Cerimônia de beija-mão na Corte de D. João VI, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em caricatura de 1826. (Autor inglês que se identificava como A. P. D. G.).
O início do século XIX marcou a ruína de Portugal, a decadência final do grande Império. A maior prova dessa crise foi a fuga da Família Real para o Brasil, em novembro de 1807.
A situação na Europa era confusa e explosiva, pois dois "gigantes" - Inglaterra e França - estavam em luta. Luta pelo domínio do mundo, isto é, dos mercados onde poderiam vender seus produtos industrializados.
Na Inglaterra, quem mandava na política era a burguesia industrial. Operários pobres fabricavam toda a riqueza do país: mercadorias e mais mercadorias. O governo inglês defendia o liberalismo: Liberdade para o comércio! Liberdade para as colônias! Fim dos intermediários que ganhavam sem produzir, como os portugueses e os espanhóis!
Um senhor britânico explicou melhor a política externa da Grã-Bretanha:
- As verdadeiras colônias de um povo comerciante são os povos livres de todas as partes do mundo.
Na França, a burguesia também estava vitoriosa. O Antigo Regime absolutista tinha caído junto com a Bastilha, onde estavam presos todos os que eram contra a nobreza e o rei! E agora já havia um grande líder, que defendia como ninguém os interesses da burguesia. Um líder que usava a espada - ele era general - para aumentar a influência da França em toda a Europa. E também para exigir obediência e trabalho ao povo, dentro da própria França... Esse líder da burguesia era Napoleão Bonaparte.
- Não podemos negar que Napoleão tenha prestado grandes serviços à indústria. Foi sob o seu reinado que ela alcançou a prosperidade que tem até hoje. Foi sob o seu reinado que vimos, pela primeira vez, os nossos produtos industrializados competirem em todos os mercados da Europa, com os das nações mais adiantadas! - afirmava entusiasmado um industrial francês.
Foi essa disputa entre nações industriais que levou a Europa à guerra. Uma guerra pela partilha do mundo. Guerra por mercados consumidores. Guerra que criava um novo tipo de colonialismo.
Napoleão tratou logo de tentar diminuir o poderio comercial e marítimo da Inglaterra. Quis impedir que os navios da potência rival atracassem em portos europeus: decretou por isso o Bloqueio Continental.
É claro que o governo inglês não aceitou esse bloqueio. Decretou então um bloqueio marítimo à França. Resultado: a Europa seria, mais uma vez, o palco de bombardeios, apresamento de esquadras, invasões de territórios e alianças diplomáticas.
Em meio a tudo isso, o pequeno reino de Portugal tentava sobreviver. Tradicional "aliado" - e devedor! - da Inglaterra, não acatou, de início, a determinação de Napoleão. Diante, porém, das crescentes pressões do governo francês, que ameaçava invadir Portugal, o príncipe-regente D. João chegou a fechar os portos à Inglaterra.
A Inglaterra no entanto, agiu rapidamente. Enviou para o rio Tejo uma poderosa esquadra ameaçando bombardear Lisboa e acusando a Corte de trair a amizade anglo-lusitana. Ao mesmo tempo, a hábil diplomacia britânica apresentava uma solução para o problema: os ingleses escoltariam a Corte portuguesa até a sua principal colônia, o Brasil, e comprometia-se a ajudar as tropas portuguesas a lutar contra o exército de Napoleão. (Com o governo luso aqui, e as tropas francesas ocupando Portugal, que país faria o papel de intermediário entre o Brasil e o resto da Europa?).
O Príncipe-Regente D. João relutou o quanto pôde. Apertado pelas duas potências, ele sofria também a reação da população de Lisboa, que cada vez confiava menos naquela Corte que pensava apenas em salvar seus privilégios.
A partida da Corte, finalmente decidida, foi um atropelo só. Portugal, por ter ficado do lado da Inglaterra, teve sua região ocupada pelas tropas francesas do general Junot. E elas já rumavam para a capital!
O embarque foi feito às pressas, na base do "salve-se quem puder". Para não ser reconhecido pelo povo - correndo o risco de apanhar - D. João seguiu disfarçado para o cais. O andar de pata-choca do irreconhecível soberano tinha sua razão de ser: afinal, ele se disfarçou com uma cabeleira de crina que pesava oito quilos!
Além da correria, a confusão: 15 mil fidalgos queriam ocupar os 36 navios disponíveis para a longa viagem rumo ao Brasil. Gordas senhoras se afogaram, ao tentarem alcançar os botes já lotados que transportavam os "patriotas" para as embarcações maiores.
