Revolta do Vintém. Caricatura de Angelo Agostini
Tião Carga d'Água era um negrão simpático. No seu burrico ele levava barris e vendia água para toda a gente de Quipapá. Quem não conhecia o Tião naquela cidadezinha do interior de Pernambuco?
Pois num dia de feira o Carga d'Água virou "atirador de rapaduras". Tudo começou com um bate-boca. De um lado, os feirantes inconformados, pois julgavam que o governo havia criado novos impostos:
- A gente dá um duro danado para tirar da terra o que vende e o governo ainda cria novas taxas?
De outro lado, os funcionários do Império: eles tentavam explicar que não se tratava de impostos, mas sim de um novo sistema de pesos e medidas, o sistema métrico decimal.
Quem vai entender? Quem aceitaria?
O tempo foi esquentando, e Tião Carga d'Água, junto com outros populares, entrou na briga. Se era contra o governo, podiam contar com ele! Logo o delegado baqueou com uma rapadura que lhe atingiu a testa, sendo amparado por seus soldados. Os feirantes ficaram mais animados ainda:
- Vamos botar esses ladrões para correr! Fora, cambada do governo!
No ano de 1874 conflitos como o de Quipapá ocorriam em muitas outras cidades do interior de Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Onde as autoridades chegassem para implantar o novo sistema de pesos e medidas os protestos explodiam. Era a Revolta do Quebra-Quilo.
Como fogo em capim seco, a desobediência se alastrava. Os mais exaltados jogavam longe os pesos que o governo de D. Pedro II havia mandado, enquanto os arquivos das Coletorias e Cartórios, onde estavam guardadas as listas dos devedores, eram destruídos.
Manuel do Carmo era tão simpático e popular como o Tião de Quipapá. Só que era escravo e trabalhava na terra. Morava em Campina Grande, na Paraíba.
Ele e seus companheiros de cativeiro cercaram a casa-grande do Sítio Timbaúba:
- Nós qué sabê pruquê os nossos fio continua trabaiando como escravo!
Pela Lei do Ventre-Livre, em 1871, os filhos das escravas nascidos daquele ano em diante deviam estar em liberdade. O capataz mostrou um livro de registro. Nele, para surpresa dos negros escravos, não havia anotação de nenhum nascimento depois de 1871... Dessa forma nenhuma criança negra poderia estar livre!
Manuel do Carmo e os outros negros, que já não acreditavam muito nas leis do governo, ficaram furiosos. Naquela mesma noite eles reuniram todos os escravos, inclusive as crianças de peito, e fugiram para a mata. Quebravam à força a gaiola da escravidão.
Nas últimas décadas do século XIX, o Nordeste estava mesmo agitado. Pequenos roceiros revoltavam-se, escravos reagiam, havia descontentamento por toda parte. E uma seca terrível tornava a situação ainda mais grave. Os grandes fazendeiros, com os seus jagunços e a ajuda da política, trataram de se defender:
Toca, toca, minha gente
Toca, toca a reunir
Que os matutos quebra-quilos
Por aí não tardam a vir!
A violência contra os matutos e os escravos rebeldes foi enorme. Era preciso "manter a ordem", diziam as autoridades e os fazendeiros. Inúmeras prisões ocorreram e alguns presos morreram cruelmente. Eles foram obrigados a vestir um colete de couro fresco, que encolhia com o calor e os sufocava lentamente!
Mas o sofrimento e a revolta não existiam só no Nordeste.
O Rio de Janeiro, capital do Império, não era nenhum paraíso. Dos seus 235 mil habitantes, cerca de 50 mil eram escravos e 40 mil eram pessoas muito pobres, que viviam de biscates e esmolas. Havia também milhares de brancos, mestiços e negros livres obrigados a trabalhar 10, 12, às vezes 14 horas diárias, recebendo, em troca, míseros salários. Eram comerciários, trabalhadores do porto e operários das manufaturas e das primeiras fábricas que surgiam. Muitos deles eram estrangeiros e tinham vindo "tentar a sorte" no Brasil.
Boa parte dessa gente morava em habitações coletivas - as casas de cômodos e os cortiços - do centro da cidade. As condições dessas habitações eram péssimas. Os quartos eram pequenos, não tinham janelas e havia um só banheiro para várias famílias que lá moravam. Tudo contribuía para as epidemias de febre amarela, tifo, varíola, tuberculose e diarréia.
