Dona Luzia Ferreira ainda não tinha dez anos de idade e já trabalhava na Fábrica de Tecidos Bangu, no Rio de Janeiro. A velha Europa nessa época estava em plena 1ª Guerra Mundial (1915-18). O Brasil industrializava-se. E o trabalho da menina Luzia começava às seis da manhã só terminando às cinco da tarde.
Nos primeiros meses, ela trabalhava de graça:
- Aprendiz não recebe nada, disseram-lhe na fábrica.
Alguns anos depois dona Luzia ganhava dez tostões. Melhor do que nada. Salário de verdade só quando se tornasse uma completa tecelã, mas isso bem que demorou.
Muitos anos depois, com mais de 70 anos de idade, Dona Luzia guardava na lembrança a vida na fábrica:
- Não tínhamos lugar para comer. As refeições eram feitas junto às máquinas. A roupa de trabalho era a mesma do caminho. Os operários usavam uma roupa chamada "carne-seca" ou "pau-de-água". O apelido tinha origem no fato de ser a roupa feita com panos manchados pelas anilinas e com fios rebentados. Não tínhamos onde tomar banho. Apenas uma bica sobre um tanque imundo servia-nos de bebedouro e pia.
Dona Luzia falava de situações ainda piores:
- Certa vez, o Euclides, mais conhecido por Donga, foi colhido por uma máquina e morreu. A família não recebeu um centavo, nem mesmo para o enterro. O dinheiro das contribuições dos companheiros e uma ajuda da associação de Socorros Mútuos, organizada pelos operários, pagou as despesas do funeral. Noutra ocasião foi Idalina, uma linda moça, que perdeu o braço na máquina. Tudo que conseguiu foi que a deixassem trabalhar com um braço apenas, depois de recuperada. Vi apanharem e apanhei: puxões de orelha, safanões... sofri as maiores ofensas. Vi crianças serem esmurradas! (O depoimento de dona Luzia está no livro de Edgar Rodrigues, Alvorada operária. p. 212-214.)
Mais ou menos na mesma época, dona Alice trabalhava numa oficina de costura, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Com dez anos de idade, ela varria a sala, juntava os alfinetes do chão, arrumava as linhas nas caixas. Ganhava cinco mil-réis por mês.
- Era pouquíssimo! ela relembra.
Aos quinze anos, dona Alice estava numa outra oficina. Entrava de manhã e não saía antes das oito horas da noite. Para chegar à oficina tinha que caminhar muito. Quando faltava, a dona da oficina perguntava:
- Ô Alice, por que você faltou ontem?
- Eu não vim ontem porque chovia, molhou meu sapato, meu vestido, meu casaco estava pingando, não tinha condição de vir, nem vou mentir para a senhora. Não tenho mais do que a senhora me vê na oficina. É a roupa que eu cuido no domingo. (O depoimento de dona Alice está em Memória e sociedade: lembranças de velhos, de Ecléa Bosi.)
A história da menina Alice não era a única. Nessa época crianças de até cinco anos trabalhavam, inclusive durante a noite! Em muitas fábricas foram instaladas máquinas bem pequenas só para aproveitar o trabalho da gente miúda.
Dois pequenos jornaleiros cariocas (1889)
O trabalho de mulheres como Luzia e Alice era o que mais tinha. Nas indústrias têxteis, por exemplo, mais de 60% dos operários eram mulheres.
O momento de folga era o da refeição. Junto às máquinas ou nas calçadas, centenas de trabalhadores abriam suas marmitas frias. Em todas elas arroz, feijão e macarrão. Carne, leite, ovos era uma raridade. Ainda assim os operários não perdiam o humor:
- Bom, seu moço, já é melhor que "almoço de assovio"!
- Café com leite e pão com manteiga. Quem não traz a bóia de casa tem que se safar é com isso!
