"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de julho de 2011

Aborto: uma longa história

"Vênus adormecida", Giorgione

Desde a Antiguidade até o advento da pílula, o aborto representou a arma de controle contraceptivo de casais legítimos, mas era, sobretudo, utilizado no quadro das relações extraconjugais. Embora não tenhamos dados sobre a frequência com que se abortava no Brasil - ao contrário da França setecentista, na qual as declarações de gravidez feitas obrigatoriamente à justiça do Estado permitiam calcular o número de abortos realizados - esse "crime" já fora comentado nas primeiras cartas jesuíticas como um hábito corrente entre as mulheres indígenas do Brasil Colonial. Essas, segundo os padres da Companhia de Jesus, apertavam as barrigas, carregavam peso e preparavam beberagens capazes de fazê-las "mover", contrariando teses debatidas em concílios, sermões e cânones que não perdiam uma única oportunidade para denunciar o aborto. Condenando a alma das crianças mortas ao limbo, o aborto era um pecado contra o corpo e sobretudo contra Deus que, depois da queda dos anjos rebeldes, precisava repovoar o paraíso com almas batizadas.

A luta contra o aborto entrou pelo século XIX, provocando em sua passagem perplexidade e rejeição. O viajante Debret, ao retratar uma vendedora de arruda nas ruas do Rio de Janeiro, anotava: "...esta planta tomada como infusão provoca o aborto, triste reputação que aumenta sua procura". As leis do reino de Portugal vigorando no Brasil Colônia condenavam o aborto voluntário, exigindo proceder sumário no caso de haver "mulheres infamadas de fazer mover outras" ou "médicos, cirurgiões e boticários que dão remédio para este dolo mau". Os quadros da Igreja eram também inquiridos sobre a familiaridade que teriam com esse crime. Os processos de admissão aos seminários perguntavam diretamente se o noviço teria sido causa de "algum aborto, fazendo mover alguma mulher". Prontuários de teologia moral condenavam violentamente a "agência, auxílio e conselho para fazer aborto depois de animado o feto". Nos documentos coloniais encontra-se a crença herdada da Antiguidade de que o feto não estaria animado senão depois de passados 40 dias, o que deixava amplas margens para medidas abortivas levadas a termo por mulheres que não estavam de todo desarmadas diante de uma gravidez indesejada. A Igreja era sensível a essa realidade e admoestava as que procuravam medicamentos e remédios para o dito fim "depois de estar animado o feto". Ela não deixava, tão pouco, de examinar os casos em que a mulher grávida, estando enferma, tomava remédios dos quais se seguia indiretamente aborto.

Essa prática foi aplicada por meio do uso indiscriminado de sangrias e laxantes. Sem contar os instrumentos pontiagudos como fusos de roca, broches de ferro, colheres e canivetes, eficientes para provocar o aborto, mas também infecções mortais. Os párocos das capelanias eram instados a indagar às suas penitentes se tomavam "alguma beberagem ou mezinha para mover [...] e de que meses eram prenhas quando moveram e se moveram macho ou fêmea". O olhar penetrante da Igreja varria a intimidade das mães, arrancando-lhes até informações sobre a identidade do fruto recusado. "Bebeste alguma coisa para vos causar aborto? Movesse porventura? Apertasse a barriga com as mãos para mover? Mataste vossa criança no ventre?" E os párocos inventariavam os gestos tradicionais do aborto, os mecanismos que derivavam da atrição ou os farmacológicos, que se utilizavam da fitoterapia, sobretudo da arruda. Cabia também ao confessor convencer a mulher da importância de conservar seu fruto, da mesma forma com que deviam "sofrer com paciência as incomodidades da prenhez e as dores do parto como pena do pecado"; dizia um pregador ao qual cabia, antes do parto, "cuidar para que por sua culpa não suceda algum aborto ou parto intempestivo".

A reflexão do confessor bem expressava a convicção da Igreja de que na maternidade residia o poder feminino de dirimir pecados. E, dentre eles, o maior de todos: o original. Causa central da expulsão do paraíso terreal, a mulher podia resgatar o gênero humano do vale de lágrimas em que bracejava, chamando a si permanente tarefa da maternidade. Nessa perspectiva, o aborto corporificava a maior monstruosidade. Além de privar o céu de anjinhos, ao "privar-se das incomodidades da prenhez" a mulher fugia às responsabilidades de salvar, no seu papel de mãe, o mundo inteiro. Junto com o horror ao aborto, a Igreja convivia ainda com outra forma de controle malthusiano: o infanticídio, ou o dito "afogamento dos filhos", no leito conjugal. O hábito das mães deitarem-se com seus bebês e os esmagarem durante o sono estava tão disseminado no Antigo Regime que as Constituições dos bispados previam punição de penitência "a pão e água por 40 dias" para esse crime. A dita penitência devia estender-se por três anos, se a criança fosse batizada, e por cinco, se não fosse.

Os dados capturados pelo historiador no discurso da Igreja não permitem saber quem abortava. Seriam as mães solteiras, as viúvas, as casadas, as adúlteras? Delas não há um retrato nítido. Por que abortavam? O desespero diante do filho indesejado, o pânico diante do estigma social ou da expulsão familiar parecem respostas possíveis. Mas que tipo de estigmatização poderia sofrer a mulher? O pior crime não parece ter sido o de ter filhos fora do matrimônio, como sublinhava a Igreja, mas ter matado o próprio fruto. Parece inegável que a valorização da maternidade, a eleição do corpo feminino como pagador de pecados solidificaram uma mentalidade de proteção da gravidez e exaltação da fecundidade da mulher na qual o aborto aparecia como uma mácula.

O interessante é que o preconceito contra a mulher que abortava já existia no dia-a-dia das comunidades. Não são poucos, em nosso folclore, os relatos de filhos mortos que retornam para queixar-se do abandono da mãe. O mais conhecido deles é o da "porca dos sete leitões". Mito europeu e ibérico, ativo desde a Idade Média, nele a porca representa os apetites baixos da sua carnalidade sexual, bem expressa na pecha com a qual as esposas criticavam as atividades extraconjugais dos maridos: "trata-se sempre da alma de uma mulher que pecou com o filho nasciturno. Quantos forem os abortos, tantos serão os leitões", diz o especialista Câmara Cascudo. A Igreja encontrava, portanto, respaldo para combater o aborto na rejeição à mulher que rompia o acordo com a natureza. Ao que tudo indica, a Igreja passou a reforçar a imagem da mulher-que-aborta com aquela da mulher-que-vive-a-ligação-ilegítima. Ela distinguia as primeiras por não ter um casamento protetor, no seio do qual pudessem criar de maneira cristã, daquelas outras que educavam os filhos à sombra do sagrado matrimônio.

Ao combater o aborto, combatiam-se os chamados "mores dissolutos" cujo desdobramento - os filhos ilegítimos - podia levar a mulher a desejar a interrupção da gravidez. O aborto passava a ser visto, depois da longa campanha da Igreja, como uma atitude que "emporcalhava" a imagem ideal que se desejava para a mulher. A "porca dos sete leitões" tornava-se na mentalidade popular a antítese da mãe ideal, casada sob a bênção do padre. Como se pode ver, o papel da Igreja, ontem, ajuda a explicar sua atitude hoje, revelando também que temas importantes para a sociedade brasileira, como o do aborto, têm de ser examinados à luz das transformações sociais. O tabu do divórcio acabou, as famílias monoparentais se multiplicam e os jovens não fazem questão de casar para ter filhos. Por isso é sempre bom lembrar que, embora guardemos marcas do nosso passado, não vivemos mais no século XVIII!

