"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Os libertinos. A libertinagem dos costumes (Parte 5)

O acordo perfeito, Jean-Antoine Watteau

Mas o fato de seguir a natureza, de buscar a voluptuosidade, era facilmente interpretado, em muitos, pela sensibilidade barroca como desencadeamento dos instintos, como paixão de uma liberdade infrene, como rejeição de quaisquer limites. As menoridades, as regências, o tempo de Maria de Médicis, o de Ana d'Áustria, são épocas de galanterias escabrosas, de loucas aventuras, em que gentis-homens como o Conde Bellegarde junto de Henrique IV, os Duques de Guise, o Marechal de Roquelaure, dados às emboscadas, aos saques, às violações, aos incêndios, movidos por ásperas paixões, vivem em orgias furiosas, rixas, duelos, bebedeiras e blasfêmias. Jogam, renegam a Deus [...]. É da moda, entre certa juventude, considerar a religião uma trapaça. No sítio de La Rochelle, alguns oficiais zombaram tanto de um de seus companheiros que falara de Deus, que o obrigaram a solicitar licenciamento. O mesmo acontecia durante a Fronda. A irreligião tornava-se notória entre a nobreza que cercava Gastão de Orléans e Condé. Qual o seu número? Mersenne arquejava: "Só em Paris campeiam 50.000 ateus, no mínimo." Boucher, por volta de 1630, deplorava: "um milhão de espíritos perdidos". Gritos de dor, sem valor estatístico. De 1623 a 1625, houve uma verdadeira crise. Em dois anos apareceram o Romance de Francion, a Musa Amalucada, o Gabinete Satírico, o Parnaso dos Poetas Satíricos, a Quintessência Satírica. Os seus temas giravam em torno da equivalência da devoção e da hipocrisia, do direito do prazer triunfar sobre a regra. Estabeleceu-se o pânico. Os devotos acreditaram numa conjuração. "O ateísmo" tornava-se um fato reconhecido, catalogado, uma força a combater.

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 342. (História geral das civilizações, 9).

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Os libertinos. A Antiguidade em lugar do Cristianismo (Parte 4)

A lição de amor, Jean-Antoine Watteau

Mais grave talvez do que todos esses ataques é o fato de a Antiguidade fornecer o meio de dispensar o cristianismo. Deseja alguém dirigir uma casa, educar filhos? Eis Xenofonte. Governar? Há Aristóteles, Platão, Tácito. Conhecer as leis do Universo? Que leia Plínio, Lucrécio. Instruir-se acerca dos limites entre a natureza e o milagre? Cícero escreveu o De divinatione. Refletir sobre a imortalidade da alma? Aí estão o Fédon e o Sonho de Cipião. Sobretudo os Antigos proporcionavam doutrinas que permitiam ao homem bastar-se a si próprio para enfrentar as dificuldades, as penas, as angústias da vida, doutrinas onde a razão soberana dita os atos que uma vontade livre executa. Para Epicuro, a felicidade constitui-se de dois estados: "Corpo sem dor, alma sem inquietação". Estes dois estados são a voluptuosidade, objetivo essencial de nossa natureza, primeiro bem do homem. A razão sã dita os objetos e as opiniões que é preciso evitar ou procurar a fim de atingir tais estados. A razão levar-nos-á a rejeitar grandes prazeres, se maiores penas devem segui-los, ou a aceitar grandes e prolongadas penas, se prazeres hão de acompanhá-las. A razão mostrar-nos-á que a frugalidade, a honestidade, a justiça nos conduzem aos estados de onde surge a voluptuosidade, que a felicidade e a virtude formam duas irmãs inseparáveis. A moral do prazer convertia-se, assim, num prudente cálculo utilitário. [...]

Outros preferiam os estóicos, Epicteto, Sêneca, cujo estoicismo se matiza de epicurismo. Existem coisas que dependem de nós, a opinião, o querer, o desejo, a aversão e, em geral, os nossos julgamentos e as nossas representações. Somos os seus amos. Nossa imaginação nos dá o poder de representar as coisas no espírito, de vê-las como boas ou más, de desejá-las ou rejeitá-las, de suportá-las ou repeli-las. A faculdade de julgar e querer é absolutamente livre.

Existem coisas, entretanto, que não dependem de nós, o corpo, os bens, a reputação, a dignidade. Elas nos são estranhas. Dependem dos outros.

Se desejamos aquilo que só depende de nós, isto é, bem julgar e conformar nossa vontade ao nosso julgamento, seremos felizes, pois a felicidade consiste em obter o que desejamos.

Os estóicos não eram raros entre os magistrados e os fidalgos. Até um religioso pediu que o amortalhassem com um volume de Sêneca do qual jamais se separara. Mais numerosos, contudo, eram os epicuristas. O epicurismo transformou-se facilmente num utilitarismo que comprazia ao espírito burguês. [...]

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 340-341. (História geral das civilizações, 9).

sábado, 26 de novembro de 2016

Os libertinos. Os povos exóticos e a religião natural (Parte 3)

O banquete do amor, Jean-Antoine Watteau

As descobertas geográficas forneciam novas armas. Os selvagens da América haviam permitido que Montaigne escarnecesse da razão, dos costumes da religião, dos povos cristãos. A China proporcionou os meios de uma operação idêntica aos libertinos do século XVII. La Mothe Le Vayer, em 1642, no seu tratado Da Virtude dos Pagãos, afirmava que se, de acordo com a Igreja, os filósofos pagãos que de fato viveram confortavelmente à lei natural, antes da lei de Moisés, puderam salvar-se, era mister admitir o mesmo em relação aos sábios das nações em cujo meio os apóstolos não pregaram o cristianismo. Ora, a pregação de Cristo não chegara à China. Entretanto, a religião chinesa é mais pura que a dos gregos, dos romanos ou dos egípcios, pois não recorre aos prodígios e, desde tempos imemoriais, os chineses adoraram um só Deus. Confúcio, o Sócrates da China, acreditava na existência de um Deus único e adotara como princípio o próprio princípio da lei natural: jamais fazer a outrem o que não gostaríamos que nos fizessem. Portanto, é possível a salvação de Confúcio e dos chineses. A ideia central era a da bondade da natureza que tende a destruir a crença no pecado original, na necessidade da Redenção através de Cristo, na necessidade da Graça, fundamentos do cristianismo.

Propagou-se também a ideia de que todos os povos da América, da Ásia, das terras austrais, não descendiam de Adão, que a Bíblia continha, pois, apenas a história de um povo, o povo judeu. A Bíblia não tinha o valor eminente que a Igreja lhe atribuía.

[...]

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 339-340. (História geral das civilizações, 9).