"Seu" Manoel Alves da Rocha, metalúrgico aposentado, também se lembrou de muitos acontecimentos de sua vida de trabalho, iniciada aos dez anos de idade:
- O trabalho mais perigoso e mal pago era na indústria de fundição. Os acidentes ocorriam quase que diariamente. A jornada de oito horas, conseguimos depois de muitas greves: mesmo assim, a cada passo era burlada pelos patrões. Nos casos de acidentes e de doença, a Santa Casa de Misericórdia prestava alguns socorros aos trabalhadores. Mas... era caridade humilhante. Ofendia!
Para "seu" Manoel, o pior trabalho era o dos caldeireiros:
- Só os da profissão podiam avaliar o que passavam os caldeireiros! Os navios chegavam com defeitos nas caldeiras. Os operários caldeireiros, para fazerem os reparos, tinham que enrolar-se em sacos de juta molhados. Conseguiam, deste modo, entrar na caldeira, atenuando a temperatura. Dificilmente escapavam de uma enfermidade, tendo alguns morrido, sem que lhes fosse dada a menor assistência por parte das empresas ou de quem quer que fosse. (Depoimento transcrito em Alvorada Operária, de Edgar Rodrigues.)
Dona Luzia, Dona Alice e "Seu" Manoel também foram pioneiros da nossa indústria. Afinal de contas, sem o trabalho de gente como eles, não haveria produção. Mas sua situação era diferente da dos Matarazzo, dos Crespi, dos Siciliano: eles eram simples trabalhadores que viviam apenas de seus salários.
Operários de uma tecelagem em São Paulo. Início do século XX
Os trabalhadores das fábricas, em sua grande maioria, não tinham frequentado colégios. Também não moravam em mansões de ruas calçadas e com luz elétrica. No Rio de Janeiro, eles habitavam os cortiços existentes no centro da cidade e em bairros como Gamboa, Saúde, Glória, Catete, Gávea e Laranjeiras: outros iam morar nas favelas, que começavam a se formar nos morros da cidade, ou nos subúrbios da Zona Norte, que também cresciam estimulados pelo movimento das ferrovias. Em São Paulo, a população trabalhadora concentrava-se nos bairros do Brás, Bexiga, Barra Funda, Mooca, Bom Retiro e Belenzinho.
As dificuldades da vida operária vinham desde o final do século XIX, quando surgiram as primeiras indústrias. Os operários não tinham nenhuma lei que os protegesse.
Os patrões, que nem passavam perto dos empregados, não se interessavam por essas leis. E os primeiros governos da República achavam que não tinham a menor obrigação de dar assistência aos necessitados.
- Cada pessoa deve cuidar de si com seus próprios recursos e com seus próprios méritos. Nossa sociedade é uma sociedade livre, onde todos têm as mesmas oportunidades. Vencem os mais capazes - costumava afirmar a elite intelectual daquela época, inclusive aqueles que haviam lutado pela República.
Mas não eram todos os republicanos que pensavam assim. Logo nos primeiros anos da República, Lopes Trovão, um republicano radical, põe o dedo na ferida:
- Quem com olhos observadores percorre a capital da República vê, com pesar, que é na rua que boa parte da nossa infância vive, às soltas, ao abandono... Quantas crianças temos nós encontrado, isoladas ou em grupos, seminuas, maltrapilhas... acocoradas ou deitadas, durante o dia, no limiar das casas particulares? Ou a dormirem, à noite, nas escadarias dos edifícios públicos ou nos canos destinados à rede de esgotos? Quantas crianças temos encontrado a fumarem com o desembaraço que só o hábito confere? A beberem até o abuso... a jogarem a dinheiro nos passeios? A assaltarem, misturando-se com vagabundos, mendigos, ladrões que infestam a nossa cidade?
Quintino Bocaiúva, outro republicano histórico, também se preocupava com as crianças pobres. Um dia, ele perguntou num discurso:
- Onde encontra socorro nessa cidade a criança até os sete ou oito anos de idade? Quais as leis que possuímos para proteger, no melindroso estado de gravidez, as mulheres na indústria? Quais as leis que entre nós garantem a vida e a saúde dos recém-nascidos? Que leis protegem as crianças abandonadas? (As declarações de Trovão e Quintino estão no livro de A. Moncorvo Filho, Histórico da proteção à infância no Brasil, 1500-1922.)
