A história do continente africano, geralmente, é construída de fora para dentro, com base nos interesses que buscaram (e buscam ainda) dominar a África e os africanos, mas também por culpa de africanos que se espelham e vivem à imagem dos povos que os dominaram, sem referência ao seu passado histórico. Segundo Ki-Zerbo (2010), é imperativo que a história e a cultura da África sejam também vistas de dentro, sem serem analisadas por parâmetros de valores exclusivamente europeus. Portanto, apesar dos mitos e preconceitos de todo tipo, que durante um longo período de tempo ocultaram a real história deste continente, existiu e existe até os dias de hoje culturas, religiões e grupos linguísticos diversos, bem como uma organização social própria dos povos africanos.
O continente africano é conhecido pela diversidade e pela riqueza de suas culturas e religiões, mas sobre o período pré-colonial a maioria dos filmes e documentários mostra uma imagem essencialmente primitiva e "bárbara". No entanto, essa visão não passa de um olhar racista e ideológico que busca descaracterizar o continente para poder controlá-lo com facilidade. Apesar disso, nenhuma dessas classificações pode apagar a história da mais antiga região do mundo, que é, culturalmente, um conjunto plural, um mosaico de nações étnicas correspondentes a identidades distintas.
Nesse sentido, Cheikh Anta Diop (1999) observa que não se deve construir a humanidade apagando a cultura de uns em benefício de outros e, tampouco, renunciando prematuramente e de forma unilateral sua cultura nacional no intuito de se adaptar à do outro em nome da simplificação da "globalização", pois isso seria um suicídio. Ou seja, importa resgatar as culturas africanas do período anterior ao colonialismo europeu, bem como suas relações com o resto do mundo, principalmente, devido às diferenças físicas, linguísticas e de organizações sociopolíticas que caracterizam a realidade africana.
Desse modo, podemos definir a cultura como sendo o conjunto da maneira de pensar, agir e se comportar de um povo que vive em coletividade, compartilhando símbolos e valores. Segundo Giddens (2004), o conceito de cultura se refere aos aspectos da sociedade humana que são apreendidos e não herdados, porém compartilhados pelos membros das sociedades e tornam possível a cooperação e a comunicação. Desse modo, a cultura é composta tanto por elementos materiais como por obras de arte, técnicas ou instrumentos de trabalho do grupo, bem como suas vestimentas, elementos espirituais ou religiosos que incluem ideias, crenças, normas, valores e costumes do grupo. Portanto, a compreensão de qualquer cultura deve evitar privilegiar, como foi feito no caso da África, o fator psicológico da identidade cultural em vez de considerar também as dimensões históricas e linguísticas (DIOP, 1987). No caso da África pré-colonial, a consideração desses elementos nos leva a falar, além da origem egípcia da civilização africana e mundial, da história dos Estados africanos conhecidos como impérios ou reinos, que foram grandes centros de divulgação da cultura africana.
Durante esse período, apesar do Deserto do Saara dividir o continente africano em dois, gerando o desenvolvimento de estilos de vida diferentes entre o norte e o sul, sempre houve trocas comerciais, culturais e sociopolíticas entre os povos das duas partes do continente. Assim o desenvolvimento de relações intercomunitárias e a organização no âmbito da formação de Estados foram facilitados. Um exemplo disso foi o Império de Gana, o mais antigo da parte ocidental do continente [...], que teve como respectivos sucessores os impérios Mali e Songhai. Essa sucessão mostra, em parte, a continuidade histórica dos povos africanos cuja base da civilização é a cultura egípcia, contrariando as afirmações das teorias que tentam distinguir a civilização e a cultura egípcia da dos demais povos do continente.
Segundo Diop (1999), a civilização do Egito Antigo é a base do patrimônio cultural, filosófico e científico de todos os africanos do continente, influenciando também a diáspora. Importa dizer que apesar de a África ser definida, primariamente, como um continente pobre e que pouco inovou, antes da colonização europeia o continente era uma das partes do mundo mais dinâmicas do ponto de vista da pesquisa e do florescimento cultural graças à organização política e socioeconômica de seus impérios. Assim, segundo Cissé (2010), na África Ocidental, por exemplo, mais especificamente na zona sudanesa-saariana, os contatos entre a população local e a cultura árabe-muçulmana, entre os séculos VIII e IX, propiciou uma grande produção de manuscritos em árabe nos principais centros urbanos como Gao, Djene e Timbuktu.
Considerando um intervalo de tempo um pouco maior, do século VII ao XVI, e sob vários aspectos, o continente africano passou por momento importante, pois este foi um período privilegiado para o desenvolvimento de culturas originais. Sem perder sua identidade, os africanos assimilaram influência externa. Foi nesta época que o grande Império do Sudão, situado ao sul do Saara, entrou em contato com a cultura e a religião islâmicas, as quais a partir de então passaram a fazer parte da cultura africana, convivendo quase que em harmonia com as religiões e crenças locais. Portanto, de forma oposta ao cristianismo, que chegou ao continente negro juntamente com os exploradores e futuros colonizadores europeus, o islamismo chegou à África pregado por africanos que tiveram contato com os fundamentos islâmicos a partir de viagens ao Oriente Médio. Conforme Diop (1999), a penetração do islã na África foi feita de forma pacífica, exceto o caso da islamização do movimento almoravida, durante a primeira metade do século XI, quando os berberes tentaram impor o islã pela força das armas.
