"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Civilização cretense ou egeia

A Parisiense.  Artistas desconhecidos. Ao descobrir no palácio de Cnossos este fragmento de afresco, Arthur Evans é seduzido pelo nariz empinado da jovem mulher, seu cabelo cacheado sobre a testa, seus lábios pintados e seus adereços amarrados a uma fita. Ele o batiza "A Parisiense". Mas essa Parisiense, que se tornou célebre no mundo inteiro, não é uma elegante dama da corte de Minos. É uma divindade reconhecível pelo laço que traz nas costas. Cnossos, por volta de 1500 a.C.

No início do III milênio a.C., surgiu na ilha de Creta, no Mediterrâneo oriental, e nas ilhas do Mar Egeu, uma notável civilização, a civilização cretense ou egeia, desenvolvida por povos que aí se estabeleceram, oriundos provavelmente da Ásia Menor.

Desde os primeiros tempos a civilização cretense caracterizou-se pelas atividades comerciais que se estenderam ao Mar Egeu, à península grega, ao litoral do Mar Negro e ao Egito, fundando também algumas colônias como Micenas e Tirinto, no Peloponeso, e Tróia, na Ásia Menor. Em função da expansão marítima, os cretenses tiveram contato com várias civilizações deles contemporâneas, principalmente dos egípcios, dos mesopotâmios e, mais tarde, dos fenícios. Além disso, a posição geográfica de Creta era quases um traço de união entre a Ásia, a Europa e a África.

[Creta] parece ter sido feita pela natureza para comandar a Grécia. Sua posição é muito bela. Domina o mar em torno do qual localizam-se todos os gregos. De um lado achava-se a curta distância do Peloponeso; de outro diante daquela região da Ásia Menor situada atrás da ilha de Rodes [...] Este o motivo pelo qual Creta possui o domínio do mar e conquistou e colonizou as ilhas. (Aristófanes)

Conhecemos mal a história de Creta, pois sua escrita (escritas minóicas) ainda não foram totalmente decifradas. Apenas os relatos dos antigos gregos e, sobretudo, as escavações arqueológicas nos permitem reconstituir em parte sua história e descrever sua cultura em traços bastante gerais.

* Evolução histórica dos cretenses. O primeiro período, conhecido como Minóico antigo (2700 a 2000 a.C.), caracterizou-se pelo predomínio das cidades de Cnossos e de Faístos.

Creta é uma terra que se acha no meio do mar cor de vinho, bela e fecunda, cercada por ondas. Inúmeros homens, quase infinitos, lá moram, formando noventa cidades [...] Entre as cidades se nota a de Cnossos, a opulenta, onde Minos, o confidente de Zeus, o comando exerceu por nove anos. (Homero, Odisseia, canto XIX, v. 172-179).

O segundo período, ou Minóico médio (2000 a 1500 a.C.) foi o apogeu da civilização cretense. Terminou com o ataque dos aqueus (povo helênico indo-europeu) às colônias de Creta - Micenas e Tirinto - onde assimilaram a cultura do povo conquistado.

No terceiro período, ou Minóico recente (1580 a 1200 a.C.), os aqueus atacaram novamente Creta (1400 a.C.) e Tróia (séc. XII a.C.). Creta foi invadida também por outro povo helênico indo-europeu, os dórios (1200 a.C.)

* Economia. Inicialmente baseou-se na agricultura, com o cultivo de cereais, oliveiras e vinhas, e na criação de animais. Os cretenses dedicaram-se também, em seguida, ao comércio marítimo com outras ilhas do Mar Egeu, com cidades da Ásia Menor e do Egito. Para abastecer esse comércio desenvolveram uma indústria de cerâmicas, tecidos e artigos de metal que produziam em larga escala para o mercado interno e externo.

