Pátroclo, Jacques-Louis David
Se falar em sexo publicamente ainda era complicado nos anos
1968, era prudente que os homossexuais se reservassem ao espaço privado. Embora
causassem polêmica, determinados comportamentos que confrontavam a noção de
masculinidade criada pela sociedade não eram debatidos abertamente, como
recorda Ricardo:
A gente supunha que algum rapaz que não falava em mulher,
não jogava futebol e não bebia, pudesse ser uma mocinha. Mas, os homossexuais
eram muito caricaturizados, discriminados, agredidos e era muito natural que
não se expusessem.
A caracterização do homossexual atingia direto o estereótipo
do "macho" e o preconceito era o preço mais alto a ser pago:
Eu fui criado numa sociedade onde ser homossexual era ser
criminoso, era ser pecaminoso, uma coisa feia que não se conta, uma coisa
vergonhosa. Então, o meu desejo foi levado... meu desejo ele foi ensinado a se
manifestar somente em situações ligadas à marginalidade: Noite! A palavra noite
é feminina já notaram? Dia é masculino: claro, luz, razão, precisão! Noite é
feminina: escura, obscura, indefinida, marginal!... Então, meu desejo foi
educado para ser ativado em locais tipo barzinhos à noite, becos escuros,
saunas... Os tipos de caras que me atraem são caras assim, mais ou menos, que
lembram esse ambiente, submundo de coisa assim.
Muitas vezes sem poder (e nem querer) frequentar os mesmos
lugares que rapazes heterossexuais, a vivência homoerótica levava à prática de
uma subcultura masculina, marginalizada. Os espaços de sociabilidade,
caracterizados em sua grande maioria pela escuridão e seus sinônimos, eram
restritos, e cabia ao jovem descobrir os mesmos. Os cinemas, desde décadas
anteriores, eram espaços privilegiados para isso. Armando Antunes relembrou sua
primeira experiência num cinema da capital mineira:
A primeira vez que eu fui num cinema e que aconteceu
alguma coisa comigo foi no cine Piratininga. Eu sentei lá e de repente eu
percebi que sentou alguém do meu lado, mas eu não me toquei, eu não estava ali
para caçar. Eu era novo ainda. Quando eu percebi alguém me pegou. Eu senti uma
mão me pegar. Mas eu dei um berro que o cara fugiu para um lado e eu fugi para
o outro.
O grito instintivo não foi entendido por ele como uma
agressão. Na verdade, foi o momento em que se deu conta de que não estava
sozinho no mundo ao se interessar por um homem: "Eu não era a aberração da
humanidade. Existia um núcleo, mas era um núcleo tão escondido que eu teria que
procurar quem era". Armando relembra como começava um namoro na penumbra
do cinema:
Você encostava a perna no rapaz e sentia se ele queria.
Bom, se encostou e ele não tirou, é porque não se sentiu incomodado. Mas houve
uma época em que o lanterninha pegava você no flagra. Ele jogava a lanterna em
cima de você e chamava a polícia.
Se as condições permitissem, os contatos sexuais anônimos
podiam terminar em masturbação mútua, em sexo ou em um hotel barato fora do
cinema, como revelou o historiador americano James Green.
O Rio de Janeiro desde os anos de 1950 passou a atrair
homens (que gostavam de homens) vindos de outros estados do país onde se
sentiam pressionados, ou ainda hostilizados, pela família e pela sociedade em
que viviam. Mudar-se para a cidade maravilhosa significava "livrar-se da
supervisão e do controle familiar e da pressão para o casamento e filhos".