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Os libertinos. A libertinagem de espírito. O ceticismo dos libertinos (Parte 2)

A surpresa, Jean-Antoine Watteau

O movimento cético contribuía para distanciar do cristianismo baseado em razões. O cristianismo dos libertinos pretende de um lado que, remontando aos objetos criados ao Criador, é possível provar a existência de Deus, de outro, que uma crítica histórica racional estabelece os fatos históricos de onde podemos inferir a divindade de Cristo. Ora, os libertinos eram todos pirrônicos, céticos absolutos: La Mothe Le Vayer dizia, em 1630, no diálogo de Orasius Tubero:

Toda a nossa vida, pensando bem, não passa de uma fábula; nosso conhecimento, de uma asneira, nossas certezas, de contos; em suma, todo este mundo não passa de uma farsa e de uma comédia perpétua.

Movidos pela sensibilidade barroca, ampliaram e desenvolveram a lição dos grandes italianos da Renascença e de Montaigne. [...]

Desse materialismo resultavam inúmeras consequências. Primeiro, a impossibilidade de saber algo a respeito da essência das coisas. Nossos sentidos só nos permitem alcançar uma verdade relativa, o que nos basta para a prática. A natureza real das coisas escapa-nos. O que valem as especulações acerca da natureza do Ser e da natureza de Deus? O que valem mesmo as provas da existência de Deus? O que vale esta prova da existência de Deus pelo consentimento universal dos povos que possuiriam. todos, a ideia inata de Deus? Não possuímos ideia inata, tudo vem dos sentidos e a imaginação combina os dados dos sentidos de formas tão diversas que muita gente talvez não tenha ideia alguma de Deus. Para Gassendi, tal ideia de Deus, com suas noções de infinito, eternidade, perfeição, onipotência e bondade suprema, não é - porquanto todas as ideias gerais procedem dos sentidos - senão a extensão e o engrandecimento das perfeições constatadas na espécie humana. Deus é o Homem desenvolvido ao extremo.

Provinha daí a desconfiança no tocante ao testemunho histórico. Como fiar-se em testemunhas cujas ideias se formam de modo a permitir tais possibilidades de erro? [...] Em geral, os fundadores e os chefes de Império apresentam-se como órgãos de uma divindade a fim de formar sua autoridade. Os monges da Tebaida inventava, falsas histórias de combates com o Diabo para conquistar renome e subtrair dinheiro dos ingênuos. A conversão de Clóvis, a vocação de Joana d'Arc, a inspiração de Maomé por Gabriel e a de Moisés por Deus constituem subterfúgios políticos. Mas no que se transformam então os testemunhos evangélicos e o cristianismo?

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 337-339. (História geral das civilizações, 9).

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Os libertinos. Condições políticas da libertinagem (Parte 1)

Prazeres do amor, Jean-Antoine Watteau

Grupos de homens, unidos sob a mesma denominação de libertinos, apresentavam como característica comum a rejeição do cristianismo, na teoria e na prática, e a adoção de uma vida pagã ou de uma concepção pagã da vida. Continuavam os críticos racionalistas do Renascimento, Pomponazzi, Maquiavel e o príncipe dos céticos, Montaigne. Como eles, utilizavam os Antigos. A Antiguidade integral passara ao ensino. Um jovem encontrava nos autores latinos e gregos tudo o que era necessário à vida: moldava uma alma antiga e anticristã.

Tais homens afastavam-se do cristianismo em primeiro lugar devido aos maus costumes do clero, que os Estados recrutavam por motivos políticos: padres ignorantes que haviam esquecido até a fórmula da absolvição, freiras devassas, abadessas mundanas, prelados de vida pouco edificante, abades que eram crianças de peito, cônegos escolares, padres bêbados [...]. Um reformador dizia: "O que se faz de pior... passa-se entre os eclesiásticos". As controvérsias religiosas, as discussões de teólogos, ortodoxos e jansenistas, gomaristas e arminianos, trazidas a público e desprovidas amiúde de elementar caridade, enfastiavam. As guerras de religião desconsideravam e aviltavam a religião. Em nome de Cristo e do Evangelho, os homens injuriavam-se, caluniavam-se, semeavam a imundície em panfletos rancorosos, descomedidos, escandalosos, traíam, assassinavam. Acabava-se duvidando de que houvesse uma verdade religiosa e aos poucos insinuava-se a ideia de que a religião talvez fosse nefasta. As guerras civis e estrangeiras desbridavam a violência dos instintos e destruíam o respeito à religião. No curso das campanhas, as igrejas eram invadidas, os ornamentos roubados, os tabernáculos quebrados, os cibórios arrebatados, as hóstias profanadas. A vida dos acampamentos favorecia a vida dos sentidos, o abandono aos impulsos da carne, as pilhagens, as rapinas, os estupros. a galanteria, a bebida; afastava os homens de uma religião da pureza, que procurava derivar todos os poderes do indivíduo para o puro amor a Deus, para a santidade perfeita e imaculada.

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 336-337. (História geral das civilizações, 9).

domingo, 20 de novembro de 2016

"Mais doce que o amor das mulheres"

Talvez a narração mais popular do Antigo Testamento seja a história de David e Golias, o triunfo do pequeno pastor sobre o aguerrido gigante filisteu que definiu a vitória de Israel na batalha de Terebinto. Segundo conta o Livro de Samuel, depois desta façanha, o rei Saul cumulou David de honras e convidou-o a residir no palácio. Ali, o heróico pastor e o filho primogénito do monarca estabeleceram uma íntima relação de adolescentes, que o autor bíblico anuncia sem pudor no título do capítulo 18 como "Amizade mais do que fraternal" entre David e Jónatas. E diz assim na Bíblia...

"Jónatas fez um pacto com David, porque o amava com toda a sua alma e tirou o manto que levava, e deu-o a David, assim como os seus arreios militares, o seu arco, a sua espada e o seu cinturão. David ia combater onde Saul o enviava e saía-se sempre bem." 
(1 Samuel 18: 4-5)

Os êxitos do novo capitão começaram a provocar os receios de Saul, que invejava os aplausos com que o povo aclamava David, o qual, além disso, se tinha relacionado sexualmente com o filho e brilhava em todas as batalhas como um autêntico protegido de Javé. Claro que nada era mais doloroso do que sentir-se postergado no favor do Deus de Israel. Claro que Jónatas não partilhava a opinião do pai e, sempre que podia, atirava-lhe à cara o seu ressentimento para com o belo e glorioso oficial. Porém, Saul devia ser um homem difícil e várias vezes chegou a ameaçar de morte David com a sua lança. Nessas ocasiões, o jovem tangia a harpa, imperturbável, e tocava doces melodias que acalmavam a fúria do monarca.