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 25-29.

A arte antes de Cabral chegar ao Brasil



Pinturas rupestres do Parque Nacional do vale do Peruaçu (Minas Gerais)

1. Arte rupestre. Muito tempo antes de Pedro Álvares Cabral chegar ao Brasil, o nosso território já era habitado. Os arqueólogos, pesquisadores que estudam as civilizações pré-históricas por meio de escavações e análise de objetos e desenhos nas pedras, calculam que entre 40 mil e 12 mil anos a.C. já existiam grupos nômades, caçadores, pescadores vivendo aqui. Provavelmente vinham da Austrália, da Oceania ou da Ásia.

As pinturas e gravuras deixadas por eles são o testemunho de sua passagem. Esses registros em diferentes suportes de pedra são chamados de arte rupestre ou itacoatiaras: paredes e tetos de cavernas e abrigos, blocos no chão, pedras nos leitos dos rios, e lajes a céu aberto.

As pinturas rupestres brasileiras mais antigas foram encontradas na região de São Raimundo Nonato, no Piauí.

São desenhos de animais, pessoas, plantas e objetos, muitas vezes retratando cenas da vida cotidiana ou eventos cerimoniais.

Também em Minas Gerais há arte rupestre. Na região de Lagoa Santa encontram-se cenas de caça com uso de flechas, armadilhas aprisionando veados, e grandes redes com peixes, retratando movimento.

Além das pinturas, muitos sítios apresentam outro tipo de arte rupestre, denominado gravura. Foi utilizada a técnica da abrasão (ou raspagem) das pedras, resultando figuras em baixo relevo.

Os temas da arte rupestre são bastante variados. Alguns grupos utilizavam, por exemplo, desenho geométrico, trabalhando com formas não representativas e desenhando pontos, traços e círculos em diferentes tamanhos e combinações.

Outros grupos adotavam o desenho figurativo, com representações de pessoas, animais, árvores, objetos. Também os estilos variam: existem figuras formadas apenas por linhas de contorno, outras apresentam pinturas cheias, outras, pontilhadas, alguns aproveitam o relevo da pedra para dar a impressão de volume.

A arte rupestre constitui talvez o vestígio arqueológico mais difícil de ser analisado, pois não conhecemos bastante o contexto social em que os desenhos foram criados. É uma representação do mundo real, na forma de um símbolo. Mas o significado dos símbolos pode variar muito, de sociedade para sociedade. Assim, quando um artista desenha um traço vermelho na rocha pode, por exemplo, estar retratando a figura estilizada de um homem, ou pode estar marcando a passagem do tempo. As possibilidades de interpretação tornam-se, assim, infinitas. O desenho pode estar funcionando como meio de comunicação, como forma de magia, como arte pura, como uma pré-escrita, como marcador de territórios.

Mas é certo que nessas manifestações já existe o impulso de produzir elementos estéticos e o desejo de expressão de um pensamento ou de um sentimento. Por isso podemos dizer que se trata de arte.

Como estão ameaçados por diversas formas de destruição, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) se encarrega de tombar esses registros com o intuito de preservá-los.

2. Arte Marajoara e Tapajó. Há vestígios de culturas amazônicas com alto grau de desenvolvimento na fabricação e na decoração de artefatos de cerâmica, como as da ilha de Marajó e da bacia do rio Tapajós.

Pouco coisa restou da cultura dos índios Tapajós, grande nação que habitava a região de Santarém. Apenas os muiraquitãs, pequenas esculturas de rãs em pedra, os machados polidos e uma cerâmica tão elaborada que mais parece escultura que simples vasos.

Em seu apogeu, a ilha de Marajó pode ter tido mais de 100 mil habitantes. Entre eles havia diversos artistas, que fabricavam objetos cerâmicos ricamente decorados, vasilhas, estatuetas, urnas funerárias e adornos. Esses objetos sugerem que a cultura marajoara atingiu alto grau de sofisticação e complexidade social e política.

Foram encontradas grandes urnas funerárias, chamadas igaçabas, decoradas com desenhos labirínticos, em enormes aterros perto do lago Arari.

Os objetos produzidos pelas culturas antigas estavam, muitas vezes, associados a rituais que eram verdadeiros espetáculos artísticos, pois reuniam todas as manifestações (música, dança, adereços, vasos, urnas, estatuetas) que representavam as crenças, os mitos e as formas de expressão próprios daquelas culturas.

Muitos dos desenhos antigos servem de modelo para a cerâmica artesanal que é produzida hoje na Amazônia e que encanta os turistas.

3. Arte indígena. A arte permeia todos os aspectos da vida das inúmeras tribos indígenas (cerca de 5 milhões de índios) que habitavam o Brasil quando os portugueses aqui chegaram. Entretanto, sua forma e suas funções, embora também ligadas ao prazer estético, são diferentes da arte contemporânea.

A casa, a organização espacial da aldeia, os utensílios, os objetos de uso cotidiano e, principalmente, aqueles ligados às cerimônias e rituais estão impregnados de um desejo de fazer coisas bonitas e agradáveis ao olhar, de modo que sejam expressões simbólicas da cultura.

O índio investe esforço e tempo na produção de um objeto utilitário porque preocupa-se em adorná-lo de forma especial. Podemos compreender que procura embelezá-lo e demonstrar sua habilidade na expressão de algo mais que a simples necessidade de uso.

A arte plumária indígena e a pintura corporal atingem grande complexidade em termos de cor e desenho, utilizando penas e pigmentos vegetais como matéria-prima. Portanto, a arte indígena reflete a busca do prazer estético e de comunicação por meio de uma expressão visual.

Com a descoberta do novo mundo, os objetos produzidos pelos índios começaram a ser conhecidos na Europa por meio de crônicas orais e escritas, desenhos, gravuras e pinturas. Muitos foram recolhidos por viajantes e naturalistas e levados para os centros culturais, onde estão até hoje em grandes museus. Eram apreciados mais pelo seu exotismo e pela raridade dos materiais que por sua elaboração artística, pois não obedeciam aos padrões europeus de arte.

Cerâmicas com diversas finalidades; trançados (cestas, redes, utensílios e esteiras); adornos plumários (mantas, cocares, máscaras); adereços de contas, de pedras, de sementes, de cascas, de ossos, de dentes e de conchas; utensílios de madeira; instrumentos musicais (flautas, chocalhos, tambores); e objetos rituais, mágicos e lúdicos demonstram como as diferentes culturas indígenas se expressavam.

Os grupos indígenas que até hoje mantêm suas tradições, como os Caiapós e os Camaiurás, demonstram como a pintura corporal é uma forma de expressão artística e uma linguagem visual em estreita relação com outros meios de comunicação verbais e não-verbais. Além disso, apresenta outras funções. Com efeito prático, a pintura corporal espanta os insetos e defende a pele dos efeitos do sol. Tem também a intenção mágica de afastar os maus espíritos. Mas, acima de tudo, é uma forma de expressão que pode ser "lida", pois revela intenções pacíficas ou guerreiras, sentimentos, emoções, situações festivas ou circunstâncias religiosas, importância social, entre outras mensagens elaboradas com capricho e minúcia.

A arte indígena, em todas as suas manifestações anteriores ao descobrimento, demonstra não apenas recursos técnicos em diferentes matérias-primas, como também ricas linguagens simbólicas, representativas de criatividade, sensibilidade e habilidade dos povos pré-históricos. Muitas dessas formas de expressão são preservadas atualmente.

