"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 2 de julho de 2011

Que é História?

"Varredores de rua (Os garis)", Carlos da Silva Prado


Desde que os gregos criaram a palavra História, o conteúdo atribuído ao termo tem variado segundo as visões de mundo dos historiadores. [...] a forma de os homens conceberem o mundo depende muito do modo de vida da própria sociedade. Portanto, os fatores que possibilitam a produção ou retenção histórica estão condicionados pelo grau de consciência que os homens possuem de sua historicidade, isto é, pelo grau de consciência que possuem de seu contexto histórico-cultural e de sua posição na sociedade, no mundo...

[...]

[...] a definição do que é o ofício do historiador também tem sofrido modificações através do tempo: basicamente, podemos dizer que ele sempre teve por ofício a tarefa de reter os acontecimentos, isto é, de escrever, registrar as experiências vividas coletivamente. Porém a forma de registrar os acontecimentos evoluiu desde a simples descrição de fatos singulares sucedidos até a análise de um conjunto de fenômenos sociais que caracterizam períodos longos de até vários séculos.

Ora, diante dessas colocações você pode estar se perguntando: Qual a importância de escrever, de registrar os acontecimentos? Essa tarefa tem sido somente do historiador?

O ato de escrever, de registrar a vida vivida significa uma conquista importante, extremamente importante. Por quê?

Quando você escreve, o ato mesmo de pegar no lápis e no papel exige uma certa atitude corporal e mental, toda uma postura que favorece à reflexão. E se você escreve palavras que têm um significado real para você, que são verdadeiramente a expressão do que se está vivendo biológica, intelectual e emocionalmente, você está organizando sua visão do mundo, organizando o seu pensamento, organizando a sua compreensão do mundo. E, o mais importante, esse esforço significa um esforço no sentido de um encontro com os outros homens, pois é uma procura da organização das ideias e da linguagem a ser utilizada para comunicá-las.

O homem vive e pensa, e escrevendo o que pensa sobre esse viver concretiza sua ideia - ou seja, a palavra escrita no papel é uma presença, é uma conquista de espaço no mundo, é, portanto, um documento. Um documento que registra um momento, um tempo, um estágio de vivência, um estágio de pensamento, registra fatos que ocorrem em uma sociedade, em um determinado instante, em um determinado lugar. Ora, ninguém pode fugir à sua condição humana, ou melhor, à sua condição existencial em um tempo e espaço determinados. É esse ser e estar vivendo em uma sociedade que determina todas as nossas atitudes, inclusive, é claro, nossa maneira de escrever.

Por tudo isso, quando estudamos História, quando travamos conhecimento com o trabalho realizado pelos historiadores através do tempo, precisamos ter a mente aberta para a todo momento perguntarmos: Essa História escrita por esse historiador é a História de quem? Para quem? A favor de quê? Contra quem?

Melhor ainda seria dizer que esse procedimento precisa ser assumido por todos aqueles que procuram compreender o Homem: nenhum estudo sobre o Homem pode prescindir de situá-lo no mundo, de perceber sua historicidade. O Homem é um ser do tempo e, portanto, nunca poderemos, para compreendê-lo, seja qual o nível de nossa preocupação, deixar de contextualizá-lo, isto é, de considerar a sua posição no mundo. Quando e onde são perguntas que precisamos incorporar até se tornarem hábitos. Assim como: qual o modo de vida de sua sociedade? Qual a posição que ocupa nessa sociedade? E daí poderemos compreender suas atitudes e sua visão de mundo.

Enfim, o que queremos deixar claro é que escrever História é assumir e marcar uma presença no mundo, em determinadas circunstâncias; é registrar os acertos e os erros cometidos, ou seja, o que foi considerado certo ou errado de acordo com os interesses de determinada posição social e ideológica. Nesse sentido, esse registro terá o amplo significado de possibilitar ao grupo para o qual a História está sendo escrita a superação de etapas - isto é, registrando vivências, você pode ter a ampla possibilidade de não incorrer nos mesmos erros.

Você, certamente, já ouviu falar que o surgimento da escrita é considerado o limite entre a Pré-História e a História. Muito bem, isso demonstra o quanto esta habilidade sempre foi considerada importante. No entanto, perguntamos: Teria sido a escritura uma habilidade dominada pela totalidade dos homens?

A resposta é bastante simples: mesmo em termos atuais, de século XXI, ela seria negativa. Portanto, cabem as perguntas:

- Onde está a História dos que não podem eles próprios escrevê-la?
- Onde está a História dos escravos, dos servos, dos operários?
- Onde está a possibilidade de essas classes obreiras, registrando as experiências vividas, poderem nelas se basear para terem atitudes mais maduras, mais construtivas, que contribuam para a sua libertação e para o seu crescimento a partir de suas condições de vida?
- Assim, o que podemos concluir?

Primeiro, que a tarefa de registrar os acontecimentos é, de uma forma e de outra, assumida por alguns elementos da sociedade, tais como os que se dedicam à Literatura, à Pintura, à Escultura, enfim, às Artes em geral, as quais na verdade são expressões do modo de vida de uma sociedade. Segundo, que a técnica de escrever, tendo sido durante muito tempo um privilégio das elites dominantes, fez com que a História servisse principalmente para o aperfeiçoamento dos instrumentos de poder dessa elite.

Porém, hoje, no século XXI, podemos ter uma visão otimista: a própria situação de opressão se constitui em um desafio aos oprimidos. Desafio que os oprimidos, assumindo essa condição existencial de forma integral e consciente, poderão, unidos, superar. Só assim poderemos pensar na construção de uma sociedade realmente melhor, onde nossas necessidades mais reais e vitais sejam atendidas, e os homens, renascidos, possam desenvolver suas potencialidades, possam tornar-se pessoas... Pessoas que, nesse movimento de busca e de criatividade, refletem e constroem uma presença, uma existência no tempo e no espaço, uma existência histórica, de modo que seu estar no mundo seja assumido como um trabalho transformador e libertador, como uma forma de amor...

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das  sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 35-38.

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