A ilha exportava azeite, vinho, jóias e maravilhosas cerâmicas, e importava metais preciosos (ouro, prata), cobre, estanho, marfim, vidros e tecidos. Os cretenses tinham um sistema de pesos e medidas semelhante ao dos egípcios e dos mesopotâmios; como dinheiro usavam lingotes de cobre, discos de metal precioso, às vezes marcados com sinetes, para facilitar as transações comerciais, identificar e proteger propriedades.

Surgia assim, pela primeira vez, uma civilização cujo poder se assentava no domínio do mar (talassocracia), através das rotas comerciais do Mediterrâneo, alcançando, além do Peloponeso, a Ásia Menor, o Egito e até o sul da Itália.

* Religião. A religião cretense baseava-se sobretudo no culto de uma Deusa-Mãe, que governava todo o universo e representava a fecundidade. Além disso, eram adorados certas árvores e alguns animais, como a serpente, o touro, o veado e o minotauro (animal metade touro e metade homem). As cerimônias religiosas eram oficiadas pelo rei (autoridade religiosa suprema) e por sacerdotes que faziam aos deuses oferendas de cereais e sacrifícios de animais.

Os cretenses encaravam a morte com naturalidade, como um prolongamento da existência na terra. Acreditavam, portanto, em uma vida de além-túmulo; por isso os mortos eram enterrados com cuidados especiais e, como no Egito, com todos os pertences que, achavam, poderiam necessitar.


Príncipe dos lírios. Artistas desconhecidos. Afresco do Palácio de Cnossos

* Arte. Em arquitetura, os palácios reais, devido aos constantes acréscimos exigidos pelo conforto, não apresentavam um estilo único e formavam estruturas complexas a que os gregos denominaram labirintos.

A escultura revela a preocupação com o detalhe; limitou-se quase sempre a estatuetas de faiança, marfim, bronze ou argila. O mais alto grau de expressão artística dos cretenses foi a pintura, que se revela nos delicados vasos ou nos afrescos coloridos que cobrem as paredes dos palácios, mostrando flores, aves, animais de toda espécie e cenas da vida cotidiana.

Afresco do pescador. Artistas desconhecidos. O pescador volta para casa carregando seus peixes atados em réstias. Este tema bem banal é realçado pela elegância do homem e pelo contraste entre sua pele morena e o azul prateado dos peixes. Sobre sua cabeça, dois polvos ficaram presos em sua cabeleira, quando subiu à superfície da água com seus peixes. Akrotiri (Théra), século XVI a.C.

* A vida em Creta. Temos noções da vida dos cretenses pelas obras de arte que nos legaram. Mesmo nas camadas humildes parece ter sido mais livre, feliz e confortável do que a vida de outros povos da Antiguidade.

"Os cretenses - diz o historiador André Ribard - gostavam de flores nos jardins e nas casas. [...] As mulheres usavam saias e corpetes de mangas, tão decotados que seu peito estava nu, togas debruadas, às vezes rodadas, e botins de saltos. As modas cretenses lhes davam uma graça taful que contrastava com o tom empolado do luxo oriental. Os homens, barbeados, apertando o talhe até o excesso, calçavam botas de couro, cobriam-se com mantos de lã e apreciavam tanto quanto as mulheres os braceletes e colares."

O rei de Creta - denominado Minos - apesar de seu poderio político e econômico, não oprimia seus súditos, nem possuía um exército forte ou uma classe militar, governava com justiça e sabedoria. Mesmo a escravidão, se em Creta tiver existido, parece não ter sido significativa.

Minos foi, com efeito, dentre os homens que conhecemos pela tradição, o que mais cedo adquiriu uma frota e dominou a maior extensão do mar que hoje se chama helênico; exerceu a hegemonia sobre as ilhas Cícladas e foi quem primeiro instalou a maioria das colônias [...]. (Tucídides, I, 4)

A mulher ocupou posição de destaque na sociedade cretense, tendo podido dedicar-se, como os homens, a quaisquer atividades e ocupações.

