"Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão, nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra."
O relato é do escrivão da frota de treze naus comandada por Pedro Álvares Cabral [...]. O capitão recebera instruções no sentido de impor o domínio comercial e marítimo lusitano no litoral malabar, livrando-se assim dos intermediários árabes, italianos e judeus. Era essa a principal tarefa desses 1.200 portugueses a serviço do Estado, da nobreza e da burguesia comercial: controlar Calicute, centro de trocas das valiosas especiarias orientais.
Desde a viagem de Vasco da Gama em 1498, o Estado absolutista português, governado por Dom Manuel I, decidira fazer acordos que lhe dessem a exclusividade nas transações mercantis na Índia. Para chegar a este fim, até a guerra seria válida, como destacava o rei nas suas Instruções: "se com as naus dos ditos mouros de Meca topardes no mar, haveis de trabalhar quanto puderdes por as tomar, e de suas mercadorias e coisas e assim os mouros que nelas vierem." Não foram apenas os mouros os atingidos pela violência portuguesa. O samorim ("rei do mar") de Calicute, ligado à burguesia mercantil muçulmana, recusou-se a conceder o monopólio da compra dos produtos que chegavam ao seu reino e teve sua cidade bombardeada. A atenção da esquadra de Cabral - já reduzida a seis embarcações - voltou-se para o rajá do Cochim, com quem se estabeleceu uma aliança. Realizava-se uma política tradicional de dominação: explorar as divergências existentes entre as diferentes áreas a serem submetidas. Aproveitando-se de choques entre adeptos do hinduísmo e do islamismo, o reino católico estende seu controle sobre Goa, Diu e Ormuz. [...]
A expansão marítima não se realizava por acaso: ela atendia a interesses da classe feudal e da jovem burguesia comercial, associada aos genoveses. Buscava-se superar a escassez de cereais no reino, ampliar a lavoura açucareira [...], ter acesso aos metais preciosos da África [...] e às especiarias e artigos de luxo do Oriente. Para isso - que ampliaria as fontes de renda do Estado monárquico - navegar era preciso.
E Portugal navegava desde o início do século XV, com a conquista do norte da África e do Marrocos. [...]
[...]
Para os nativos da África [...] a chegada dos portugueses significava destruição. Eles, tidos como inferiores, foram capturados e forçados a trabalhar nos canaviais plantados nas ilhas do Atlântico. E desde 1441 começaram a ser levados para Portugal. Um século depois, o flamengo Nicolas Cleynaerts faz esta observação sobre o reino ibérico:
"Tudo ali pulula a escravos; todos os trabalhos são executados por negros e mouros cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio, existem em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses livres."
Os interesses econômicos e ideológicos dos portugueses - a "dilatação da Fé e do Império", segundo Camões - não estavam voltados exclusivamente para o Oriente das ricas especiarias, das sedas, dos objetos de valor como tapetes e perfumes, dos produtos medicinais. De fato, dali Vasco da Gama retornara com um carregamento de pimenta que, vendido na Europa, permitiu lucros de até 6 000%! Mas no seu Diário de Viagem ele contava ter percebido sinais seguros da existência de terras a oeste de sua rota. A Espanha já tinha descoberto novos mundos na sua tentativa de chegar ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal já tinha assegurado para si uma parte desse "bolo", com a Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais conhecida como Tratado de Tordesilhas, assinado entre as duas potências de então, em 1494.
Não é absurdo, pois, supor que Cabral recebera orientação no sentido de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar a existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa de sua expedição, desmentindo antigos historiadores que diziam ter sido casual o descobrimento.
Assim foi feito e por isso Caminha pôde escrever sua longa carta. Dois mundos começavam a se conhecer. A grande novidade para os portugueses ancorados no litoral sul da Bahia, naquele fim de abril de 1500, foi a presença dessa "gente bestial e de pouco saber, cuja feição é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos".
"Os invasores", Antonio Parreiras
Uma gente com hábitos muito diferentes dos membros daquela esquadra, a começar pela total naturalidade com que vivia. Para os enroupados portugueses, eram curiosos os habitantes da Ilha de Vera Cruz...
ALENCAR, Chico et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 8, 10-12.
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