Saul chegou a convencer-se que David estava protegido por Javé e não se atrevia a intervir pessoalmente. Urdiu então o truque de oferecer-lhe em casamento a sua filha mais velha, Merob, para quem sendo genro do rei, pudesse comandar o exército de Israel. "Não lhe quero pôr as mãos", dizia segundo a Bíblia, "que o matem as dos Filisteus." Mas David, que pressentiu, respondeu-lhe humildemente: "Quem sou eu e o que é a minha vida ou a casa de meu pai, para que eu me torne genro do rei?" Se essa resposta provocou um suspiro de alívio no coração de Jónatas, foi porque não contava com a teimosia de seu pai. Merob acabou por se casar com outro, enquanto Saul voltava à carga oferecendo a David a mão da sua segunda filha, a princesa Micol, que, segundo parece, estava profundamente apaixonada pelo nosso herói. Então, este respondeu aos mensageiros do rei: "Parece-vos coisa fácil ser genro de rei? Eu não preciso de nada e tenho poucos bens", desculpava-se por não ter dote para oferecer à princesa. Mas também não teve em conta a persistência de Saul.

David com a cabeça de Golias e dois soldados, Valentin de Boulogne. Depois de derrotar o gigantesco Golias, o jovem David viveu um intenso romance com Jónatas, filho do rei Saul.

Sempre através de emissários, o rei fez saber a David que um herói como ele não precisava de outro dote além da prova do seu valor; por exemplo, os prepúcios de cem filisteus abatidos em combate. O texto bíblico conta assim a reacção de David: "Quando os servos disseram a David as palavras que Saul tinha dito, agradou-lhe aquela condição para ser genro do rei. E David saiu com os que estavam sob o seu comando e matou cem filisteus, tirou-lhes os prepúcios e entregou-os ao rei (1 Samuel, 18: 26-27). Não é explicado qual foi o destino do tão extravagante dote de Micol, mas o casamento desta com David não acalmou a paixão de Jónatas nem o ódio de seu pai pelo novo príncipe de Israel: "Temia-o Saul cada vez mais e toda a sua vida foi inimigo de David". Pouco depois, o monarca decidiu cortar o mal pela raiz e encarregar-se de uma vez por todas do seu genro, mas Jónatas convenceu-o a não o fazer, enquanto prevenia David, que se foi refugiar em casa de Samuel.

O resto do primeiro livro de Samuel é um enorme e animado relato das peripécias do jovem David, constantemente ameaçado e perseguido pelo seu temível sogro. Contando também sempre com a amizade "mais que fraterna" de Jónatas. Quando Saul o foi buscar a casa de Samuel em Naiote de Ramá, David foge e vai encontrar-se com o seu amigo:

"Que crime cometi eu contra o teu pai, para que me persiga até à morte?
- Não, não será assim, não morrerás. O meu pai esconder-me-ia isso? Se não me esconde nada, nem grande nem pequeno, tudo me dá sempre a saber. Por que haveria de me ocultar isto? Isso não é verdade.
- O teu pai sabe muito bem que me amas e deve ter dito: que Jónatas não fique a saber para não sofrer, mas, por Deus e pela tua vida, estou a um passo da morte." 
(Samuel, 20: 1-3)

Jónatas mostrou-se convencido com o argumento de David e, com medo de perder o seu amado, estabeleceu com ele o pacto de o manter sempre informado das intenções de seu pai. No dia seguinte, cumpriu pela primeira vez esse compromisso, salvando David de uma armadilha organizada por Saul e despediu-se do amigo com estas palavras: "Vai em paz, já que jurámos um ao outro, em nome de Javém que ele estará entre ti e mim e entre a minha e a tua descendência para sempre."

Pouco depois, David visitou o sumo sacerdote Ajimelec, no templo de Nob, a quem pediu comida e armas para se defender. Ajimelec ofereceu-lhe alojamento e entregou-lhe a espada que Golias tinha utilizado no célebre combate do vale de Terebinto. Avisaram-nos então que o rei se aproximava com as suas hostes, mas David conseguiu escapar a tempo. Saul consolou-se da sua frustração degolando o sumo sacerdote e todos os servidores do templo.

Além de excluir David da corte, Saul obrigou Micol a casar-se com outro homem, um tal Palti de Galim, de quem não existem quaisquer outros registros. É provável que Jónatas tivesse ficado feliz com aquela separação forçada, porque dadas as circunstâncias, já há muito tempo que não o via. Porém, David rapidamente esqueceu aquela perda e casou com duas mulheres em vez de uma: a bela Abigail de Nabal e Ajinoim de Jezrael. O fugitivo e os seus homens vagueavam por todo o território de Israel e de Judá, escapando ao seu infatigável perseguidor. Por duas vezes, David teve a vida de Saul nas suas mãos e de ambas as vezes impediu que os seus homens matassem o rei, por este ser "o ungido de Deus" (talvez tenha tido em conta que se tratava do pai do seu amigo). Mas os Filisteus não se preocupavam com essas coisas e, depois de derrotarem os Hebreus na batalha do monte Gelboé, executaram Jónatas e os seus dois irmãos. Quando se dispunham a fazer o mesmo com Saul, este matou-se, lançando-se sobre a lâmina da sua espada.

Quando soube da morte de Saul e de Jónatas, David cantou uma bela elegia em homenagem aos ilustres defuntos, cujos últimos versos dizem assim:

"Como sofro por ti, Jónatas, meu irmão!
Como eu te queria bem!
Para mim, o teu amor era muito doce,
Mais do que o amor das mulheres!" 
(2 Samuel: 26)

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 80-84.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O corpo na Grécia antiga

Tumba do mergulhador, Paestum, c. 470 a.C.  Artista desconhecido. 
Foto: Dave & Margie Hill / Kleerup

"A Grécia civilizada fez do seu corpo exposto um objeto de admiração. Para o antigo habitante de Atenas, o ato de exibir-se confirmava a sua dignidade de cidadão. A democracia ateniense dava à liberdade de pensamento a mesma ênfase atribuída à nudez. O desnudamento coletivo a que se impunham - algo que hoje poderíamos chamar de 'compromisso másculo' - reforçava os laços de cidadania." SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 30.

O corpo humano era um dos temas de predileção da arte grega. O corpo masculino era geralmente representado nu. Já o corpo feminino, que conheceu algumas figurações nuas de influência oriental (como os marfins do século VIII a.C.), só foi retratado nu no século IV a.C. e na época helenística. Antes disso, já tinha sido representado com sugestivas vestes molhadas (como Calímaco, monumento das Nereidas) ou semiencoberta.

O nu, geralmente um corpo jovem, apareceu na época arcaica e no começo da época clássica. Durante a época clássica, nota-se uma tendência ao rejuvenescimento de alguns deuses (Apolo, Dioniso, Hermes) e a tendência a uma sutileza nas formas, certa androginia nas estátuas de hermafroditas. Inversamente, os nus femininos representados nos vasos tinham, no século V a.C., uma morfologia principalmente masculina, talvez pelo desconhecimento do corpo feminino, que não se mostrava em público, ao contrário do masculino.