GARCEZ, Lucília; OLIVEIRA, Jô. Explicando a arte brasileira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 12-16, 18-21.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sociedade e cultura escravista brasileira na visão dos viajantes

"Oficina de sapateiro", Jean-Baptiste Debret


Nenhum entre os muitos estrangeiros que tiveram permissão para viajar pelo Brasil após a chegada da Corte ao Rio de Janeiro em 1808 e que, mais tarde, publicaram livros sobre suas experiências, deixou de fazer observações relativas à indolência da população livre, especialmente a masculina, fossem ou não proprietários de escravos. No mais das vezes, tais observações se vinculavam à perplexidade diante do controle entre a aparente fertilidade do solo e a exuberância da fauna e da flora e a pobreza das famílias livres não possuidoras de escravos. A maioria dos viajantes opinou que esta pobreza era obviamente auto-imposta, uma vez que mesmo o esforço mínimo seria fartamente recompensado na forma de colheitas abundantes ou da constante renovação dos rebanhos. A explicação dada pelos viajantes para a preguiça era que o calor tórrido dos trópicos talvez tivesse um efeito nocivo sobre a disposição para o trabalho. Quase nenhum dos viajantes percebeu qualquer ligação entre a ociosidade dos senhores de escravos e a indolência dos pobres.

Nem o passar do tempo nem as diferenças regionais conseguiram alterar a opinião dos viajantes. Em 1808, por exemplo, o comerciante inglês Luccock, comentou sobre a "loucura" dos artesãos brancos do Rio:

"...consideravam-se todos eles fidalgos demais para trabalhar em público, e que ficariam degradados se vistos carregando a menor coisa, pelas ruas, ainda que fossem as ferramentas do seu ofício".

Cerca de dez anos mais tarde, o naturalista francês, Saint-Hilaire, teceu as seguintes considerações sobre um pequeno distrito na capitania de Góias:

"Ainda que existem ao redor de Meia-Ponte mais terras que seria possível cultivar e inúmeros córregos auríferos dos quais é fácil recolher um pouco de ouro, e embora haja escassez de braços para a lavoura e, em consequência, qualquer homem válido tenha possibilidade de encontrar trabalho, não se consegue dar um passo no arraial sem esbarrar com mendigos".

Mais ou menos na mesma época, os naturalistas alemães, Spix e Martius, visitaram a cidade de Campanha, no sul de Minas Gerais, e comentaram que "... a perversão dos brancos recusa como desonroso qualquer serviço, mesmo o da lavoura e criação de gado". No final da década de 1830 e início da década de 1840, o médico inglês, Gardner, bastante impressionado, aludiu à preguiça e à indolência dos habitantes de vilarejos localizados no interior de Pernambuco e no norte de Minas Gerais. Em 1867, o diplomata e viajante veterano inglês, Richard Burton, fez a seguinte avaliação sobre as procissões religiosas de São João d'El Rei, em Minas:


"e, como em toda a parte do Brasil, os cidadãos, primeiro, têm pouco que fazer fora de casa, e, segundo, têm ainda menos o que fazer em casa, esse estilo de devoção floresce".


De acordo com estes viajantes, a indolência, o desdém para com o trabalho e uma preocupação desmedida com a busca pelo lazer constituíam-se no estado natural das coisas no Brasil - talvez uma praga dos trópicos. Normalmente observadores astutos, os viajantes raramente reconheceram que a existência do trabalho escravo "liberava" a população livre para uma vida de ociosidade e que a vida, cheia de prazeres ritualizados, dos senhores de escravos servia como uma espécie de aquiescência ideológica à ociosidade alheia.


LIBBY, Douglas Cole. Sociedade e cultura como obstáculos ao desenvolvimento econômico. In: Estudos Econômicos. São Paulo: USP, n. 23, dez. 1993. v. 23.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O que devemos à Idade Moderna: Renascimento, Barroco e Iluminsimo

Jovem mulher com um jarro de água, Johannes Vermeer

[O Renascimento] Na segunda metade do século XIV, as ideias de que todos os aspectos da vida bem como todos os fatos da história eram reflexo da vontade suprema de Deus – ideias essas que haviam norteado os homens da Idade Média – começaram a modificar-se profundamente, prenunciando e preparando a Idade Moderna.

No século XV, paralelamente à formação dos diversos estados nacionais, começou também a surgir um homem novo, o qual, analisando a concreta realidade da vida terrena, readquiriu importância como protagonista de acontecimentos determinados por seus propósitos e percebeu as infinitas possibilidades de escolha sugeridas por sua personalidade, em um mundo que não era mais apenas expressão dos desígnios divinos. A esse homem novo, considerado uma entidade individual autônoma e completa em si mesma, coube decifrar e dominar as forças da natureza.

Renovou-se a cultura, reestudando-se a antiguidade greco-romana; essa renovação, Renascimento, desenvolveu-se a partir da segunda metade do século XV, alcançando seu maior brilho no século XVI, inicialmente na Itália e, pouco a pouco, em toda a Europa. A assimilação dos modelos clássicos latinos e gregos, e o interesse pelo saber levaram os homens do Renascimento a grandes conquistas no campo da Filosofia, das Artes, da Literatura e das Ciências.

Na filosofia, pensadores como os italianos Giovanni Pico della Mirandola, Giordano Bruno, Tomasso Campanella e o holandês Erasmo de Roterdã sondaram e exaltaram a dignidade e o valor do homem, estudando profundamente o elo entre Deus e a humanidade, à luz da renovada cultura clássica.

Em arquitetura quiseram os artistas seguir os modelos greco-latinos, exemplos de equilíbrio e de harmonia; sobretudo os italianos Brunelleschi e Bramante. Nos outros países europeus, embora ainda se notassem manifestações de gótico tardio, começou a fazer-se sentir a influência italiana.

Na pintura, destacaram-se grandes nomes, tanto na Itália (Raffaello, Tiziano, Leonardo da Vinci), como na Alemanha (Dürer, Holbein) e na França (Fouquet).

A escultura viu surgir na Itália Donatello e Michelangelo, o maior escultor do Renascimento.

Foi na literatura que o estudo dos clássicos deu melhores frutos: Machiavelli, Ariosto, Tasso, na Itália; Spencer, Marlowe, Bem Johnson, e William Shakespeare, na Inglaterra; Garcilaso de La Veja, na Espanha; Ronsard, Montaigne, na França.

As ciências iniciaram um lento progresso e algumas grandes invenções e descobertas marcaram o período: Nicolau Copérnico enunciou a teoria heliocêntrica do sistema solar; Paracelso iniciou o estudo experimental da anatomia; Ticho Brahe construiu o primeiro observatório astronômico; Gutenberg inventou a imprensa, abrindo assim novas possibilidades de informação, instrução e cultura.

[O Barroco] Não existe uma cisão entre o gosto do século XVI, equilibrado, gracioso, harmonioso, e o gosto do século XVII, extravagante, artificioso, empolado. O gosto do século XVII, a que se chamou Barroco, e que se caracterizou pelas tendências ao maravilhoso, nada mais foi do que a extrema manifestação do classicismo, saturado, esgotado, e que consistiu no desejo de renovar, dar novas formas a todas as expressões artísticas do engenho humano.

Convencionou-se chamar o século XVII de “Idade do Barroco” embora não coexistisse em todos os países europeus. Nasceu na Itália, como o Renascimento, difundiu-se primeiramente no sul da Europa e na Holanda, para depois tornar-se um estilo com valor universal.