No cais, a população reagia contra os governantes fujões: atirava ovos, xingava e vaiava os que partiam. Amarrada numa cadeirinha, a rainha-mãe, que há 16 anos não saía à rua, protestava também:
- Não corram tanto! Vão pensar que estamos a fugir!
Quando o atabalhoado embarque se completou, percebeu-se que os altos funcionários públicos tinham "trabalhado" como nunca. As igrejas de Lisboa tinham perdido quase todas as suas relíquias. Metade do dinheiro em circulação no reino sumira. Um saque organizado e oficial! O governo, que não pagava os seus soldados há três meses, navegava para o Brasil nadando em riqueza!
Apesar da situação, nem todos perderam o bom humor:
Portugal não foi à guerra
Mas também não acovardou-se
Cobriu Lisboa com um pano
E escreveu em cima:
Portugal mudou-se.
Como é penoso beijar as mãos do príncipe-regente: seus dedos estão sempre gordurosos... Mesmo assim, a fila é comprida. Um rei no Brasil, quem já viu?
- Pois o príncipe-porcalhão é tão católico que quer imitar os frades: banho, só na Páscoa e no Natal! - graceja um dos que esperam a vez na cerimônia do beija-mão.
D. João e sua comitiva deram-se muito bem no Brasil, apesar das condições do Rio de Janeiro na época: uma cidade de ruas estreitas e sujas, insalubridade geral e muitas doenças...
Alguns problemas, como o da moradia para 15 mil fidalgos - afinal, eles não puderam comunicar com antecedência a sua chegada -, foram logo resolvidos. À maneira aristocrática, é verdade: o príncipe-regente mandou carimbar com "P.R." uma série de casas, obrigando os seus moradores a cedê-las aos fidalgos da Corte. Era, no dizer do povo, o "Ponha-se na Rua".
O Brasil, ou melhor, o Rio de Janeiro, enquanto aqui ficou a Família Real (1808-1821), viveu um período de prosperidade. Mas para quem era essa prosperidade? - é de se perguntar.
Para a Coroa e os comerciantes ingleses, entre outros. Poucos dias depois da chagada da Corte, estando ainda em Salvador, D. João assinou um importantíssimo decreto mandando abrir os portos brasileiros "às nações em paz com Portugal". Quem quisesse poderia vir comerciar à vontade. Bastava pagar pequenas taxas na alfândega. (Com boa parte desse dinheiro, os 15 mil fidalgos recém-chegados poderiam ser pagos pelos seus serviços no Brasil).
Os artigos ingleses foram os primeiros a chegar, pois a Inglaterra era a mais interessada na abertura dos nossos portos. Ferragens, queijos, peixes, salgados, vidros, celas para montaria, cerâmica, chapéus, panelas, panos variados, tintas, cervejas amontoavam-se nos armazéns e pátios dos cais de Belém, São Luís, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. E até mesmo belos caixões de defunto, porta-notas (não havia papel-moeda!), casacos de pele e patins para gelo!!! Acontecia, talvez, o primeiro milagre brasileiro: comprar o que não é necessário com o dinheiro que não se tem...
Muitos comerciantes reinóis, entretanto, perdiam seus negócios. Em 1808 tinham enviado ao Brasil 765 navios; em 1820 chegariam apenas 57.
O comércio no Brasil é um negócio da China, achavam os ingleses. E fundaram logo a "Associação dos Comerciantes que Traficam para o Brasil".
A Inglaterra era a maior potência do mundo no século XIX. Era, de fato, a nova dona do Brasil. Em 1810, Lord Strangford, embaixador inglês, conseguiu que D. João largasse as coxinhas de galinha e pegasse na pena... para assinar os tratados de "Aliança e Amizade" e "Comércio e Navegação". Ambos com o reino britânico, o "protetor da Casa de Bragança!"
Por esses tratados, a Inglaterra continuou ocupando a ilha da Madeira, que estava em seu poder desde a vinda da Corte; ganhou um porto livre em Santa Catarina; recebeu autorização para cortar madeiras. construir navios e manter uma esquadra de guerra no nosso litoral. Além disso, seus produtos pagariam em nossas alfândegas taxas menores que os de outras nações, inclusive Portugal!
Mas a prosperidade foi também para a cidade do Rio de Janeiro: criou-se o Horto Real - atual Jardim Botânico - com a finalidade de introduzir novas espécies vegetais no Brasil, entre as quais o chá, o café e a cana-caiana, trazida da Guiana Francesa; foram criados a Biblioteca e o Museu Reais; as Aulas Régias de Ciência Econômica; o Instituto Vacínico e o Laboratório Químico; o primeiro Banco do Brasil, com filiais em Salvador e São Paulo; a Imprensa Régia, a primeira do Brasil, cuja função era falar bem do governo e dar notícias de assuntos "importantes", como a gripe de soberanos europeus ou os banhos de barrica de D. João no Caju.