A pintura de vasos também era uma fonte importante para a representação do corpo. Alguns dos vasos usados nos banquetes eram decorados com cenas de relações sexuais diversas, que podiam ser divididas em dois grupos: cenas elegantes, com trocas de olhares, e cenas cruas, nas quais se expressava uma relação de dominação entre um homem pertencente ao mundo dos senhores e um ser de estatuto servil, apresentado como simples objeto funcional. (Anne Jacquemin, professora da Universidade Marc Bloch, Estrasburgo)

In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 1: antiguidade. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 17-19.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A grande odalisca

A grande odalisca, Jean-Auguste-Dominique Ingres, 1814
 
Esta pintura foi encomendada pela rainha Carolina de Nápoles, irmã de Napoleão. Originalmente, ela deveria compor um par com outro nu de Jean-Auguste-Dominique Ingres, mas o regime de Bonaparte desmoronou. Carolina fugiu do país e o segundo nu, uma pessoa dormindo, foi destruído. Ingres era leal ao estilo neoclássico: a atmosfera  da obra é serena e ele presta mais atenção aos contornos do que a cor. A grande odalisca foi pintada em Roma, durante um período em que o artista estava desfrutando de uma reputação muito melhor na Itália do que na França. Em 1819, quando exibida no Salão de Paris, a obra teve uma recepção ambígua, em parte porque as distorções da imagem feminina sugeriam uma influência do maneirismo. Ainda que a pose da odalisca, ou concubina, se pareça com o retrato de Madame Récamier (1800), de Jacques-Louis David, Ingres retrata sua modelo como uma mulher de um harém, adotando, assim, o gosto temático pelo orientalismo, que foi popular entre os artistas românticos. Apesar dessa afinidade, Ingres se manteve contrário aos ideais românticos até morrer.

Iain Zaczek. A grande odalisca. In: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 264.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Cleópatra (69-30 a.C.)

Antônio e Cleópatra, Sir. Lawrence Alma-Tadema. Um casal unido por um amor apaixonante


Filha do rei egípcio Ptolomeu Aulete, nasceu no ano 69 a.C.

O trono do Egito havia sido legado a Cleópatra e seu irmão mais velho, porém com a condição de que eles se casassem. Desejando governar sozinho, Ptolomeu Dionísio exilou a irmã.

Quando César entrou em Alexandria, depois de Farsália, Potium, ministro do Egito, tratou-o com desprezo, sublevando contra ele as tropas aguerridas do Egito e a população da própria cidade.

Em represália, César trouxe Cleópatra para a cidade, introduzindo-a secretamente no palácio. Ptolomeu Dionísio não teve outra alternativa senão a de reconciliar-se com a irmã.

Novamente, porém, o rei egípcio revolta-se contra César, morrendo afogado num combate. Cleópatra sobe então ao trono, casando com seu irmão mais jovem.

César ficou ainda alguns meses no Egito. Quando voltou a Roma, mandou vir a rainha, cuja estátua, feita na época, foi colocada no templo de Vênus.

Com a morte de César, couberam a Antônio os negócios do Oriente. Cleópatra seduziu-o, tornando-o instrumento de suas ambições. Quando Roma o chamou, tomado de paixão, Antônio recusou-se a regressar. Otávio volta-se contra o Egito, e Cleópatra foge seguida por Antônio. Depois da batalha de Accio, retornaram à África. Tentam negociar, porém Cleópatra trai Antônio. Otávio marcha sobre o Egito e a bela rainha entrega-lhe Alexandria, fazendo chegar a falsa notícia de sua morte a Antônio, que se mata.

Depois ela tenta seduzir Otávio, mas nada consegue.

Não querendo servir de ornamento ao triunfo de Otávio, Cleópatra suicida-se com seus hábitos reais, a 15 de agosto de 30 a.C.

CARVALHO, Delgado de. História Geral: Antiguidade. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 267.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A sexualidade a bordo das naus lusitanas

Nu deitado, Amedeo Modigliani


Em meio a um ambiente conturbado, repleto de privações, a sexualidade a bordo das naus lusitanas era encarada como um tabu e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, com uma liberdade quase nunca observada no reino.

Enquanto em terra havia um tabu com relação à nudez do corpo, entre os homens do mar, habituados à nudez dos nativos das terras descobertas e à sua forma de encarar o sexo mais livremente, a sexualidade era quase libertina.

Nos navios. o ato sexual era quase sempre uma prática coletiva, com a ausência de parceiros fixos e o compartilhamento de objetos sexuais. Práticas consideradas mesmo em nossos dias promíscuas eram corriqueiras nas embarcações. Por vezes, as mulheres disponíveis eram duplamente penetradas, enquanto forçadas a praticar sexo oral e a manusearem, em cada uma das mãos, as genitálias de outros homens, servindo, sexualmente, cinco deles, ao mesmo tempo. Ao redor, outros se masturbavam ou praticavam sexo entre si, aguardando sua vez de participar da bacanal.

Quando não havia mulheres a bordo, os pobres grumetes terminavam servindo sexualmente à marujada, integrados ao sexo grupal. Se a Inquisição caçava os adeptos do homossexualismo em terra, no mar procurava ser mais branda, uma vez que a falta de mulheres a bordo justificava, a seus olhos, os atos de sodomia.

Em terra firme, a Inquisição em Portugal queimava os implicados em atos homossexuais, mas apenas quando reincidentes. Assim, estrangeiros diziam que a Inquisição em Portugal era muito branda se comparada com a atuante na França, na Suíça e na Alemanha, onde se queimavam sodomitas sem remissão.

De fato, muitos eclesiásticos portugueses defendiam a isenção de penas para os praticantes de sodomia, ou pelo menos, que eles não tivessem castigo tão severo. A motivação da defesa era conhecida de todos e tema de piada entre os estrangeiros: os religiosos lusitanos, mesmo os inquisidores, tinham fama de homossexuais ativos. Em certas casas eclesiásticas, onde os jovens aprendiam as ciências e a piedade, eram também iniciados em práticas sexuais homoeróticas, chamadas "relaxações", inspiradas pelo modelo grego que pregava que o verdadeiro amor só podia ser desenvolvido entre pessoas do mesmo sexo, com um homem mais velho conduzindo um jovem pelos prazeres da carne.

Parece que, atendendo aos apelos dos religiosos, sob o disfarce de benevolência que procurava ocultar a natureza homossexual da motivação da piedade, no além-mar os estatutos da Inquisição portuguesa eram mais brandos, embora não se possa negar que atendessem a uma necessidade social, ou seja, viabilizar a aventura marítima portuguesa num contexto de grande disparidade numérica entre homens e mulheres a bordo.

A Inquisição de Goa, por exemplo, recomendava que se evitasse a pena pública para a sodomia, imputando apenas uma penitência oculta, condenando secretamente os praticantes reincidentes, quando pegos em flagrante, ou degredo.