Inicialmente sóbrio, dentro do espírito da Contra-reforma, o Barroco entregou-se na segunda metade do século XVII a uma grande liberdade de imaginação.

Encontramos importantes exemplos de Barroco em arquitetura: as igrejas são monumentais, com muitos detalhes, contrastes de luz e sombra, grande quantidade de afrescos, esculturas, colunas; os palácios são suntuosos, com imponentes escadarias, cercados de imensos parques geometricamente traçados. Alguns arquitetos se destacaram nesta época: Bernini e Borromini (Itália), Neumann (Alemanha), Jones e Wren (Inglaterra).

Os traços dramáticos do barroco são encontrados também na escultura e na pintura (Caravaggio, italiano; El Greco, Velásquez, Murillo, espanhóis; Poussin, Claude Lorain, franceses).

Na literatura os grandes representantes do século foram: na Espanha, Cervantes; na França, Boileau, Corneille, Racine, Molière, La Fontaine; na Itália, Marino; na Alemanha, Opitz, Grimmelshausen.

A música procurou desenvolver novas formas; entre essas, o oratório e o melodrama (início da ópera). Importantes artistas surgiram no século XVII: Corelli, Vivaldi, Monteverdi, Scarlatti, na Itália; Sully e Rameau, na França; Johann Sebastian Bach, na Alemanha; Haendel, na Inglaterra.

A livre imaginação, o maravilhoso e o artifício deste período tiveram sua contrapartida e foram de certo modo contidos pelo marcado racionalismo das teorias filosóficas e políticas, as quais contribuíram para difundir o espírito de crítica, isto é, o espírito da livre indagação e da livre discussão. São filósofos do racionalismo: Francis Bacon e John Locke (ingleses), René Descartes (francês), Baruch Spinoza (holandês) e G. W. Leibniz (alemão). Por outro lado, no campo da teoria política, Hugo Grotius (holandês) partindo do direito natural, racionalmente concebido, baseia o Estado em um contato livre de homens que se associam para sua segurança.

O século XVII (como também o século XVIII) foi muito importante para a história das ciências. Três grandes nomes se destacaram: Galileu, Kepler e Newton.

O Barroco foi, portanto, um período dilacerado, complexo, dividido entre o “maravilhoso” das artes e da literatura, e o “racional” da filosofia e das ciências. Caberá ao século XVIII recompor o equilíbrio, desenvolvendo novas ideias filosóficas que trouxeram para o mundo amplas e profundas transformações.

[O Iluminismo] As raízes mais remotas do Iluminismo, já podem ser encontradas no Renascimento, no relevo dado por esse período à liberdade individual e à luta contra o fanatismo. As raízes mais próximas encontram-se na cultura filosófica e científica do século XVII, através da exaltação da pesquisa empírica e o entusiasmo pela técnica em desenvolvimento.

Nascido na Inglaterra, difundido pela França, o Iluminismo pregava a razão, a liberdade do espírito, a livre crítica e a tolerância religiosa, contrapondo-se, assim, ao peso da tradição, do dogmatismo religioso e filosófico, do absolutismo eclesiástico e monárquico e, em geral, a todos os preconceitos do passado. O Iluminismo estimulou o culto do progresso, baseado na educação dos homens: uma formação racional e uma educação conduzida para o humanitarismo garantem o progresso, promovem a fraternidade do gênero humano (cosmopolitismo), a paz eterna, a felicidade individual e a prosperidade geral.

Grande importância tiveram os filósofos desta época; os iluministas acreditavam que, derrotadas as convenções, triunfaria, nas ciências e na vida prática, a mais valiosa das qualidades da mente humana, a razão. Sonhavam eles com um mundo perfeito, regido pelos princípios da razão, um mundo sem guerras, sem injustiças sociais, sem cerceamento da liberdade de expressão; sonhavam ainda com uma real colaboração entre os homens para alcançar a felicidade comum.

Defensores dessas ideias foram David Hume (na Inglaterra), Voltaire, Rousseau, Montesquieu (na França). Lessing e Kant (na Alemanha), Vico (na Itália). Para recolher todos os conhecimentos, dentro do espírito do Iluminismo, e para que a cultura pudesse ter maior difusão, foi compilada a Enciclopédia pelos franceses D’Alambert e Diderot.

Também as artes figurativas sentiram a necessidade de uma renovação do gosto. O século XVIII passou dos grandes espaços e das amplas superfícies da arte barroca para realizações em que tudo é minúsculo, gracioso, elegante.

Neste século em que, pouco a pouco, a cidade prevaleceu sobre o campo e grandes massas humanas começaram a concentrar-se nos centros urbanos, a arte, escultura e pintura sobretudo, tratou frequentemente da volta à natureza. Foram mestres na pintura da natureza o italiano Canaletto, o inglês Gainsborough e os franceses Watteau e Fragonard.

A arquitetura revelou as qualidades racionais que presidiram à sua realização: todo edifício devia preencher a finalidade para a qual foi construído, dentro de um renovado equilíbrio de forma e espaço.

Também a literatura do século XVIII, como as artes figurativas, relfete – tendo por meta a instrução social e o melhoramento moral dos homens – a elegância dos costumes, o prazer da intimidade, o amor pela vida; Parini, Goldoni, Alfieri (italianos); Lessing, Goethe e Schiller (alemães) são os principais escritores da época.

A música, por sua vez, soube também traduzir o novo gosto do século: a partir de 1750 desenvolveu-se em Viena o período clássico da sonata, com Haydn; da ópera, com Gluck; da sinfonia, com Mozart, síntese entre a vivacidade da tradição italiana e a força dramática da tradição alemã.

O impulso renovador das ideias iluministas provocou em toda a Europa um grande interesse pelos problemas da vida civil, conduzindo a novas transformações nas teorias econômicas enunciadas através do liberalismo econômico do inglês Adam Smith e da fisiocracia (domínio da natureza) do francês Quesnay.

Esse espírito renovador conduziu outrossim a um profundo estudo das ciências, onde o progresso foi enorme, e ao espírito aventureiro, mas também científico, da exploração de terras desconhecidas.

Nascia assim uma nova civilização, destinada a desenvolver-se plenamente no século XIX, quando novas ideias, nova renovação do gosto levarão a humanidade a novos rumos.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 217-221.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

De costas para o mar, de olho no sertão

Combate contra os índios botocudos, J. B. Debret

De todos os núcleos de colonização portuguesa no Brasil do século XVI, São Paulo era o único que não ficava no litoral e não dependia do comércio com a Europa. A sobrevivência da vila, nos seus primórdios, era garantida pela esperta política de alianças do cacique tupiniquim Tibiriçá, que havia casado sua filha com o português João Ramalho. Seus guerreiros conseguiam cativos de outras tribos para as lavouras dos primeiros colonos. Ao perceber que não conseguiria chegar pelo sul do Brasil às cobiçadas minas de ouro e prata do Peru, a Coroa portuguesa abandonou os paulistas à própria sorte. Aos bandeirantes restaram a exploração do ouro vermelho, os índios. Assim começou o "negócio do sertão", como era chamado o ofício da caça de gente, base da economia paulista até o século XVIII.


A mão-de-obra escrava foi a base do desenvolvimento de prósperas plantações de trigo no século XVI ao XVII, vizinhas à cidade. Áreas rurais, como Cotia e Santana do Parnaíba, abasteciam São Vicente e Rio de Janeiro, os centros produtores de açúcar, a maior mercadoria da colônia. [...]