Importante também foi a decisão tomada logo que a Corte chegou, no dia 1º de abril de 1808. A decisão cancelou o decreto de D. Maria I, que proibia a criação de manufaturas no Brasil, tendo sido acompanhada de um outro eliminando os impostos sobre a importação de matérias-primas e a exportação de manufaturas. Apesar de serem medidas importantes, seus resultados imediatos foram limitados. Como concorrer com os produtos ingleses que não paravam de entrar em nosso mercado?
Em 1815, outra decisão importante: o Brasil era elevado à categoria de "Reino Unido a Portugal e Algarves". O Rio de Janeiro, em consequência, passava a ser a capital do novo reino.
Mas o antigo costume de usar um cargo público para se enriquecer não só continuou como aumentou. É o que revelam as críticas da época:
Adeus meu conde da Cunha
Adeus vinte mil cruzados
Que julgo por mal parados
Pois os pus na vossa unha
Quem furta pouco é ladrão
Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde.
Com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, mudaram também os costumes. As festas, por exemplo, ganharam ânimo. Tudo era motivo para comemoração, fossem dias santos, fossem enterros de gente importante. O povo saía às ruas e assistia curioso às cerimônias.
Nas casas particulares, as festas eram cada vez mais frequentes. E cheias de surpresas importadas da "civilizada" Europa. Que tal darmos uma chegadinha a uma dessas festas?
Vejam Aurélia, com o sinal "tentador" pintado no pescoço. Ela lança olhares furtivos para o Dr. Seixas. Benedita Inácio, com o sinal "beijocador" no cantinho da boca, é a mais provocante. Erotildes esconde uma antiga cicatriz com o sinalzinho "cobertor"... E esses espartilhos franceses! Como afinam as cinturas dessas mulheres ainda muito rechonchudas! As enormes armações de arame trançado fazem a roda dos vestidos. As mulheres da Corte agora se cuidam!
A festa é de casamento. Violinos e guitarras são tocados por rapazes de gravatinhas de renda, à moda dos franceses. Os sapatos têm o bico arredondado, fivelas e pedrarias. As calças, muito justas, acabam de receber uma condenação do papa: "é criação do diabo!" Muitos europeus, no entanto, consideram a condenação injusta...
Pois é: junto com as mercadorias, entram também os costumes europeus*. A alegria da noiva, nessa sociedade de hábitos importados, era diferente. No dia-a-dia, ela já podia sair à rua. Com o marido a seu lado, é claro... Não deixava de ser um avanço.
Mas atenção! Isso acontecia apenas com umas poucas mulheres privilegiadas: as mulheres da Corte. A grande maioria permanecia submetida aos costumes da sociedade patriarcal. Como afirmava o ditado popular, era
Coisa rara casa de Gonçalo
Em que a galinha canta mais que o galo...
ALENCAR, Chico et alli.
Brasil Vivo 1: uma nova História da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 77-80.
* A moda masculina era ditada pelos ingleses, a tal ponto que para expressar que alguém andava bem vestido, dizia-se que "ia muito inglês"; e quem como eles não se trajava recebia a alcunha de "jarreta". Diz José Teodoro Biancardi, em suas Cartas americanas, que em 1820, na capital, para ser tido como esperto, "peralta", era preciso espiar as mínimas alterações do feitio das casacas, coletes e calções à inglesa, e sair com eles à rua sem demora. Sobre as senhoras, diz que adotavam indiferentemente as modas inglesa e francesa [...]
Essa invasão de mercadorias e serviços em um meio caracterizado por um clima efetivamente distinto, cálido e por uma rusticidade flagrante, resultou em algo bastante exótico, tanto para os que traziam a novidade como para quem a incorporava. Ao lado das saias múltiplas coloridas e rodadas se mantivera a saia preta, uniforme no resto, e a mantilha, que encobria o rosto das mulheres sob suas rendas em visitas às igrejas e procissões. [...]
Mesmo entre as classes menos favorecidas reinava uma profusão de adornos e adereços, os espadins e galões, os sinais distintivos de pertença a essa ou àquela ordem religiosa ou de cavalaria. Isso se mesclava à moda importada criando uma terceira ordem, que não era mais nem uma coisa nem outra.
MALERBA, Jurandir.
A corte no exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 169-170.
Nenhum comentário:
Postar um comentário