A raridade de mulheres nos navios levava a maioria dos embarcados a satisfazer seu desejo sexual com outros homens. Tais relações, muitas vezes, realizavam-se pela força bruta (posse forçada do corpo dos mais fracos) ou pelo peso das hierarquias, que obrigava os mais humildes a satisfazer as vontades dos seus superiores.

Dentro desse contexto, os grumetes, na hierarquia abaixo dos marinheiros, eram muito visados, a despeito de serem crianças entre 9 e 16 anos. Dada a fragilidade infantil, incapaz de conter os assédios, ou em troca de proteção de um adulto ou de um grupo de adultos, os grumetes eram obrigados a abandonar precocemente, a inocência infantil, entregando-se à sodomia. Quando tentavam resistir, eram estuprados com violência, e, por medo ou vergonha, dificilmente se queixavam aos oficiais, até porque, muitas vezes, eram os próprios oficiais que permitiam ou praticavam tal violência.

Em suma, imperava a lei e a moral do mais forte.

Os marujos eram gente de má fama, tidos como adúlteros, alcoviteiros, amantes de prostitutas e ladrões, capazes de acutilar e matar por dinheiro. A reputação dos soldados não era muito melhor, acrescida da impressão de que não guardavam grande respeito ou obediência com relação aos oficiais superiores. Já os passageiros eram em sua maioria miseráveis, descalços, famintos e desarmados, tendo, portanto, muito pouco a perder. Esse conjunto, nas condições precárias de vida das naus, era capaz de dar origem a criminosos da pior espécie, elementos responsáveis por inúmeras violências a bordo.

O próprio cotidiano, repetitivo, empurrava os tripulantes e passageiros de má índole para a caça de parceiros sexuais como um meio de ver o tempo passar rápido.

O mesmo tipo de sexualidade observada na Idade Média entre as corporações de ofício, quando dividir um parceiro sexual entre os companheiros simbolizava o estreitamento dos laços de amizade e camaradagem, terminou sendo adotado a bordo das embarcações portuguesas do início da Idade Moderna.

A prática sexual do estupro coletivo de uma mulher ou de um garoto por grupos de marinheiros ou soldados não era execrável na época sendo dificilmente punida pela autoridades de dentro e mesmo de fora dos navios.

[...] era comum os marinheiros embarcarem prostitutas clandestinas, enganando-as ou forçando-as a subir a bordo com ameaças e violência. A presença de meretrizes nos navios, muitas vezes, servia para acalmar os ânimos dos homens. Sabendo disso, alguns capitães optavam por fazer com que essas clandestinas pagassem sua passagem com trabalho sexual.

Entretanto, embora as prostitutas a bordo desviassem um pouco a atenção dos homens dos garotos, não impediam o assédio constante às escassas "mulheres de bem", pois, além de o número de mulheres para cada homem estar sempre longe do suficiente, o risco de contrair doenças venéreas, como em terra, criava uma certa aversão às profissionais do sexo. De fato, o contato com essas mulheres representava um grande perigo, já que raramente deixava de premiar os incautos com "lembranças de Vênus", suficientes para amargurar e causar forte arrependimento.

PESTANA, Fábio. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 104-106.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

As mulheres embarcadas nas naus lusitanas

Nu feminino, Amedeo Modigliani


Em meio a uma população quase que exclusivamente masculina, quando imperava uma proporção de mais de cinquenta homens para cada mulher, o gênero feminino se tornava um foco de tensão a bordo. A ideia de violentar as órfãs, esposas e noivas em viagem instigava a imaginação dos marujos, que sempre que possível chegavam às vias de fato.

Percebendo isso, a Coroa tentou não só desencorajar a ida de portuguesas para a Índia como também legislou especificamente contra o embarque de raparigas solteiras e de mulheres desacompanhadas de um membro masculino da família. No entanto, não conseguiu impedir a presença de mulheres a bordo, pois a lei era contornada com facilidade e muita frequência.

Além disso, nada obstava que um chefe de família e a esposa pudessem levar consigo não só filhas como também sobrinhas e primas. Havia ainda moças que, buscando marido nas colônias, faziam-se passar por familiar ou criada de um chefe de família complacente.

Apesar da preocupação da Coroa em "preservar a honra" das moças solteiras, não se criou qualquer legislação para proteger as mulheres casadas ou as celibatárias (viúvas ou freiras) das investidas masculinas. Tampouco existia qualquer tipo de proteção oficial à honra das órfãs do rei, originárias de Porto e Lisboa, enviadas para as colônias pela própria Coroa para casar-se com homens da baixa nobreza em além-mar.

As únicas proteções efetivas contra o assédio sexual eram a alta condição social da passageira ou sua faixa etária. Em concordância com o costume observado na Idade Média, a menos que a vítima fosse menor de 14 anos, o estupro de mulheres de baixa extração nunca era punido por lei. Além de os violadores não serem castigados, as vítimas acabavam depreciadas no mercado matrimonial e várias delas, entregues pelas autoridades a um bordel público, já que, acreditava-se, não encontrariam mais quem as quisesse como esposa. Quando as vítimas pertenciam a um estamento mais elevado, apesar de sujeitas a igual depreciação social, os violadores, quando identificados, recebiam punição exemplar. Portanto, o simples fato de uma mulher pertencer à nobreza inibia o assédio dos que temiam os castigos da justiça.

No pesadelo dos navios, as ciganas, por serem as mais indefesas, eram as vítimas preferenciais, embora, de fato, e conforme aumentavam as privações, os marinheiros iletrados não guardavam respeito por mulher alguma.

A cobiça pelo corpo feminino não poupava nem mesmo as religiosas embarcadas. Em certa ocasião. uma freira precisou ser vestida de rapaz para evitar atrair atenções indesejáveis. Mulheres acompanhadas pelo marido tampouco estavam isentas. Em 1601. mulher e filhos de Ventura da Mota, meirinho-geral da frota da Índia, foram confinados para sua própria segurança em uma câmara trancada a cadeado pelo capitão, que ordenou que ninguém se aproximasse mais de cinco palmos da porta.

As órfãs do rei eram vítimas constantes de violações coletivas nos navios. Eram garotas entre 14 e 17 anos. e atraíam a atenção dos homens do mar com o frescor de sua tenra idade. Grupos de marinheiros mal-intencionados espreitavam essas meninas por algum tempo, até que surgisse a oportunidade ideal de burlar a vigilância dos religiosos que as guardavam para, então, atacá-las. À vítima só restava calar. Queixando-se, a pobre coitada poderia ser repudiada pelo futuro marido assim que chegasse à colônia e enviada de volta ao reino para ser metida em um bordel.