Os bandeirantes, Henrique Bernardelli

Se o campo era rico, o mesmo não se pode dizer da precária vila, que em 1601 tinha apenas 1 500 habitantes. Em nada se comparava à solidez dos núcleos canavieiros do Nordeste, como Olinda e Salvador. São Paulo era umas poucas casas de pau-a-pique espalhadas no meio do mato, entre ruas sujas e barrentas.


Um visitante sofreria para achar um endereço. Primeiro, porque as ruas não tinham nome. Depois, não conseguiria, mesmo entender os paulistas: quase todos eles eram índios ou mestiços e falavam a "língua geral", um dialeto tupi. Aliás, o nome completo da vila era São Paulo de Piratininga, que quer dizer "peixe seco" no idioma indígena. O português era de uso quase exclusivo da minoria branca. Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, 83% da população paulista era indígena. O bilinguismo só acabaria de vez em 1759, quando a língua geral foi proibida pelas autoridades portuguesas, por decreto.


Em São Paulo, rico era quem tinha talheres - só dez famílias possuíam - e camas. Isso mesmo: camas. Em 1620, um representante do rei de Portugal em visita à cidade simplesmente não tinha onde dormir. A solução foi confiscar a única cama decente da cidade, que pertencia a um cidadão chamado Gonçalo Pires.


TORAL, André; BASTOS, Giuliana. De costas para o mar, de olho no sertão. Superinteressante, São Paulo: Abril, n. 151, p. 27, abr. 2000.

sábado, 23 de julho de 2011

Museu do Ipiranga


Tomemos o nosso caso concreto, transportando-nos ao Museu do Ipiranga, na cidade de São Paulo, num domingo à tarde. [...] Em seu próprio território, reproduzindo em seus monumentos os padrões 'obrigatórios' do modelo europeu, os setores enriquecidos e mais influentes da sociedade local reconstroem simbolicamente o seu passado, buscando legitimar-se, no presente, como protagonistas, representantes e porta-vozes da história de todos nós. Com efeito, são levados constantemente a visitas gratuitas e obrigatórias ao Museu os nossos estudantes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio que, a título de aprenderem história, devem lá prestar a sua homenagem aos 'grandes Homens da Pátria'.

Entretanto, não obstante o esforço dos educadores, parece ser pequeno o interesse da maior parte dos que efetivamente frequentam o Museu nos fins de semana pelos objetos e fragmentos que ele abriga.

Preferindo a sombra fresca das árvores e o aconchego dos arbustos, o 'povão' transforma o jardim (que ali foi construído, certamente como moldura nobre para enfatizar a monumentalidade do edifício central do Museu) em agradável e descontraído parque de esportes e diversões. [...]

Este exemplo, embora apresentado de modo esquemático, ilustra bem algumas questões que se colocam quando procuramos compreender a heterogeneidade cultural na sociedade de classes.

A discrepância flagrante entre as concepções dos idealizadores e as dos usuários do Museu e do jardim que o circunda sugere, inicialmente, que sistemas simbólicos diversos estão presentes nessa situação. [...]

Não é, evidentemente, o caso de se pensar em desinformação, deseducação ou selvageria do 'povão', diante de um espaço consagrado ao culto de relíquias dos 'ancestrais ilustres' dos dominantes.

Ocupando a seu modo esse monumento, os usuários o transformam simbolicamente, redefinindo as funções dos equipamentos existentes segundo as suas próprias necessidades e concepções.

E, ao fazerem isso, eles se apropriam, momentaneamente, de um espaço que é sagrado para os dirigentes e que, a rigor, lhes pertence, recriando nele as suas próprias formas de sociabilidade. Revela-se nesse exemplo a força transformadora do uso efetivo sobre as imposições restritivas dos regulamentos.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 47-50.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Os brutos que conquistaram o Brasil

Família guarani capturada por caçadores de índios,  Debret


Ilha do Bananal, atual Estado do Tocantins, ano de 1750. Um grupo de homens descalços, sujos e famintos se aproxima de uma aldeia carajá. Cautelosamente, convencem os índios a permitir que acampem na vizinhança. Aos poucos, ganham a amizade dos anfitriões. Um belo dia, entretanto, mostram a que vieram. De surpresa, durante a madrugada, invadem a aldeia. Os índios são acordados pelo barulho de tiros de mosquetão e correntes arrastando. Muitos tombam antes de perceber a traição. Mulheres e crianças gritam e são silenciadas a golpes de machete. Os sobreviventes do massacre, feridos e acorrentados, iniciam, sob chicote, uma marcha de 1 500 quilômetros até a vila de São Paulo - como escravos.

Foi assim, à força, que os bandeirantes conquistaram o Brasil. Caçadores profissionais de gente, chegaram a lugares com os quais Pedro Álvares Cabral nem sonharia. Nas andanças em busca de ouro e índios para apresar, descobriram as regiões dos atuais estados do Mato Grosso, Góias, Minas Gerais e Tocantins. Percorreram e atacaram povoações espanholas nos atuais Peru, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Espalharam terror entre os povos do interior do continente e expandiram as fronteiras da América portuguesa.


Uma história brutal. Mas, se não fossem eles, você talvez falasse espanhol hoje. Os maiores trunfos desse avanço eram o conhecimento do sertão e uma disposição que intrigava até os inimigos. O padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652), por exemplo, escreveu que os paulistas, a pé e descalços, andavam mais de 2 000 quilômetros por vales e montes "como se passeassem pelas ruas de Madri". A coragem deles também era extraordinária. Além de terras desconhecidas, sempre enfrentaram grupos indígenas dispostos à briga. E nem sempre se davam bem. Muitos morreram de fome, em terras estéreis, ou crivados de flechas.


Os grandes perdedores, no entanto, foram os índios. Nas tribos visitadas pelos bandeirantes não ficava palha sobre palha. Muitos territórios viraram desertos humanos, ocupados, depois, por súditos portugueses. Por isso, hoje quase não se vêem índios em São Paulo, Minas Gerais, na Bahia e no nordeste em geral.


TORAL, André; BASTOS, Giuliana. Os brutos que conquistaram o Brasil. Superinteressante, São Paulo: Abril, n. 151, p. 26., 2000.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A grande viagem da cozinha e seu refinamento

"Negra tatuada vendendo cajus", Debret

[...] A grande expansão marítima do início da Idade Moderna provocou um enorme intercâmbio cultural entre os europeus e aqueles com os quais mantiveram contato na Ásia, no Brasil, na América, na África.

Os navegadores levavam sementes, raízes e cereais para as terras distantes e, de volta, traziam as novidades lá experimentadas.

E assim os europeus aprenderam e também ensinaram o preparo de um mesmo alimento de maneiras diferentes, o uso de novos temperos, a combinação de diversos sabores e o cultivo dos mais variados produtos.

E o resultado de tudo isso foi um troca-troca muito saudável de alimentos e de receitas.

Do Brasil os portugueses levaram vários produtos para a Ásia: milho, agrião, mandioca, batata-doce, repolho, pimentão, abacaxi, goiaba, caju, maracujá, mamão e tabaco. Os cajus se adaptaram muito bem na Índia e proliferam, dando vinho, passa, doce e castanha.

Os produtos de origem asiática que vieram para o Brasil e outras colônias da América foram, entre outros, cana-de-açúcar, arroz, laranja, manga, tangerina, chá, lírios, rosas, crisântemos, camélias e porcelanas, estas disputadas a unhas e dentes pelos nobres e burgueses.

