Segundo cronistas, índias "invertidas" teriam inspirado o mito das amazonas sul-americanas, mulheres que desempenhavam atividades tradicionalmente masculinas, representadas no livro de Walter Raleigh
"Nefandos pecados"
Luiz Mott*
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, escandalizaram-se ao encontrar tantos índios praticantes da homossexualidade, na época chamada "nefando pecado da sodomia". Os nativos amantes do homoerotismo eram chamados na língua tupinambá de tibiras, enquanto o padre francês André Thevet (1575) intitulou-os de berdache, termo de origem persa, generalizado pelos povos islâmicos, que passou a ser utilizado por viajantes e depois por antropólogos, para descrever os nativos homossexuais e/ou travestis de diversas partes do mundo, sobretudo os da América do Norte. Também muitas mulheres indígenas entregavam-se umas às outras em relações lésbicas: segundo os cronistas da época, havia muitas cunhãs que eram completamente "invertidas", assumindo radicalmente o papel de gênero masculino na aparência, trabalho e lazer, preferindo a morte a serem chamadas de mulheres ou a manter relações com o sexo oposto. Eram chamadas de çacoaimbeguira, e provavelmente teriam sido elas as inspiradoras do mito das amazonas sul-americanas.
Também os negros contribuíram para o alastramento do amor unissexual na "Terra dos Papagaios": o primeiro travesti registrado na nossa história foi o negro Francisco, da etnia manicongo, morador à Misericórdia, no centro de Salvador, denunciado em 1591 perante o visitador do Santo Ofício da Inquisição na Bahia, por recusar-se "vestir roupa de homem". Era membro de uma "confraria" a que chamavam quimbanda, composta por temidos feiticeiros praticantes do homoerotismo, muito respeitados nos reinos do Congo e de Angola. [...]
Malgrado a presença aterradora do Tribunal da Inquisição (1536-1821), o homoerotismo também percorreu incontrolado toda a história lusitana, envolvendo quando menos três soberanos e inúmeras celebridades deste país ibérico. Foi aí merecidamente referido como "vício dos clérigos", tanto foram os frades, cônegos, sacristãos e até membros do alto clero a praticarem o "amor que não ousava dizer o nome". Um terço dos sodomitas presos e queimados pelo Santo Ofício pertencia à Igreja.
O primeiro degredado pela Inquisição portuguesa a aportar no Brasil foi o sodomita Estévão Redondo, criado do governador de Lisboa, que desembarcou em Pernambuco [...] em fevereiro de 1549. [...] Contra si tinha quase uma dezena de acusações de atos sodomitas. Nem a enorme vergonha de ter sido sentenciado publicamente num auto-de-fé, nem os doloridos ferros que o acorrentaram na interminável travessia do Atlântico, nem mesmo o degredo "para sempre" nesta terra de índios bravos e africanos boçais, foram suficientemente fortes para desviá-lo de sua orientação homossexual. Estévão Redondo foi o primeiro gay a ter seu nome e sobrenome registrados na história do Novo Mundo.
Por ocasião da visita do Santo Ofício em Pernambuco, em setembro de 1593, pelo menos cinco homens e rapazes foram publicamente acusados de sodomia e mais de trinta mantinham em segredo que eram "fanchonos". Entre estes, André Lessa, um sapateiro que vivia em Olinda e viu-se obrigado a assumir sua prática perante o inquisidor. Em seu currículo homoerótico constavam nada menos do que 31 rapazes, com os quais praticara mais de uma centena de ajuntamentos sodomíticos.
"O Lessa", como era chamado, invalida o mito que estereotipa o homossexual como um ser delicado, franzino, uma espécie de "terceiro sexo", conforme definiu, no século XIX, o doutor Karl Ulrichs, pai dos estudos sobre a homossexualidade. Em seu processo, arquivado na Torre do Tombo, em Lisboa, André Lessa foi descrito como "homem alto, um homenzarrão, com bigodes grandes e valente". Era cristão velho, natural de Guimarães, no bispado de Braga. Não consta no processo desde quando vivia nos Brasis, mas já lá iam 12 para 13 anos que "tem pecado na sensualidade torpe com muitos moços, sendo sempre autor e provocador, tendo ajuntamento por diante com os membros viris e com as mãos, solicitando e efetuando polução [ejaculação] um ao outro".
Os parceiros de Lessa tinham entre 15 e 18 anos e eram todos brancos, com exceção de um mameluco, mestiço de branco e índio. Entre eles, dois filhos de mercadores e de um fazendeiro; três alfaiates, dois sapateiros e nove criados. As centenas de práticas libidinosas referidas por Lessa revelam grande versatilidade homoerótica, incluindo "ajuntamentos nefandos alternados", "acometimentos nefandos por detrás", "ajuntamento dos membros viris pela frente", "derramamento de semente entre as pernas", "punhetas recíprocas", "polução na mão alheia", "coxetas", exibição fálica, conversações torpes e maliciosas etc. Todas expressões colhidas pelos piedosos ouvidos do escrivão inquisitorial que se não teve vergonha de escrever, quem somos nós para agora censurá-los! A propósito: "o Lessa" foi castigado com relativa brandura pelo visitador: sofreu quatro seções de açoites, sendo degredado por cinco anos para Angola.