O fato de os estupros serem comumente praticados não por indivíduos isolados, mas, sim, por grupos de homens tornava muito difícil a identificação dos responsáveis. Se isso era verdade em terra, mais ainda nos navios, onde o anonimato da violência somava-se à "lei do silêncio" ou à cumplicidade entre marujos e soldados, criando a certeza de impunidade, que, por sua vez, perpetuava a prática.

Os marinheiros pareciam ter uma libido insaciável. Os estupros tornaram-se tão habituais que alguns capitães chegaram a proibir a presença de mulheres a bordo. Em certa ocasião, após aprisionar uma embarcação pirata que carregava donzelas para serem vendidas como escravas, em vez de fazê-las passar ao seu navio e, em seguida, queimar o dos piratas, como era usual, o capitão optou por deixar as mulheres no barco inimigo. junto com dois padres e alguns soldados de confiança, forçando um pequeno grupo de marinheiros a conduzi-lo até um porto, onde pudesse fazê-las desembarcar.

PESTANA, Fábio. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 106-107.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Robin Hood: a rainha dos bosques de Sherwood

João Pequeno e Robin Hood, Frank Godwin

É Primavera nos bosques de Sherwood. As aves cantam e esquilos correm pelos ramos das velhas árvores. Pelo caminho aberto na floresta avança o anafado frei Tuck desfrutando o ar puro e o sol quente que espreita pela alta ramagem. De repente, ouvem-se alegres risadas e gemidos que vêm duma moita próxima. O frade levanta um pouco o seu hábito, avança em bicos dos pés e, com um gesto rápido, afasta os arbustos, que descobrem um par de robustos arqueiros regozijando-se com as calças pelos tornozelos. Robin dos Bosques e João Pequeno, literalmente surpreendidos, interrompem o seu jogo e olham frei Tuck com cara de caso.

"Então rapazes! - o clérigo repreende-os carinhosamente. - Deixem de travessuras, que daqui a bocado não têm força para puxar o arco..."

A cena anterior é imaginária, mas o cenário e as personagens pertencem à conhecida lenda inglesa de Robin dos Bosques. E até pode ser credível a circunstância narrada, de acordo com os últimos documentos encontrados sobre a figura e as façanhas do pitoresco herói. Como todos lemos em criança ou vimos nos inúmeros filmes dedicados às suas aventuras, Robin dos Bosques era um jovem nobre da Inglaterra do século XII, corajoso protector dos desprotegidos, leal súbdito do nosso conhecido Ricardo Coração de Leão e ardente amante de uma jovem chamada maid (donzela) Mariana. Sabemos já que, quando o rei teve de partir para a Terceira Cruzada, ficou como regente o seu irmão João Sem Terra que, por necessidade da lenda, é pintado como um tirano cruel sem escrúpulos, opressor do povo e presumível usurpador do trono. Robin refugia-se no bosque de Sherwood com um punhado de arqueiros determinados a dedicar-se a atacar os odiados cobradores de impostos, a roubar os ricos para dar aos pobres, a expor ao ridículo João e a seduzir a bela Mariana com as suas proezas. Em suma, um puro protótipo de líder viril, modelo de galã fantasiado por muitas gerações de jovens românticas.

Já se disse que os historiadores britânicos gostam de demolir mitos da sua própria história, sobretudo quando a derrocada é consequência de assuntos menos santos, que escandalizam o seu rígido establishment. Robin dos Bosques teve o azar de cair nas mãos de Stephen Knight, professor de história da literatura na Universidade de Cardiff. Este senhor realizou um profundo estudo das antigas canções e narrativas sobre o popular arqueiro emplumado e chegou à conclusão que a este interessavam muito mais os músculos atraentes dos seus companheiros João Pequeno ou Will Scarlet, que os encantos femininos da donzela Mariana. ão inquietante afirmação, expressada recentemente numa douta e controversa conferência do autor na Universidade de Glamergan é apoiada por várias baladas do século XIV, primeiros registros escritos da história de Robin dos Bosques. Encontrou versos tão sugestivos como estes:

"Tinha Robin dos Bosques cerca de vinte anos
Quando conheceu João Pequeno;
Um agradável companheiro de viagem
Porque era um jovem alegre e robusto."

A balada não diz expressamente que ambos os jovens eram homossexuais, mas Knight vê nesses documentos claros indícios e ressonâncias homossexuais. "Robin dos Bosques e os seus companheiros viviam isolados numa comunidade exclusivamente masculina, sem participação feminina", explica o estudioso. "A balada contém abundante simbologia erótica e, se não chega a dizer abertamente que o herói era gay, deve-se ao clima moral da época." Segundo Knight, as árvores do bosque são um evidente símbolo fálico, assim como as flechas e as espadas. A isto poderíamos juntar a famosa cena em que João Pequeno e frei Tuck lutam empunhando compridas varas rígidas, em equilíbrio sobre... um grosso tronco que atravessa o rio!

Há também outros aspectos da lenda de Robin dos Bosques que Knight contradiz, baseando-se nas mesmas baladas. Descobriu, por exemplo, que a personagem não tinha origem na nobreza, mas em estratos sociais bastante mais baixos. Filho de um simples alabardeiro de origem campesina, o jovem Robin vagueava pelos bosques de Nottingham e do condado de Yorkshire, comandando uma pandilha de bandoleiros que assaltavam quem se arriscasse a passar por ali. Nunca lhe passou pela cabeça repartir os seus despojos de guerrilha com os pobres, embora tenha ficado famoso pela astúcia e truques para enganar a autoridade.

Tão-pouco parece ser certo que Robin utilizasse a sua astúcia para visitar às escondidas a donzela Mariana, porque nem essa nem qualquer outra donzela são mencionadas nessas fontes como eventuais noivas do herói. Knight sugere que esta personagem feminina foi adicionada no século XVI para dotar a lenda de romantismo heterossexual. O investigador também questiona a relação histórica entre o arqueiro e os reis Ricardo e João, já que se situa a existência de Robin dos Bosques entre um e dois séculos mais tarde. O seu colega Barry Dobson, professor de história medieval em Cambridge, concorda com Knight acerca de as baladas revelarem um Robin dos Bosques pelo menos ambíguo e acrescenta que entre os séculos XII e XIII se fez sentir em Inglaterra maior opressão sobre os homossexuais, muitos dos quais passaram a viver fora da lei em bandos clandestinos.

Apesar de tudo, os investigadores revisionistas não questionaram a existência do ladrão dos bosques, embora assinalem que as baladas sobre as suas aventuras foram enriquecidas por histórias aproveitadas de outras personagens semelhantes ou da própria imaginação dos trovadores, como no caso da inexistente donzela Mariana.

As afirmações de Knight e Dobson não foram muito bem recebidas por quem está actualmente relacionado com a personagem. A secretária da Robin Hood Society, Mary Chamberlain, acusou os investigadores de prejudicarem uma figura admirada em todo o mundo. "As crianças adoram brincar ao Robin dos Bosques", manifestou, "e essas declarações podem provocar muito dano".