O açúcar, muito caro na Idade Média porque tinha que ser importado do Oriente, tornou-se mais acessível e barato, graças às plantações de cana-de-açúcar na América. Aos poucos ele foi substituindo o mel, pois se adaptava melhor ao uso culinário, sendo mais fácil de transportar e conservar. E, assim, ele acabou influenciando consideravelmente os hábitos das populações que o cultivavam.

No Brasil, por exemplo, percebemos isso nas bebidas açucaradas e na enorme variedade de doces criados a partir de sobremesas portuguesas que chegaram aqui, Os doces quase sempre ganharam uma adaptação local, com o acréscimo ou a substituição de algum ingrediente da terra, como ocorreu com os doces portugueses feitos de amêndoas e que passaram a ser preparados com amendoim.

A África exportou a banana para o Novo Mundo e, também, o inhame, a pimenta-malagueta, a erva-doce, o quiabo, a galinha-d'angola e a palmeira-de-dendê. No Brasil, o azeite-de-dendê era presença certa na maioria dos quitutes preparados pelos escravos africanos, hábito que se espalhou por diversas regiões do país, incorporando-se definitivamente à nossa culinária.

Outros produtos originários da África e que chegaram ao nosso continente foram a melancia e o coco. O coco, inclusive, teve um aproveitamento muito maior no Brasil do que na sua terra de origem ou no restante da América. É empregado em iguarias como o peixe-de-coco, arroz-de-coco, peixe-de-escabeche, tendo ampla utilização na cozinha afro-baiana, sem contar com o seu relevante papel em nossa doçaria.

A América também participou desse intercâmbio introduzindo novos sabores na África, para onde mandou farinha de mandioca, caju, peru, um certo tipo de milho e amendoim. Esse último, aliás, já era cultivado pelos africanos, mas foi a espécie americana que acabou ganhando a preferência do povo.

E para os europeus a América forneceu a batata, diversos tipos de feijão, abóbora, amendoim, pimentão, cacau, baunilha e abacate, contribuindo para uma dieta mais rica e variada. Desses alimentos, o mais importante foi a batata, que dois séculos depois de sua chegada à Europa já havia se tornado básica em sua alimentação. Também o peru, natural do México, conquistou a Europa, o que não aconteceu com o milho e a mandioca, que não foram muito bem aceitos.

LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. A história da gastronomia. Rio de Janeiro: Senac, 2000. p. 56-59.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A conquista da América pelos germes

"O império asteca subjugado", Diego Rivera

A importância dos micróbios letais na história humana é bem ilustrada pelas conquistas europeias e o despovoamento do Novo Mundo. Muito mais ameríndios morreram abatidos pelos germes eurasianos [de origem europeia e asiática] do que pelas armas e espadas europeias nos campos de batalha. Esses germes minavam a resistência indígena matando grande parte dos índios e seus líderes e abalando o moral dos sobreviventes. Em 1519, por exemplo, Cortés desembarcou na costa do México com 600 espanhóis a fim de conquistar o terrível Império Asteca militarista com uma população de muitos milhões. O fato de Cortés chegar à capital asteca de Tenochtitlán, fugir depois da perda de "apenas" dois terços de seu contingente e conseguir abrir caminho lutando para voltar à costa demonstra a superioridade militar espanhola e a ingenuidade inicial dos astecas. Mas, quando sobreveio o novo ataque violento de Cortés, os astecas já não eram mais ingênuos e lutaram com tenacidade. O que deu aos espanhóis uma vantagem decisiva foi a varíola, que chegou ao México em 1520 com um escravo contaminado procedente da Cuba espanhola. A epidemia que veio em seguida matou quase a metade dos astecas, incluindo o imperador Cuitláhuac. Os sobreviventes astecas ficaram desmoralizados pela doença misteriosa que matava os índios e poupava os espanhóis, como que anunciando a invencibilidade dos últimos. Em 1618, a população inicial do México, de quase 20 milhões, caíra para cerca de 1,6 milhão.

Pizarro também foi ajudado por um acaso sinistro quando desembarcou na costa do Peru em 1531 com 168 homens para conquistar o Império Inca de milhões. Felizmente, para Pizarro e infelizmente para os incas, a varíola havia chegado por terra por volta de 1526 e exterminado grande parte da população inca, incluindo o imperador Huayna Cápac e seu sucessor. [...]

Quando os americanos pensam nas sociedades mais populosas do Novo Mundo que existiam em 1492, só se lembram dos astecas e dos incas. Esquecem que a América do Norte abrigava sociedades indígenas populosas no lugar mais óbvio, o vale do Mississípi, que contêm um dos melhores terrenos do país para a agricultura. Nesse caso, porém, os conquistadores não contribuíram diretamente para a destruição das sociedades; os germes eurasianos, que se disseminaram antes, fizeram tudo. Hernando de Soto, o primeiro conquistador europeu a atravessar o sudeste dos Estados Unidos, em 1540, encontrou em sua marcha aldeias indígenas abandonadas dois anos antes porque os habitantes haviam morrido em epidemias. Essas epidemias haviam sido disseminadas pelas índias do litoral contaminadas pelos espanhóis que visitavam a costa. Os micróbios dos espanhóis propagavam-se pelo interior antes dos próprios espanhóis.

Quando eu era jovem, os alunos dos colégios americanos aprendiam que a América do Norte era originalmente ocupada por apenas cerca de um milhão de índios. Esse número baixo seria para justificar a conquista pelos brancos do que poderia ser considerado um continente quase desabitado. Entretanto, escavações arqueológicas e o exame minucioso das descrições deixadas pelos primeiros exploradores europeus em nossas costas apontam agora para um número inicial de cerca de 20 milhões de índios. Para o Novo Mundo como um todo, estima-se que o declínio da população indígena no primeiro ou nos dois séculos posteriores à chegada de Colombo tenha sido de 95%.

Os principais assassinos foram os germes do Velho Mundo, aos quais os índios jamais haviam sido expostos e contra os quais não tinham resistência imunológica nem genética. Varíola, sarampo, gripe e tifo disputavam o primeiro lugar entre os maiores assassinos. Como se esses não bastassem, difteria, malária, caxumba, coqueluche, peste, tuberculose e febre amarela vinham logo atrás. [...]

Adaptado de: DIAMOND, Jared.. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O Humanismo e o Renascimento

"O nascimento de Vênus", Sandro Botticelli

"Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio, tão vário na capacidade; em forma e movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo, no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo; o exemplo dos animais". 
(William Shakespeare. Hamlet.)

Texto 1
[...] Hoje, qual o pensamento predominante na sociedade capitalista? 

Seria o mesmo de Shakespeare?

De certa forma sim, a valorização do homem persiste. Hoje, o homem sabe que é capaz de dominar a Natureza. Mas sua beleza, sua inteligência, suas destrezas são vistas como coisas muito naturais. 

Nossa sociedade não pensa como Shakespeare. Hoje, não o homem, mas sim suas realizações são vistas como obras de grande engenho e arte: suas máquinas, seu progresso científico... Poderíamos exclamar: que obras de arte faz o homem!

Essa pequena inversão na frase de Shakespeare é fundamental para explicar as mudanças ocorridas no plano das ideias. [...]

[...]

