroso qualquer serviço, mesmo o da lavoura e criação de gado". No final da década de 1830 e início da década de 1840, o médico inglês, Gardner, bastante impressionado, aludiu à preguiça e à indolência dos habitantes de vilarejos localizados no interior de Pernambuco e no norte de Minas Gerais. Em 1867, o diplomata e viajante veterano inglês, Richard Burton, fez a seguinte avaliação sobre as procissões religiosas de São João d'El Rei, em Minas:


"e, como em toda a parte do Brasil, os cidadãos, primeiro, têm pouco que fazer fora de casa, e, segundo, têm ainda menos o que fazer em casa, esse estilo de devoção floresce".


De acordo com estes viajantes, a indolência, o desdém para com o trabalho e uma preocupação desmedida com a busca pelo lazer constituíam-se no estado natural das coisas no Brasil - talvez uma praga dos trópicos. Normalmente observadores astutos, os viajantes raramente reconheceram que a existência do trabalho escravo "liberava" a população livre para uma vida de ociosidade e que a vida, cheia de prazeres ritualizados, dos senhores de escravos servia como uma espécie de aquiescência ideológica à ociosidade alheia.


LIBBY, Douglas Cole. Sociedade e cultura como obstáculos ao desenvolvimento econômico. In: Estudos Econômicos. São Paulo: USP, n. 23, dez. 1993. v. 23.

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