Por sua partem o dirigente gay Peter Tatchell afirmou que Robin dos Bosques já estava há demasiado tempo "no armário". "Já é altura", disse, "de as lições escolares reconhecerem a contribuição dos homossexuais na história."

Ainda que o senhor Tatchell tenha muita razão, a contribuição de Robin dos Bosques para a história, independentemente de ser gay ou não, parece discutível. Se João Sem Terra não chegou a usurpar o trono, não foi por causa dos bandos de ladrões dos bosques, mas do ineficaz apoio de Filipe Augusto, da negação do imperador alemão em exigir a abdicação de Ricardo e de outras circunstâncias, entre elas a atitude decidida da rainha-mãe.

O certo é que, se a virilidade de Robin dos Bosques tivesse sido colocada em causa desde o início, esta personagem não teria protagonizado a lenda folclórica inglesa mais emblemática depois da saga de Artur nem reforçado a mítica aura de Ricardo Coração de Leão. Ambos são duas faces, uma guerreira e outra galante, da tradição nacionalista britânica. Esse sentimento de superioridade foi fundamental para justificar a impunidade que se outorgou a si mesma a "pérfida Albion" nas suas correrias e rapinas por todo o mundo.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 110-114.

sábado, 5 de novembro de 2016

A condição da mulher no mundo antigo

Duas mulheres romanas. Afresco, século I AD, Artistas desconhecidos

* Grécia. A condição da mulher na Grécia variava de uma cidade a outra e de acordo com a época. Na época homérica, a mulher, apesar de submissa ao poder do homem (pai, marido, irmão ou tutor), gozava de certa liberdade de movimento e grande consideração social. Sua condição mudou quando o regime da cidade se afirmou.

Na época clássica, em Atenas, as mulheres não participavam da vida social, exceto dos funerais e cultos públicos. As jovens se casavam, aos 14 anos, com o escolhido pelo pai, e este tinha poderes para romper a união. O papel da mulher limitava-se essencialmente a procriar, e a educação dos filhos, passada a infância, era assunto para os homens.

Do ponto de vista patrimonial,a inferioridade da mulher era evidente: ela só recebia parte do patrimônio paterno como dote (que ficava com o marido) e não tinha direito à herança do pai. No mundo dório (Esparta, Gortina), a mulher tinha mais liberdade. Dispunha de certa autoridade sobre os filhos e sua condição jurídica não era objeto de discriminação. (Eva Cantarella)

* Roma. O direito romano considerava as mulheres em relação a sua filiação e ao direito de sucessão dos cidadãos. Do ponto de vista patrimonial, as mulheres tinham direitos importantes: filhas e irmãs podiam herdar tanto quanto filhos e irmãos, exceto quando existisse um testamento decidindo de outra forma.

Desde a República, mas sobretudo a partir de Augusto, duas categorias de mulheres foram distinguidas, segundo uma demarcação ao mesmo tempo social e moral. As que eram destinadas a um casamento legítimo ou concubinato honroso (escravas alforriadas com seus patrões) e as que eram acessíveis a todos os homens. (Joëlle Beaucamp)

* Egito. A mitologia é a melhor demonstração do equilíbrio masculino-feminino no pensamento egípcio, com seus deuses e deusas. No mundo real, o máximo de status que uma mulher podia atingir era a realeza. O rei era rodeado por mulheres: amas-de-leite, escançãs [funcionários que serviam vinho ao rei] ou concubinas.

No mundo sacerdotal, as mulheres exerciam diversas funções. Muitos centros de culto possuíam um clero feminino importante (da simples cantora à superior do harém divino), como em Karnak. (Agnès Cabrol)

* Mesopotâmia. Mesmo nascendo livre, a mulher tinha sempre um proprietário. Primeiro, o pai. Depois, o marido ou seu deus, se entrasse para a religião. Algumas rainhas tiveram um papel político importante, assumindo o poder interinamente quando o rei partia em campanhas militares, ou assegurando a sucessão do trono no caso de morte do soberano. A mulher tinha acesso à cultura, e chegaram a existir mulheres médicas ou escribas. Mesmo ocupando a mais baixa escala social, a mulher escrava podia escapar da servidão caso se tornasse concubina. (André Finet)

In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 1: antiguidade. Rio de Janeiro, Duetto, 2009. p. 23.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Família e sexualidade na sociedade primitiva

[...] Ao se tornar dependente da carne, o Homo erectus se transformou num parasita das manadas desse jogo - e, portanto, precisava segui-las ou explorar novos territórios onde procurá-las - e era mais provável se estabelecer e se multiplicar em alguns locais do que em outros. Assim, foram estabelecidas as bases de moradia. [...]

A família que vivia na base de moradia também se desenvolvia. A existência desta base já tornou mais provável que a futura família humana fosse muito diferente das famílias animais. Isto ficou mais evidente quando os antecessores do Homo sapiens se tornaram maiores. Por exemplo, cabeças maiores, necessárias para acomodar cérebros maiores, significavam que as crianças seriam maiores antes do nascimento e isto se refletia em mudanças na pelve feminina que permitiram o nascimento de bebês com crânios maiores e também foi necessário um período mais longo de crescimento depois do nascimento para que as crianças amadurecessem. Nenhuma mudança fisiológica na fêmea podia fornecer aos fetos acomodação que os protegesse até a maturidade física. Em consequência, as crianças humanas - diferentes da maioria dos mamíferos, cujos filhotes amadurecem em meses - necessitam de cuidados maternos até bem depois do nascimento. Uma infância prolongada, dependência e apoio às crianças pela família e pela sociedade durante a imaturidade significava que as famílias humanas se desenvolveram de forma muito diferente das famílias dos outros animais. Em parte isto era resultado de uma seleção genética: grandes ninhadas deixaram de ser a maneira pela qual se assegurava a sobrevivência das espécies. Em vez disso, as sociedades humanas aprenderam a dar atenção maior e mais demorada à proteção, à alimentação e ao treinamento dos seus jovens [...]. Apareceram diferenças mais agudas entre os padrões de vida de machos e fêmeas. As mães hominídeas eram muito mais tolhidas do que as mães de outros primatas e os pais passaram a se envolver mais na provisão de comida por meio da caça, o que demandava uma atividade árdua e prolongada da qual as fêmeas não podiam participar facilmente.