[...] tal ideia representava uma verdadeira ruptura, quando pronunciada. E foram as mudanças nas bases materiais das diversas formações da Europa que condicionaram essa ruptura. Emergia uma nova visão do mundo, em que o Homem, o indivíduo, no sentido mais genérico, passou a ser o centro das atenções intelectuais. O rígido  teocentrismo medieval, que centrava suas atenções na relação Deus-Homem, foi substituído pela glorificação do Humano, pela preocupação da relação Homem-Natureza.

As pessoas interessadas nessa ruptura com as ideias medievais buscaram inspiração nas obras greco-romanas para representar seu próprio mundo. Era o Renascimento, que revelou ao mundo muitos pensadores e artistas. [...]

[...]

* Humanismo. "Desde o fim do século XIV, na Itália, um certo número de homens cultos, os humanistas [...], apaixonou-se pela recordação da Antiguidade Greco-Latina. Esforçaram-se por reencontrar e reunir as obras dos autores antigos, quase todas dispersas nos conventos e mosteiros onde os monges as haviam conservado e copiado ao longo da Idade Média". (GIRARDET, R.; JAILLET, P. Histoire: XVI, XVII et XVIII Siècles. Paris: Fernand Nathan Editeur, 1957. p. 38.)

"Em um sentido estrito, os Humanistas são os letrados profissionais, geralmente provenientes da burguesia, eclesiásticos, professores universitários, médicos, funcionários, por vezes publicistas, a serviço de uma casa editora, que exprimem a tendência da sociedade e lhe fornecem suas ferramentas intelectuais." (MOUSNIER, R. Os séculos XVI e XVII. In: História Geral das Civilizações. São Paulo: Difel, 1957. p. 24.)

Desse modo, o Humanismo deve ser entendido como um movimento intelectual de valorização da Antiguidade Clássica. Não se tratava, porém, de apenas copiar as realizações do Classicismo Greco-Romano; tal aspecto retiraria ao movimento sua maior amplitude. O Humanismo, embora não sendo a rigor uma filosofia, representou um movimento de glorificação do Homem, tornado centro de todas as indagações e preocupações. Constituía, em sentido amplo, uma tomada de posição antropocêntrica em reação ao teocentrismo imperante na Idade Média, época de predomínio da Igreja e da nobreza feudal e de posição social subordinada da burguesia.

Os humanistas não mais aceitavam os valores e maneiras de ser e viver da Idade Média. Por conseguinte, o interesse pela Antiguidade era um meio para atingir um fim: os humanistas viam na Antiguidade "aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [...] Pretendem encontrar nos antigos o Homem, considerado como um ser geral, impessoal, universal, que existe, sob a mesma forma, em toda parte [...] O Humanismo é uma técnica da vida cotidiana". (MOUSNIER, R. op. cit., p. 26.)

[...]

O Humanismo teve suma importância, pois conduziu a modificações nos métodos de ensino, enriquecidos com o estudo das línguas clássicas (grego e latim) e com a maior preocupação em estudar a Natureza e desenvolver a análise e a crítica na investigação científica. Igualmente possibilitou maior conhecimento da Antiguidade, cujas realizações poderiam servir de modelos nas atividades humanas, seja nos campos literários e das artes plásticas, seja nas instituições políticas e sociais. Além do mais, gerou uma renovação cultural que influiu diretamente no desencadeamento e na evolução do Renascimento.

* Renascimento. O Renascimento foi, de certa forma, a expressão do movimento humanista nas artes, letras, filosofia, música e ciências, constituindo-se em um "prodigioso desabrochar da vida sob todas as suas formas, que teve de um modo geral suas maiores manifestações de 1490 a 1560, mas que não está preso dentro destes limites. Então, um afluxo de vitalidade fez vibrar a humanidade europeia. Toda a civilização da Europa transformou-se, em consequência." (MOUSNIER, R. op. cit., p. 17.)

[...]

Enriquecida com o comércio, a burguesia urbana procurou se firmar na sociedade, onde os valores impetrantes não eram os seus, mas sim os projetados pela Igreja e pela nobreza feudal; para contestá-los e difundir os seus valores, mercadores e banqueiros promoveram as artes, as letras e as ciências, realizadas segundo concepções racionalistas, pagãs, antropocêntricas...

[...]

Apesar da inegável influência medieval evidente na produção de muitos renascentistas [...], o Humanismo e o Renascimento representaram uma reação aos padrões culturais medievais. Ao teocentrismo opuseram o antropocentrismo, à fé contrapuseram a razão, ao espírito de associação defrontaram o individualismo, à religiosidade opuseram o paganismo, o que não pode ser confundido com ateísmo. [...]

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 117-121, 123.


Texto 2
Numa forma abreviada, às vezes se traduz parte deste cenário - o florescer das artes e da sabedoria entre os séculos XIV e XVI - sob o título de "Renascença", palavra de origem francesa que significa "renascimento". Em certa medida, todos os países europeus a oeste da Rússia sentiriam a influência deste movimento, para o qual a maioria contribuiu. No entanto, a Itália foi o seu verdadeiro centro e coração. Entre 1350 e 1450, muito mais sábios, artistas, cientistas e poetas viveram nas cidades da Itália do que em qualquer outro país. A Europa inteira ia estudar na Itália, ou seja, aprender a imitar as coisas belas e inteligentes que se podia encontrar ali; os italianos se reportavam ao passado clássico da Grécia e de Roma.


A Renascença tem as suas raízes na redescoberta de parte do passado da Europa que fora obscurecido pela civilização cristã durante a Idade Média. Rafael glorificou os grandes filósofos da Grécia na pintura, e os escritores humanistas imitaram o estilo do romano Cícero para escrever em latim elegante. [...] Na pintura, na escultura, na gravura, na arquitetura, na música e na poesia deixou um vasto número de belas criações que durante séculos moldaram o conceito de beleza. Essa arte chegou ao clímax no fim do século XV e início do século XVI, época de - entre outros - Michelangelo - escultor, pintor, arquiteto e poeta -, Rafael - pintor e arquiteto - e Leonardo da Vinci - pintor, engenheiro, arquiteto, escultor e cientista. Os homens da Renascença admiravam estes artistas de múltiplos talentos, que davam às pessoas uma nova ideia da excelência humana. O homem passou a ser visto como criatura de maior potencial aqui na Terra do que a Igreja ensinara. Na pintura de Michelangelo A Criação de Adão, o Pai da raça humana é uma figura heróica e gigantesca, excedendo em poder e efeito dramático até mesmo o Criador, cujo dedo lhe dá a vida.


"A criação de Adão", Michelangelo. A religião pode não ter estabelecido a verdade, mas ensejou maravilhosas obras de arte.


Os sábios da Renascença foram os primeiros a falar em "Idade Média" como algo situado entre sua época e o passado clássico e de cuja importância tinham perfeita consciência. Contudo, o fato mais importante a respeito dos europeus não mudara muito: em 1500, a civilização europeia ainda possuía um coração religioso [...]. O primeiro livro impresso na Europa fora a Bíblia, o texto sagrado desta civilização. [...]


ROBERTS, J. M. O livro de ouro da História do Mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 398, 400.

sábado, 16 de julho de 2011

Berços esplêndidos

Cama medieval. Século XIV

O célebre escritor alemão Thomas Mann dizia que a cama é um móvel transcendental, onde ocorrem os mistérios do nascimento, do amor e da morte, e que à noite se transforma em navio mágico no qual embarcamos para o mar dos sonhos. Fonte de inspiração de muitos artistas, para nossos antepassados a cama tinha mil outras utilidades além de lugar de repouso.