Além do já consagrado local do centro da cidade nos arredores da Lapa, da
Cinelândia e da Praça Tiradentes, os anos 1968 viram o bairro de Copacabana
como o lugar de vida noturna mais vibrante não somente para a classe média em
geral, mas também para os homossexuais. Este ainda é o momento em que
estabelecimentos começam a atrair um público majoritariamente gay sem serem
hostilizados pelos empresários locais. Algumas casas noturnas, como o Alfredão,
o Alcatraz e o Stop, passaram a abrigar uma clientela composta por rapazes
homossexuais. Entretanto, o grande charme de Copa era o mar e o desfile dos
corpos seminus, que podiam ser observados sem pudor algum. E, em frente ao
luxuoso hotel Copacabana Palace, local reservado ao jet set nacional
e internacional, as bichas, como já eram chamadas desde os anos de 1930,
fizeram do espaço o seu "posto", que passou a ser conhecido como a
Bolsa de Valores: "lugar onde você pode mostrar-se aos holofotes e virar
notícia tinha data e local marcado. O concurso de Miss Brasil era ponto de
"bonecas", como também eram chamados os homossexuais mais afeminados,
do Rio de Janeiro, como apresentou uma reportagem da revista Realidade:
Às oito da noite, 40 mil pessoas já estão no Marcanãzinho
lotado, pois nada mais importante existe para elas que um concurso de Miss
Brasil. O ginásio está explodindo em gritaria e aplausos, a cada
"miss" que dá a paradinha, o rodopio e manda dois beijos para o público.
De repente a polícia resolve entrar na "passarela". As
"misses" assustadas saem correndo e dando gritinhos desesperados.
Levantadas no ar, indefesas, pequeninhas diante do tamanho dos guardas. são
levadas para algum canto misterioso. É o fim tradicional do desfile dos
bonecas, ou transviados sexuais, que todo ano, em algum pedaço vazio da
arquibancada, precede o desfile de verdade.
Entretanto, boa parte dos homossexuais se resignava a um
universo privado, pessoal, muitas vezes relutando contra suas próprias vontades
em nome do preconceito que lhes atingia. Mesmo nos círculos mais
"avançados", como as organizações de esquerda que resistiram à
ditadura militar, o homossexualismo era visto com muita reserva. Herbert
Daniel, militante de organizações guerrilheiras, como a Polop (Política
Operária) e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foi um desses que, em
nome da aceitação no grupo e das práticas revolucionárias, negou sua
sexualidade durante anos. Em seu livro, Meu corpo daria um romance,
Herbert desabafa sua vida duplamente clandestina:
Quis extirpar o sexo antigo. Aos poucos, adotei um sexo
futuro. novo, que naquele instante se tornava pura abstinência. A última vez
que trepei com alguém deve ter sido em meados de 67. Abstinente passei toda a
clandestinidade. Sete anos. (Não posso deixar de escrever o prometido elogio à
punheta, senão dificilmente poderei fazer alguém compreender a minha
clandestinidade. Porque creio que se tivesse apagado meu sexo nunca teria
acreditado na militância. Um militante sem sexo é um totalitário perigoso. Um
punheteiro é apenas um confuso ingênuo e esperançoso.)
As noites solitárias foram o preço a ser pago em nome de um
"ideal" cujo "ideal de homem" era o guerrilheiro, viril e
másculo. Os revolucionários dos anos 1968 carregavam muito do traço mais
tradicional da cultura patriarcal desde a época colonial: a supremacia
masculina. Nesta hegemonia, o importante era parecer "macho", mesmo
não sendo.
James Green indicou que muitos homossexuais saíam em busca
de homens "verdadeiros": uma reversão dos papéis tradicionais onde o
sujeito "passivo" torna-se ativamente aquele que procura uma relação
sexual. Segundo o brasilianista, essa dinâmica sexual, na qual o homossexual
tinha de tomar a iniciativa, contribuiu para a formação de uma identidade
imbuída de autoconfiança e que se contrapunha aos estereótipos sociais do bicha
patético e passivo. É interessante ressaltar, com essa constatação. o quanto
dos valores viris também foram apregoados por homossexuais. Uma reversão do
entendimento, que vem desde o início da era cristã, de que o homem homossexual
não era viril (lembrando que as relações homoeróticas entre gregos e romanos
eram entendidas sobretudo como viris, expressando a potência masculina em
detrimento do elemento feminino). Esta autoridade de si, juntamente com a
evolução política dos anos 1968, permitiu o questionamento dos papéis sociais e
sexuais rígidos assumidos pelas "bonecas", ou seja, de que para ser
homossexual era preciso necessariamente ser efeminado. Certamente esses fatores
contribuíram para formação de uma consciência que em fins dos anos 1970 passou
a ser expressa pelo movimento gay no Brasil.
Angélica Müller. Não se nasce viril, torna-se: juventude e
virilidade nos "anos 1968". In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Marcia.
(Orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: UNESP, 2013. p.
319-323.