Idade da Pedra: o festim, Viktor M. Vasnetsov

Outro resultado da infância prolongada foi que o aprendizado e a memória se tornaram cada vez mais importantes. Com o Homo erectus parece que ultrapassamos outra etapa. O aprendizado consciente e a reflexão sobre o meio ambiente substituíram de alguma forma a programação genética dos antecessores da humanidade. Em algum lugar [...] aconteceu uma mudança, onde a tradição e a cultura - as coisas que os membros de uma comunidade aprendem um dos outros - assumem o lugar da herança fisiológica como fator de seleção evolucionária. É óbvio que a herança fisiológica ainda permanece muito importante. Por exemplo, é claro que importou muito para a futura forma da sociedade humana que um grupo genético particular há muito tempo ainda tenha dado à nossa espécie uma característica sexual única. Entre todos os outros mamíferos, tanto a atração sexual exercida pela fêmea sobre o macho quanto a sua fertilidade restringiam-se a certos períodos. Diz-se que nestas épocas os animais estão "no cio" e nessa condição as suas vidas ficam muito desintegradas. Se precisassem tomar conta de filhos, com certeza não poderiam continuar a alimentá-los. As fêmeas humanas não funcionam assim, e isto é muito importante. Se fossem como os outros animais, os filhotes, de amadurecimento vagaroso, teriam sido negligenciados na infância e dificilmente sobreviveriam. Pode ter levado um milhão de anos mais ou menos para surgir um grupo genético com características sexuais que dispensassem o "estro", como se diz, mas quando isto aconteceu foram enormes as consequências para o futuro desenvolvimento da humanidade, o que afetou a nossa maneira de viver muito mais do que admitimos. O fato de as fêmeas humanas atraírem continuamente os machos humanos (e não apenas em períodos em que cada sexo era regido por mecanismos automáticos de atração) deve ter transformado a escolha individual num fator muito mais importante no acasalamento. É o começo de uma estrada muito longa e obscura que leva a noções posteriores de amor sexual. Junto com a infância mais longa e a menor dependência, possibilitadas por melhor coleta de alimentos, também aponta para uma unidade familiar humana mais estável e mais duradoura - pai, mãe e prole - que permanecem juntos e constituem uma verdadeira comunidade. [...]

[...] A cultura e a tradição pouco a pouco assumiram o lugar da mutação genética e da seleção natural como fonte primária de mudança entre os hominídeos - ou, em outras palavras, o que era aprendido estava se tornando tão importante para a sobrevivência quanto o que era biologicamente herdado. Os grupos com melhor "memória" de meios eficientes de fazer coisas e com crescente poder de refletir sobre elas levariam adiante a evolução humana com mais rapidez. [...]

[...] Tudo o que podemos dizer é que a vida do Homo erectus se parece mais com a dos humanos do que a dos pré-humanos. Fisicamente, o cérebro da criatura era de uma ordem de magnitude comparável à nossa, mesmo que o seu crânio fosse ligeiramente diferente na forma. O Homo erectus fabricou ferramentas de diferentes estilos e em diferentes locais, construiu abrigos, tomou posse de refúgios naturais explorando o fogo e dali saiu para caçar e coletar comida. Fez isto em grupos, mostrando alguma disciplina, e foi capaz de transmitir ideias por meio da fala, fundou uma base de moradia e uma distinção entre as atividades de machos e de fêmeas. Pode ter havido outras especializações: portadores de fogo ou criaturas mais velhas cujas memórias os transformavam em "bancos de dados" das suas "sociedades", e que talvez tenham sido, até certo ponto, sustentados pelos outros.

[...] Quando o Homo sapiens evoluiu a partir de uma ou mais subespécies do Homo erectus, já estavam à sua disposição um novo tipo físico, grandes realizações e uma herança. Os indivíduos chegaram nus ao mundo, mas a humanidade não. Ela trouxe consigo do passado tudo o que a constitui.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 34-7.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Vida privada em Roma

Os textos literários e os registros arqueológicos, notadamente os descobertos em Pompeia e Herculano*, revelam aspectos interessantes e peculiares da cultura popular e da vida cotidiana da Roma antiga.

Casal nu na cama. Afresco na Casa del ristorante, Pompeia, ca. 62-79 AD. Artistas desconhecidos.

A ideia, tradicionalmente aceita, de que a cultura romana clássica pode ser considerada fundamento da cultura ocidental atual não se sustentaria se considerados os aspectos mais expressivos da vida privada. Desse ponto de vista, a sociedade romana era tão diferente das atuais sociedades ocidentais quanto o foram as sociedades ameríndias ou as extremo orientais.

O conhecimento da vida privada romana conduz à percepção de contrastes, que levam mais à descoberta do outro do que ao encontro das nossas origens. Um exemplo bem significativo é a organização da família.

Hermafrodito. Afresco, Herculano, entre 1 e 50 AD. Artistas desconhecidos.

O chefe da família - o pai - tinha autoridade absoluta. A criança, para ser integrada à família, teria que, ao nascer, ser erguida pelo pai. Com esse gesto, ele a reconhecia como filho.

A contracepção, o aborto, o enjeitamento de crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de uma escrava eram práticas usuais e admitidas legalmente.

A adoção era prática comum como forma de legitimação e da formação da família. O nome da família, transmitido à pessoa adotada, era considerado mais importante do que a "voz do sangue".

Ao ser aceita pelo pai e, portanto, integrar a família, a criança era entregue aos cuidados de uma nutriz que, em geral, a acompanhava pela vida toda, sendo, também encarregada de sua educação. Os meninos, na puberdade, passavam a ser educados também por um "pedagogo". A nutriz e o pedagogo tinham muito mais contato com as crianças e os jovens do que os pais, com os quais raramente se encontravam.

Aos 12 anos as meninas eram consideradas aptas ao casamento, a partir da qual elas passavam a levar uma vida reclusa no interior das casas. Aos 14 anos eram consideradas adultas, chamadas de "senhoras" e deveriam se mostrar pudicas e reservadas para serem estimáveis.

Para os meninos não havia uma idade estabelecida para a maioridade. Eles passavam a integrar o mundo dos adultos a partir do momento em que o pai ou o tutor os considerasse preparados.

Após os 12 anos, os que pertenciam às "boas famílias" - as abastadas - continuavam os estudos e formavam grupos de jovens, aos quais, em nome do "calor da juventude", era permitido praticamente tudo: frequentar prostitutas, tomar amantes, escolher favoritos (a homossexualidade entre os jovens ou entre um adulto e um jovem - pederastia - era prática recorrente e considerada natural).

A juventude encerrava-se com o casamento, mas os filhos, mesmo casados e adultos, continuavam sob a autoridade paterna até a morte do pai.

* No ano 79, uma erupção do Vesúvio soterrou as duas cidades localizadas no sopé do vulcão. No século XVIII, as escavações arqueológicas trouxeram à luz o que as cinzas haviam encoberto ao longo dos séculos. Os vestígios encontrados revelam a vida urbana como se as pessoas e objetos tivessem sido petrificados em plena ação, tais como estavam no momento da catástrofe. Por isso eles são bastante reveladores do dia-a-dia e das especificidades da vida urbana nos domínios de Roma.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 147-48.