Muitos trabalhadores achavam que toda essa pobreza era causada pela injustiça social. Por isso fizeram o mesmo que os proletários de outros países: começaram a se organizar por conta própria e a lutar para defender os seus direitos.
Uma das primeiras coisas que fizeram foi fundar associações para se proteger: no início, eram associações de socorro mútuo; depois, associações de resistência, de luta: as uniões operárias, as ligas e os sindicatos. A própria experiência ensinava aos trabalhadores que só lutando eles conseguiram melhorar os salários e as suas condições de trabalho. Na primeira década do nosso século, quase todos os trabalhadores - tecelões, gráficos, costureiras, metalúrgicos etc. - já tinham sua associação.
Naquela época, os principais líderes operários eram anarquistas e socialistas. Para eles, a miséria dos trabalhadores existia por causa da propriedade privada, que só uma minoria privilegiada possuía. O que fazer para acabar com a miséria e a injustiça social? Socialistas e anarquistas tinham a mesma resposta: passar as indústrias, o comércio e as fazendas para as mãos dos trabalhadores. Não são os trabalhadores que as fazem funcionar? Pois a propriedade coletiva - isto é, dos trabalhadores - daria a garantia de que os bens produzidos seriam distribuídos igualmente entre todos.
Os anarquistas não queriam a desordem e a bagunça [...]. Os anarquistas queriam uma sociedade sem governantes e governados. Sem Estado, portanto. E também sem exploradores e explorados. [...]
- A anarquia é a suprema expressão da liberdade e da justiça!
- A anarquia é uma sociedade livre sem senhores nem escravos. Nela o bem-estar e a felicidade, a terra e a riqueza, a ciência e a arte são patrimônios de todos!
Para os anarquistas, até a escola devia ser diferente. Muda a sociedade, muda tudo.
Queriam que elas fossem mistas, sem exames, sem castigos e privilégios. Ao invés da competição, a cooperação. ao invés de prêmios aos "superiores", a solidariedade e o bem-estar para todos; no lugar da obrigação, o prazer de estudar, a liberdade de pensar e criar. A velha ideia de que "com sangue a letra entra" não frequentava a escola dos anarquistas.
Muitos dos líderes anarquistas e socialistas eram europeus, como o pintor italiano Luigi Damiani, o "Gigi" Damiani, e o advogado português Neno Vasco, que escreveu várias peças teatrais. Outros eram filhos de imigrantes, como o tipógrafo Edgard Leuenroth.
As ideias revolucionárias eram pregadas também por brasileiros como o operário Everardo Dias, o professor José Oiticica e os jornalistas Astrogildo Pereira e Otávio Brandão.
Os anarquistas e socialistas fundaram jornais e revistas, criando uma imprensa operária. A polícia sempre arranjava um jeito de fechar esses jornais. mas eles sempre arranjavam um jeito de reabri-los.
Em todos os estados havia jornais operários: em São Paulo tinha A Plebe; A Terra Livre; O Livre Pensador; Aurora; O Amigo do Povo; La Barricata; A Rebelião; A Luta Operária. No Rio de Janeiro: A Greve; O Despertar; A Voz do Povo; O Libertário; Spartacus; Crônica Subversiva.
Apreensão do jornal Spartacus. Rio de Janeiro, 1919
A Nova Era e o Progresso Operário eram publicados em Minas. O Operário e O Regenerador, no Ceará. No Rio Grande do Sul tinha O Eco Operário. Em Pernambuco, O Homem Livre. No Pará, O Semeador. Em Santos, cidade de operários e de trabalhadores do porto, uma publicação muito lida chamava-se A Dor Humana.
RIBEIRO, Marcus Venício; ALENCAR, Chico. Brasil vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 68-73.