Vale ressaltar que o contato dos africanos com o mundo árabe marcou o início de novos relacionamentos do continente negro com o exterior. Essas relações se intensificaram, resultando em formações sociais, políticas e culturais complexas, baseadas na diversidade que caracteriza o continente. Essa diversidade, por sua vez, dificulta a compreensão da formação, em termos de crença, de um sincretismo ou hibridismo religioso que se observa no continente até na atualidade. Desse modo, o entendimento das religiões africanas tradicionais se torna mais complicado devido à incorporação pelas mesmas de outros elementos provindos dos contatos com o exterior, notadamente do islamismo, e mais tarde do cristianismo.
Assim, segundo Tedanga (2005), para caracterizar as práticas religiosas na África tradicional os estudiosos das religiões e antropólogos do mundo moderno fabricaram todo tipo de denominação reducionista e ideológica das crenças africanas. Nesse sentido, encontramos na literatura conceitos como animismo, fetichismo, ancestralismo, magismo e totemismo, entre outros. Independentemente do termo ou conceito que se use, percebe-se a carga reducionista. No entanto, se considerarmos que fetichismo, animismo ou totemismo são três fenômenos da vida humana, é normal que a religião africana tenha interesse por eles, embora seja abusivo reduzir o conjunto de suas crenças focando somente esses elementos.
Importa dizer que as religiões da África são tão diversas quanto as línguas e etnias do continente, já que cada uma delas tem seus deuses, gênios ou ancestrais cuja adoração, ritos, oração ou sacrifício segue uma lógica única. Por isso, segundo Dieng (2007), à primeira vista tudo parece ser diferente entre as religiões dos dogons, dos malis e dos zulus da África do Sul, ou entre os pangos e os iorubás da Nigéria. Porém, um olhar mais aproximado pode diagnosticar algumas características fundamentais, que são idênticas entre esses cultos essencialmente destinados a ligar os homens ao mundo invisível, seja na forma natural ou sobrenatural. Na África, os povos têm mais ou menos a mesma concepção sobre seus ancestrais, sobre os gênios, seus modos de encarnação ou de reencarnação, bem como o entendimento sobre os vivos. Portanto, pode-se encontrar no totemismo e no fetichismo uma relação sutil entre o homem, o animal e a natureza.
Fica evidente que, do ponto de vista religioso, o continente africano apresenta uma rica variedade que reflete o importante papel das crenças nas organizações políticas e socioeconômicas. Isso mostra a importância da religião, da divindade ou do sagrado na vida dos africanos, bem mesmo antes da chegada das chamadas religiões reveladas (cristianismo e islamismo). [...]
Desse modo, pode-se afirmar que o monoteísmo africano é anterior ao islamismo, pois as religiões e o comportamento da maioria dos povos do continente se baseiam na moral e no respeito à vida em conjunto harmonioso, tanto entre os homens quanto entre eles e a natureza. Apesar da grande presença do islamismo na África Subsaariana nos séculos que antecederam à chegada do cristianismo e da colonização, importa sublinhar que a religião que dominava nos principais Estados ou impérios como Songhai, Mali e Benin, por exemplo, é aquela ligada às crenças ancestrais, as quais acreditavam em um ser supremo, do qual procedem todas as pessoas. Consequentemente, todos os indivíduos são valiosos e dignos de respeito. Ou seja, a cultura tradicional africana põe especial ênfase nas virtudes como a tolerância, a hospitalidade, a paciência e todos os valores que asseguram a harmonia social. Daí o rápido crescimento do cristianismo e do islã no continente, pois, segundo Dieng (2007), a rápida expansão dessas religiões na África se deve, em grande parte, ao sentido religioso, ao respeito e a tolerância inerente à cultura tradicional.
Nesse sentido, conclui-se que, do ponto de vista cultural, principalmente no que diz respeito à religião, a África tem sido uma grande precursora dos valores humanos incorporados pelas religiões reveladas (cristianismo e islamismo), apesar do discurso que anunciava a tarefa de "civilizar" os povos africanos a partir de seus valores. [...]
De qualquer modo, a religião dominante na África pré-colonial foi o animismo ou religião tradicional, apesar da islamização do continente a partir do século IX. O animismo consiste na crença em um único criador do universo que colocou um espírito em todas as coisas, sejam elas animadas ou não. Igualmente são cultuados os ancestrais, e se dá um valor particular à magia, notadamente a que cercam os ferreiros. Desse modo, percebe-se que a entrada e a expansão do islamismo se deram, principalmente, devido a essa coincidência de culto ao ser superior único, mas também por não ser uma religião de elite e aceitar sua expansão sem a erradicação do animismo (SYLLA, 1994). Nessa lógica, os seres são hierarquizados. Até o ser supremo, que pode ser confundido com o ancestral, nunca é uma abstração, mas sim energia viva, forças submetidas aos princípios de interação e que, como as forças físicas não mecânicas, podem se somar, se destruir ou se neutralizar (WADE, 2005).
Portanto, mesmo com a entrada das religiões monoteístas (islamismo e cristianismo), vale ressaltar que a religião tradicional continuou sendo a principal crença, pois nesse campo, na maioria das vezes, a aceitação e a adoção das religiões estrangeiras eram vistas pelos africanos como uma forma de receptividade e de acesso ao outro para fins comerciais. [...]
Grosso modo, a cultura e a religião são dois elementos fundamentais para o entendimento da sociedade tradicional africana [...]. Porém, continuam pouco conhecidas e, principalmente, encaradas a partir do etnocentrismo ocidental, pois sempre foi importante justificar a presença estrangeira no continente africano. Mas independentemente dos aspectos negativos dessa presença, importa dizer que as crenças tiveram uma influência profunda sobre a organização social africana, centrada no núcleo tradicional, baseada no clã dirigido pelos anciãos.
VISENTINI, Paulo Fagundes et al. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 21-26.