Os antigos gregos dormiam, comiam e celebravam suas festas em leitos ricamente decorados; os romanos faziam tudo isso em seus relaxantes divãs. Na Idade Média, a cama era um luxo reservado aos poderosos. Para um nobre medieval, receber visitantes placidamente deitado em sua cama era sinal de prestígio e prova de superioridade diante do recém-chegado. Mas nem as famílias aristocráticas dispunham de leitos individuais para cada um de seus membros. O normal era ter em casa uma grande cama que era compartilhada por pais, filhos e até convidados, se houvesse. Também os animais domésticos eram tranquilamente admitidos e ase aninhar nesse leito coletivo - mesmo porque eles ajudavam a manter seus donos aquecidos nas longas noites de inverno europeu. [...]

Para a maioria dos mortais, o lugar de dormir não era exatamente um primor de conforto, para não falar em higiene. Dormia-se em enxergas de palha, que, além de absorverem  a umidade, eram a moradia ideal para toda a espécie de insetos. O leito do imperador Carlos Magno (742-814), que ele dividia com convidados, conforme o costume da época, consistia em um manto de palha estendido sobre uma base de madeira. Era coberto com um colchão forrado de plumas, em cima do qual  se estendiam lençóis. Uma almofada ficava na altura da cabeça. Como soberano que era, certamente Carlos Magno contava com a criadagem para lhe renovar a palha de vez em quando. [...]

Desde a Antiguidade, fazia-se política na cama. Alexandre Magno, da Macedônia decidia os destinos de seu império do alto de sua cama de ouro. Os imperadores romanos davam audiências reclinados em luxuosos divãs. Francisco I, rei da França (1494-1547), tinha por hábito premiar o almirante Bonnivent, chefe de sua esquadra, após cada batalha vitoriosa, com o honroso convite para partilhar de sua cama por alguns momentos. O monarca Felipe IV, o Belo (1268-1314) fez de seu dormitório a sala de reuniões mais concorrida de todo o reino da França. Ao redor de sua luxuosa cama - de veludo azul bordado com lírios dourados - se reuniam os conselheiros, os ministros, os representantes das corporações e os embaixadores estrangeiros. [...]

Depois da Revolução Industrial, que gerou a sociedade competitiva e apressada dos dias atuais, ficar muito na cama passou a ser visto como grave defeito de personalidade e sinônimo de improdutividade e vagabundagem.

Ao mesmo tempo, porém, a tecnologia cada vez mais avançada oferece aos apreciadores camas cinematográficas, de dar inveja aos potentados de antigamente: vibratórias, redondas, com cobertores elétricos e colchões de água, que ondulam suavemente a qualquer movimento e até com bar e equipamentos de som e vídeo acoplados.

Berços esplêndidos. Superinteressante. São Paulo: Abril, p. 60-61. n. 006, mar. 1988.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

11 de setembro de 2001


Às 8h48 do dia 11de setembro de 2001, um boeing 767 da American Airlines foi jogado contra uma das torres de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque. Começava o pior ataque terrorista já ocorrido na história dos Estado Unidos. Quinze minutos depois, um segundo avião sequestrado atingiu a segunda torre. Um terceiro caiu no interior do Pentágono, o Departamento de Defesa, localizado em Washington. E uma quarta aeronave caiu numa floresta de Pitsburgh, na Pensilvânia.

Esses quatro aviões de passageiros das empresas United Airlines e American Airlines serviram como "mísseis" para destruir prédios em pleno território norte-americano. Uma tragédia que fez desmoronar o mito da invulnerabilidade do país mais poderoso do mundo na atualidade.

Após os ataques terroristas, dezenas de prédios foram evacuados e o estado de emergência foi decretado nas principais cidades americanas.

Os aeroportos de Nova Iorque e Washington foram fechados e o tráfego ferroviário suspenso.

Os terroristas usaram facas e estiletes no sequestro dos aviões, mas as armas utilizadas na resposta americana contra o Afeganistão foram bem diferentes. Após rejeitarem a proposta do Talibã de julgar o saudita Osama Bin Laden, acusado de ser o mentor da tragédia, no Afeganistão, os Estados Unidos atacaram o país com os modernos aviões espiões e mísseis teleguiados.

Os alvos dos bombardeios foram bases e centros de comunicação militares do Talibã e campos da organização terrorista Al-Qaeda ("A Base", em árabe), comandada por Osama Bin Laden. Inglaterra, França, Alemanha e Austrália, entre outros países, anunciaram apoio militar aos EUA, enquanto a reação no mundo muçulmano variava do silêncio à hostilidade.

Em resposta, o grupo do regime extremista declarou uma Jihad, 'guerra santa', contra os Estados Unidos.

Após muitos ataques ao Afeganistão, o terrorista Bin Laden não foi encontrado. Nas regiões montanhosas de Tora Bora, todo o complexo de cavernas construído na década de 1980 foi vasculhado por mais de sete mil soldados estrangeiros. Após três meses de guerra, os talibãs perderam o poder que mantiveram por cinco anos. Os norte-americanos fizeram cerca de oito mil prisioneiros.

O mundo islâmico se divide entre amor e ódio em relação a Bin Laden. Com sua fortuna atual variando entre 270 e 300 milhões de dólares, o décimo sétimo dos 52 filhos do milionário saudita da construção civil, Mohammed Bin Laden, se uniu, aos 22 anos, aos muçulmanos do Afeganistão que lutavam contra a ocupação soviética na década de 1980. Bin Laden financiou o terror, mas também contribuiu para a construção de escolas, hospitais, estradas e até um aeroporto. Formou um exército de mercenários provenientes de várias regiões do Oriente Médio.

A partir de 1991, na Guerra do Golfo, o saudita direcionou seu ódio aos Estados Unidos. Ele se opunha à presença de tropas norte-americanas na Península Arábica, alegando se tratar de solo sagrado.

Mesmo se posicionando ao lado do Iraque, ainda tentou uma saída política, apresentando propostas que evitassem a "profanação" do solo árabe, mas ficou enfurecido ao saber que militares norte-americanos estavam a caminho. Terminada a guerra, sua ira aumentou mais ainda com a instalação de uma base militar permanente dos Estados Unidos na Arábia. [...] Os atentados terroristas contra os Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, deixaram um saldo de mais de três mil mortos.

A economia mundial sentiu o impacto da tragédia diante da possibilidade de prejuízos gigantescos e da instabilidade na ordem política. As bolsas de valores despencaram e interromperam os negócios, amedrontados com o acontecido. [...] No cenário da nova ordem mundial, as guerras não são mais provocadas por ideologias, mas por conflitos religiosos, étnicos, territoriais e pelo controle de recursos naturais.

Os personagens não são mais os agentes do Estado, mas organizações cujas relações com governos são oblíquas, ambíguas e, às vezes, indecifráveis. Os homens que atingiram o WTC e o Pentágono eram soldados numa nova forma de guerra. Agora a guerra, como tantas outras coisas na era da globalização, saiu fora do controle governamental.

Os atentados trouxeram profundas mudanças no debate internacional, colocando em evidência temas como terrorismo, segurança, extremismo religioso e hegemonia internacional.

Para muitos analistas internacionais, após o dia 11 de setembro o mundo também se conscientizou da globalização da violência - nenhum lugar está isolado e ninguém é invulnerável: o mundo é um só.

AMARO, Fábio et al. O mundo hoje: História, Geografia e atualidades. Belo Horizonte: RHJ, 2002. p. 28-29.