O arsenal, Diego Rivera
A cultura dos países da América Latina, vista em perspectiva histórica ampla, está polarizada em quatro tendências principais: colonial, cosmopolita, nacional e socialista. A despeito das diversidades de linguagens, estilos, escolas ou teorias, a arte, a ciência e a filosofia polarizam-se desse modo. É claro que essas tendências não são excludentes, nem se conformam a uma sequência. Muitas vezes mesclam-se, baralham-se. Durante o primeiro período, um povo, literalmente, é apenas uma colônia, uma dependência de outro. Durante o segundo período, assimila simultaneamente elementos de diversas literaturas estrangeiras. No terceiro, a sua própria personalidade e o seu sentimento atingem uma expressão bem modulada. [...] abre-se a possibilidade de acrescentar um período, ou uma tendência, socialista, já que o socialismo passou a ser uma realidade política, econômica, social e cultural.
O diabo na igreja, Siqueiros
O colonialismo cultural pode ser recriado várias vezes na história: uma vez, rendendo vassalagem à Espanha ou Portugal, outra, à Inglaterra, França, Alemanha e, um pouco mais tarde, aos Estados Unidos.
Naturalmente, o segundo colonialismo é diverso do anterior, expressa outras dependências e abre outras perspectivas. Ao mesmo tempo, esboça o cosmopolitismo.
Pode-se dizer que o cosmopolitismo cultural tende a transformar o intelectual em cronista, viajante. Em sua produção científica, artística ou filosófica, há um quê de distante, estranho, visto de cima. É como se construísse a sua reflexão desde longe, em idioma estrangeiro. Na perspectiva cosmopolita, o nacional pode parecer interessante, curioso, insólito, folclórico.
Omniciencia, Orozco
Esse é o contexto do cosmopolitismo, que acompanha o elitismo inerente ao distanciamento em face dos problemas do povo. Muitos desses intelectuais consideram que os grandes problemas da filosofia, ciência e arte estão em Paris, Londres, Berlim, Nova Iorque. Não se referem a Moscou ou Pequim. E vivem em seus países como exilados, em geral meio afrancesados ou americanizados. Chegam até mesmo a admitir que o operário, camponês, mineiro e outros padecem a brutalidade das ditaduras civis e militares. Sabem da matança havida em Tlatelolco, em 1968, do bombardeio de La Moneda, sede do governo Allende, em 1973, e muitas outras matanças. Mas esses acontecimentos fogem ao conspícuo da sua arte, ciência ou filosofia. Reconhecem muitos que a condição de vida dos povos latino-americanos é lamentável; reconhecem todos que se deveria fazer qualquer coisa por esses povos. Mas tudo fica na vaga espera de um acontecimento messiânico, apocalíptico cuja ausência parece justificar qualquer inação.
As expressões civilização e barbárie, ordem e progresso, mestiço e europeu, arcaico e moderno, humano e cósmico, traduzem boa parte das ambiguidades produzidas e reproduzidas desde o século XIX. Junto com a europeização dos intelectuais e a rearticulação nas nascentes economias nacionais com a Europa, desenvolvia-se uma visão negativa do povo, dos movimentos sociais indígenas, camponeses e outros. Cultivadas à sombra do poder - muitas vezes como se não fossem fruto da sua semente - arte, ciência e filosofia guardam ressonância da visão do mundo dos conquistadores, antigos e atuais, civis e militares, nativos e estrangeiros.
Retirantes, Portinari
Tudo isso tem muito a ver com a subordinação econômica, política e militar às nações imperialistas. As "carências" e os "defeitos", ou o "atraso", têm muito a ver com a larga expropriação iniciada com os colonialismos e continuada com os imperialismos. Enquanto processo de âmbito econômico, o imperialismo abrange não só as relações militares e políticas como, inclusive, culturais. Nessa perspectiva, a produção cultural nativa tende ou para a "imitação servil dos estilos, temas, atitudes e usos" literários e outros, ou para a produção dos exotismos que fazem sensação no mercado europeu e norte-americano. Trata-se de uma cadeia de influências determinada pelas relações imperialistas, que aparece como atraso e imitação.
Nem sempre, entretanto, as relações culturais se restringem ao nível e às conveniências das classes dominantes. Assim, por exemplo, o modernismo induz intelectuais latino-americanos a redescobrir o povo, o que pode levá-los a descobrir camponeses e operários, ou índios e negros. O vínculo com a cultura universal não impõe necessariamente um caráter dependente ou alienado à totalidade de nossa cultura. Certas vezes uma corrente cultural avançada contribui para formar no país uma consciência social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito da dependência.
Pode-se acrescentar, ainda, que há uma produção cultural socialista (marxista, dialética ou marxista-leninista) importante, mesmo em sociedades em que a revolução socialista não se realizou nem parece próxima. O próprio Mariategui, com 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, publicado pela primeira vez em 1928, inaugura uma notável corrente de produção marxista no Peru e América Latina. Na mesma década, Julio Antonio Mella produz contribuições de valor para a interpretação dialética da realidade cubana e latino-americana. Entre outras reflexões, Mella argumenta no sentido de afirmar a importância e a validade da análise marxista. Para dizer que o marxismo é "exótico" na América Latina - diz ele, polemizando com Victor Raul Haya de la Torre - seria necessário "provar que aqui não existe proletariado", que "as forças produtivas são diferentes" das que se desenvolvem na Europa e Ásia, que "não há imperialismo". E acrescenta que "é uma coisa elementar para todos os que se dizem marxistas... que a aplicação dos seus princípios é universal, já que a sociedade imperialista é também universal". Depois, em 1935, Caio Prado Júnior publicou A Evolução Política do Brasil, seguida de outras obras marxistas nas décadas posteriores. Nos diversos países da América Latina, outros autores continuaram e desenvolveram a produção cultural a partir da dialética marxista. Também movimentos e partidos políticos entraram nessa corrente.
IANNI, Octavio. Revolução e Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 71-4, 77-81.
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