"Até pouco tempo atrás se pensava que a devassidão era uma exclusividade das cortes francesa ou inglesa. Esse é um mito que vem desaparecendo".
(Rubim Santos Leão de Aquino, historiador)
No jogging diário, cruzo com três senhoras encantadoras: chapeuzinho protegendo do sol, roupas coloridas e uma pergunta no ar: como se casava no passado? Existia casamento, véu, grinalda, noiva virgem e tudo o mais? Respondo à mais curiosa delas: dona Conceição, viúva e agora "noiva", prestes a se casar novamente. Durante muito tempo - explico-lhe - não era óbvio que o casamento fosse obrigatoriamente monógamo e fundado no consentimento de duas pessoas.
Primeiro, dona Conceição, o casamento cristão é tão antigo quanto o cristianismo. Invenção medieval, casar-se na igreja só tornou-se corrente entre os séculos XII e XIII, progressivamente, unificando costumes muito diferentes.
No Velho Testamento, narrativas sobre a criação fecham-se com cenas emblemáticas sobre essa questão. Deus criou para o homem uma companheira, "carne de sua carne", para que fizessem "uma só carne", multiplicando-se sobre a Terra. E o Novo Testamento parece querer privilegiar o celibato. Os homens deveriam fazer-se "eunucos voluntários", diz Mateus, enquanto Paulo insiste sobre o valor superior da castidade. A continência - não na teoria, mas na prática - é, ainda, glorificada pelo celibato exemplar de Cristo e a virgindade de Maria.
Santo Agostinho, no entanto, deu uma definição positiva do casamento e ajudou a Igreja a sair do impasse: o casamento é um bem pois foi instituído por Deus desde o início do mundo e elevado por Jesus Cristo ao papel sublime de representar sua própria união com a Igreja.
Desde o século VI, dona Conceição, benzia-se o casal à porta ou no quarto nupcial, primeiro sentados e depois deitados na cama. Bênção precedida de um rito de purificação. Os noivos eram aspergidos com sal e proibidos de manter relações sexuais de três a trinta dias. A liturgia refletia a doutrina: a sexualidade era abençoada mas devia sofrer, antes, uma "limpeza". Contudo, nos dez primeiros séculos do cristianismo, a bênção nupcial não era uma obrigação para os cristãos.
O casamento era, em princípio, um engajamento civil e, como tal, dependente de diferentes tradições jurídicas ocidentais. No Direito Romano, retomado pelos canonistas do século XII, era o consentimento entre esposos que fazia o casamento. No Direito Germânico, havia pelo menos dois tipos de matrimônio. Um, no qual o esposo recebia do pai ou da família a tutela de sua esposa, tutela que era retribuída pela entrega de um dote. O ritual era obrigatoriamente público e fazia-se de acordo com um cerimonial cuidadoso. E existia, ao mesmo tempo, outro tipo de união, também reconhecida pelo Direito, na qual não havia nem transferência da tutela nem a doação de dote. Marido e mulher podiam, pois, separar-se sem problemas.
No final do século XI, os ritos familiares celebrados em casa transferiram-se para a entrada da igreja, podendo ou não ser seguidos da missa romana. O papel do padre foi se modificando, dona Conceição. De juiz da liberdade com o qual os esposos se escolhiam, ele passou também a entregar a jovem esposa ao futuro marido - antes, uma obrigação do pai, que os incitava a manter as mãos unidas. Já o padre dizia: "eu vos uno etc..." Foi quando apareceu o anel como símbolo da fidelidade e do amor, laço de unidade conjugal.
Em finais do século XII, o ritual do casamento era praticado em toda a Europa cristã. Justificado pelo Direito Canônico e pela teologia cristã, tinha sua própria liturgia, que reservava ao padre um papel muito importante. O consentimento válido não era mais o das famílias mas o dos noivos.
Como é que se casava no Brasil, há 300 anos, dona Conceição? Pelas leis da Igreja, aos 14 anos os rapazes podiam se casar; as meninas estavam aptas a partir dos 12 anos. Mas essa não era a regra. Estudos comprovam que, no Sudeste, a idade média era de 21,6 anos para os homens e 20,8 para as mulheres. Casamentos e batizados numa mesma família costumavam realizar-se no mesmo dia, sobretudo no interior. O padre ia à capela da fazenda e, num só dia, realizava as duas cerimônias.
Casamento de negros de uma casa rica, Debret. [Uniões formais eram frequentes, mas sem "mistura de raças"]
Ao voltar para casa, os noivos eram recebidos com tiros de mosquetão, foguetes e cantorias que louvavam a comezaina e o baile que se seguiriam. Uma semana depois, um almoço ou "boda" encerrava as festas, que tinham farta distribuição de rapadura, aguardente e eram animadas por batuques e repeniques de viola. As pessoas evitavam casar-se no dia de Sant'Ana (26 de junho), pois acreditava-se que a noiva estaria fadada a morrer de parto. A superstição impedia ainda que as noivas vissem ou provocassem sangue, matando ave ou ajudando na cozinha, ou que saíssem de casa ou olhassem para trás no caminho da igreja.
Entre ciganos, no século XIX, após realizada a cerimônia na igreja, o casal dirigia-se à casa da esposa para a bênção paterna. Ali, a noiva recebia do parente mais velho uma camisa recoberta de bordados, que lhe era cobrada no dia seguinte com as marcas de sua virgindade. Espécie de "troféu do hímem", segundo um viajante estrangeiro de passagem pelo Brasil.
A propósito, dona Conceição, virgindade não era o forte das noivas no período colonial, época em que muito poucas tinham condições financeiras de pagar um vestido nupcial para ir à igreja e em que a maioria entregava-se ao noivo nas redes e quintais das casas em troca de "promessa de casamento". O vestido, o buquê e a valorização da castidade feminina só chegaram no século XIX com o crescimento do modo de vida e dos valores burgueses.
Costumes no Rio de Janeiro, Rugendas. [Alcoviteira: o sexo antes do casamento era mais comum do que se imagina]
Logo, em sua condição de viúva, posso assegurar-lhe que "historicamente" a senhora não representa novidade! Não se preocupe com grinalda, nem véu branco... e muitas felicidades, dona Conceição!
PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 33-36.
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