Os donos dos cortiços eram portugueses bem-sucedidos no comércio. Ou barões e viscondes que não queriam mais morar no centro. Ou mesmo instituições de caridade, como a Santa Casa de Misericórdia. Para todos esses, o negócio era lucrar, mesmo às custas da saúde da população.
A alimentação do povo da Capital chegava a ser pior que a dos pobres do interior. Quem podia pagar os preços da carne, depois que ela passava pelas mãos de poderosos comerciantes intermediários?
Sobravam no prato o feijão, a farinha e a carne-seca. E a laranja ou banana na sobremesa. Faltavam as proteínas da carne fresca, do leite e dos ovos, o ferro e as vitaminas das verduras e de muitas outras frutas.
Na cidade de São Paulo, um número menor de pessoas vivia nessas condições. Mas só por um motivo: menos gente morava aí... Essa que hoje é a maior cidade brasileira não tinha, em 1880, mais que 80 mil habitantes.
Como no Rio de Janeiro, a maioria da população era subnutrida e vivia em choupanas ou cortiços que só agradavam mesmo os ratos. Quando os rios Tietê e Tamanduateí transbordavam, devido às chuvas, inúmeras famílias ficavam desabrigadas.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, alguns não sentiam na carne esses problemas. Eram as famílias das classes abastadas, que moravam em confortáveis chácaras, comiam do bom e do melhor e se vestiam elegantemente. Pareciam viver em outro país.
O que pensaria Tião Carga d'Água ao ver aquela gente passeando num coupé - um veículo fechado, de quatro rodas, puxado por dois burros bem tratados? E o que dizer daquele milionário extravagante, que mandou vir da África uma parelha de zebras para puxar sua carruagem?
Morando e comendo mal, parte da população do Rio de Janeiro ao menos podia viajar nos bondes puxados a burro, um meio de transporte coletivo. Mas certas madames condenavam:
- É imperdoável deslize de polidez misturar pessoas de hábito educado com gente do povo!
Um senhor, que já começava a se destacar como político e advogado da "Light" - companhia que passou a explorar todas as linhas -, não pensava assim:
- O bonde foi a salvação da cidade, o grande instrumento de seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona urbana, arejando a cidade e tornando possível a moradia fora da região central. Se não existisse, era preciso inventá-lo.
Esse senhor era Rui Barbosa. Apesar de tantos elogios aos bondes, ele não dispensava, no entanto, sua chique carruagem modelo landau...
Pois o bonde, a "salvação da cidade", foi o estopim de um conflito que fez a Corte parecer o sertão do Quebra-Quilo! No primeiro dia de 1880 o governo deu um "presente de ano novo" para a população carioca: aumentou as passagens dos bondes em 20 réis...
Morar mal, comer pior e ainda por cima ter que pagar mais pelo transporte era insuportável!
Daí, cerca de quatro mil pessoas decidiram ir até a Quinta da Boa Vista, para entregar um "Manifesto ao Imperador". Lá encontraram a polícia, que lhes barrou o caminho. Disposta assim mesmo a impedir o aumento, a multidão reuniu-se no Campo de São Cristóvão, iniciando um grande comício de protesto. A cavalaria imperial atacou os manifestantes, e eles reagiram. Era o começo da "Revolta do Vintém".
Para se defender, o povo atirou pedras na polícia, arrancou trilhos e quebrou muitos bondes. Os tumultos duraram três dias e estenderam-se por vários bairros da cidade, como se em cada um houvesse um barril de pólvora. Diversas lojas foram saqueadas. De forma desordenada e explosiva, a população mostrava que daquele jeito não era possível viver.
A "Revolta do Vintém" só terminou quando o Exército entrou em ação. Nas ruas da cidade, semidestruída pela rebelião popular, havia dez mortos.
O imperador explicou-se:
- É a primeira vez que sucede isso no Rio, desde 1840. Há quase quarenta anos que presido esse governo, sem que houvesse necessidade de atirar no povo. Mas que remédio? A Lei tem que ser respeitada.
Os belos e calmos dias do Segundo Reinado estavam no fim. É o que pareciam mostrar acontecimentos como a Revolta do Quebra-Quilo e a Revolta do Vintém. Não era à toa que a cabeça do imperador ficava cada dia mais branca...
ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 146-148.
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