Mosaicos representando três mulheres. Artistas desconhecidos. Estas três belas mulheres de Cnossos foram "restauradas" quando de sua descoberta, o que explica seu perfeito estado. Com seus longos cachos de cabelos descendo sobre seus ombros, seus boleros vermelhos bordados e suas jóias, respondem aos critérios de beleza feminina em Creta. Cnossos (Creta, século XVI a.C.)

O cretense foi um povo interessado em esportes, corridas, jogos, danças, festas. A principal festa era em honra à deusa-mãe, na qual se destacava uma espécie de tourada onde o touro, animal sagrado, não era morto e sim parceiro de um tipo de perigosa exibição acrobática executada por homens e mulheres jovens.

Acrobatas e touros. Artistas desconhecidos. Afresco do vestíbulo do palácio de Cnossos, por volta de 1550 a.C.
Foto: Nikater

A Grécia sofreu considerável influência da civilização cretense. Alguns povos gregos aprenderam a escrever nas escritas minóicas, que mais tarde substituíram pelo alfabeto fenício. É provável que também a religião grega tenha sido influenciada pela cretense, no culto da deusa da fecundidade e em outros cultos menores. Dos cretenses os gregos receberam a cultura da vinha e da oliveira, os costumes das festas religiosas e a prática de jogos esportivos. (HOLLANDA, Sérgio Buarque de (et all). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 39-42.)

Afresco de Campstool.  (Parcialmente restaurado). Artistas desconhecidos. Palácio de Minos, Cnossos, século XVI a.C.

* A influência da civilização egeia. Não é fácil avaliar a influência da civilização egeia. Os filisteus, que provinham de algum recanto do mundo egeu, introduziram certos aspectos dessa cultura na Palestina e na Síria. Há razões para acreditar que muitos elementos da arte fenícia, assim como as lendas de Sansão, do Velho Testamento, foram, na realidade, tomadas aos filisteus. É provável também que as tradições religiosas e estéticas dos cretenses, e talvez alguma coisa de seu espírito de liberdade, tenham influenciado os gregos. Mas uma considerável parte da civilização egeia perdeu-se ou foi destruída. Em seguida à queda de Cnossos iniciou-se uma era de obscurantismo que durou quase quatrocentos anos. Os conquistadores eram bárbaros, incapazes de apreciar grande parte da cultura do povo que dominaram e, consequentemente, deixaram que ela perecesse.


Afresco da procissão. Palácio de Cnossos. Artistas desconhecidos. Foto: Nikater

* Importância da civilização egeia para o mundo moderno. A despeito de sua influência limitada, a civilização egeia tem importância para os estudiosos de história, pois foi Creta uma das poucas nações dos antigos tempos que asseguraram, mesmo aos seus cidadãos mais humildes, uma razoável parcela de felicidade e de prosperidade, vivendo livres da tirania de um estado despótico e de um clero insidioso e astuto. A ausência aparente de escravidão, de punições brutais, de trabalho forçado e de conscrição militar, juntamente com uma grande igualdade virtual entre as classes e a nobilização da mulher - tudo compõe um regime em flagrante contraste com o dos impérios asiáticos. Se forem ainda necessários testemunhos adicionais para salientar esse contraste, eles serão encontrados na arte das várias nações. O escultor ou o pintor egeu não se gloriava em representar a destruição dos exércitos ou o saque das cidades, mas em retratar paisagens floridas, festas alegres, emocionantes exibições de proezas atléticas e cenas semelhantes, próprias de uma existência livre e pacífica. Por fim, a civilização egeia é significativa pelo parentesco com o que muitas vezes pensamos ser o espírito moderno. Isso é claramente exemplificado pela inclinação do povo ao conforto e à opulência, pelo seu amor aos divertimentos, seu individualismo, seu gosto pela vida e a coragem de tudo submeter à experiência. (BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964. V. 1, p. 142.)

Referências:

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de (et all). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980.
RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.
SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas 1: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.

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