Não fora a confissão de Lessa, jamais teríamos notícia da existência desta numerosa e diversificada rede de cripto-sodomitas - conhecidos na época como "fanchonos encobertos" e hoje como "gays enrustidos" - que somente graças à visitação inquisitorial tornou-se conhecida para a posteridade. A criminalização da prática homossexual forçou os amantes do mesmo sexo a viver na clandestinidade - dando origem a uma subcultura de dissimulações. [...]
Os processos de sodomia das Inquisições constituem, por causa disso, riquíssimo filão para o estudioso da homossexualidade antiga. Se compararmos Portugal e sua colônia ao sul do Equador com os demais países europeus e do Novo Mundo à época da Renascença, inclusive com a Inglaterra e Holanda protestantes, a abundante e fantástica documentação dos arquivos inquisitoriais nos obrigam a concluir que Lisboa e as principais cidades da América portuguesa, Salvador, Olinda e Rio de Janeiro, possuíram uma frenética e ao mesmo tempo clandestina subcultura gay, que competia com a descrita para outras sociedades do Velho Mundo. Curiosamente, malgrado o espectro da fogueira inquisitorial, no dia-a-dia, os gays luso-brasileiros eram tratados com maior tolerância e aceitação social do que seus semelhantes de outros países.
As legislações inquisitorial e real eram rigorosíssimas, mas, na prática, a punição era rara e indulgente. Não obstante, dos mais de 4 mil denunciados ao Santo Ofício pelo "abominável pecado de sodomia", aproximadamente 450 foram efetivamente presos e sentenciados, e, destes, trinta sodomitas morreram queimados durante os quase três séculos em que vigorou a ditadura deste monstrum horribilem. Nenhum gay do Brasil foi queimado pela Inquisição, embora ultrapasse de uma centena os "fanchonos" e lésbicas da América portuguesa denunciados de praticarem o "mau pecado", uma dezena dos quais sendo aprisionados nos cárceres secretos da "Casa negra" do Rossio, em Portugal.
Há documentos comprobatórios de que, desde os primórdios de nossa história, os pais ensinavam seus filhos adolescentes a reagir violentamente contra qualquer tentativa de sedução por parte de um homossexual, registrando-se no século XVII a cruel execução de dois sodomitas no nordeste brasileiro, cujos nomes desgraçadamente os cronistas deixaram de anotar; em 1613, em São Luís do Maranhão, um índio tupinambá, publicamente reconhecido como tibira, foi amarrado por ordem dos frades capuchinhos franceses na boca de um canhão, tendo seu corpo estraçalhado com o estourar da bala, "para purificar a terra de suas maldades".
O segundo mártir homossexual no período colonial foi um moleque escravo negro, executado na capitania de Sergipe, em 1678: "foi morto de açoites por ter cometido o pecado de sodomia". Entre as lésbicas, a mais "incorrigível" de todas foi a portuguesa Felipa de Souza, açoitada em praça pública, em Salvador, e degredada em 1593. Seu nome passou a identificar o prêmio anual que a International Gay and Lesbian Humam Rights Comission (de São Francisco, EUA) outorga a entidades e personagens gays e lésbicas que mais se destacaram na defesa dos direitos humanos.
Há raízes etno-históricas que explicam a maior agressividade contra homossexuais nos países escravistas da América Latina e no Brasil em particular: aqui, o machismo, o patriarcalismo e a homofobia assumiram características mais violentas do que nas metrópoles ibéricas, pois um homem delicado, efeminado ou homossexual, no Novo Mundo, era considerado como grave traição à supremacia do sexo forte e uma perigosa ameaça à elite dominante.
Nesta colônia de dimensões continentais, os brancos donos do poder representavam frágil minoria demográfica, numa proporção de um branco para três ou quatro negros, índios, escravos e forros, além dos mestiços de todos os matizes. População esfomeada, exaurida com jornadas de 15 ou mais horas de trabalho forçado, humilhada e castigada a ferro e fogo. Como manter esta gentalha submissa? Chicote ou bengala na mão, punhal e espada na cintura, postura ultraviril e autoritária, eram elementos indispensáveis para todo senhor vivendo no meio da negrada e tapuiada - termos correntes naquela sociedade.
Nas colônias escravistas não havia lugar para efeminados, fracos, pusilâmines, "donzelões", como dizia Gilberto Freyre. Nesta frente pioneira de brava gente, dar as costas para outro homem ameaçava a própria permanência e hegemonia do conquistador branco no Novo Mundo - pois pelas costas é que os índios flechavam os descuidados que ousavam penetrar a floresta e por detrás é que os cativos revoltosos tiravam a vida de seus opressores.
* Luiz Mott é professor titular de Antropologia na Universidade Federal da Bahia e autor de O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição.
Fonte: Revista Nossa História. Ano 1 / n.º 8, junho 2004. p. 28-32.
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