"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Corpo a corpo com as mulheres

Jovens mulheres tomando banho, Henri-Pierre Picou 

Produto social, produto cultural e histórico, nossa sociedade fragmentou o corpo feminino e o recompôs, regulando seus usos, normas e funções. Nos últimos cem anos, a mulher brasileira viveu diversas transformações físicas. Viu ser introduzida a higiene corporal, que alimentada pela revolução microbiológica transformou-se numa radicalização compulsiva e ansiosa. Acompanhou a invenção do batom, em 1925, do desodorante, nos anos 1950. Nos anos 1920, cortou os cabelos "à la garçonne", gesto sacrílego contra vastas cabeleiras do século XIX. O aprofundamento dos decotes levou-a a aderir à depilação. O espartilho, graças ao trabalho feminino nas fábricas, diminuiu e se transformou em sutiã para possibilitar maior movimentação dos braços. "Manter a linha" tornou-se um culto. A magreza ativa foi a resposta do século XX à gordura passiva da belle époque. O jeans colado e a minissaia sucederam, nos anos 1960, o erotismo da mão na luva e das saias no meio dos tornozelos característicos dos anos 1920. Com o desaparecimento da luva, essa capa sensual que funcionava ao mesmo tempo como freio e estímulo do desejo, surgiu o esmalte de unhas. No decorrer do século XX a mulher se despiu. O nu, na mídia, nas televisões, nas revistas e nas praias, incentivou o corpo a desvendar-se em público, banalizando-se sexualmente. A solução foi cobri-lo de cremes, vitaminas, silicones e colágenos. A pele tonificada, alisada, limpa, apresenta-se idealmente como uma nova forma de vestimenta, que não enruga nem "amassa" jamais. Uma estética esportiva voltada ao culto do corpo, fonte inesgotável de ansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sensualidade imaginária e simbólica. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho. "Liberar-se" tornou-se sinônimo de lutar, centímetro por centímetro, contra a decrepitude fatal e, agora, culpada, pois o prestígio exagerado da juventude tornou a velhice vergonhosa.

O corpo feminino passou também por uma revolução silenciosa nas últimas três décadas. A pílula anticoncepcional permitiu-lhe fazer do sexo não mais uma questão moral, mas de bem-estar e prazer. A mulher tornou-se, assim, mais exigente em relação ao seu parceiro, vivendo uma sexualidade mais ativa e prolongada. Entre os sexos surgiram normas e práticas mais igualitárias. A corrente de igualdade não varreu, contudo, a dissemetria profunda entre homens e mulheres na atividade sexual. Quando da realização do ato físico, desejo e excitação física continuam percebidos como domínio e espaço da responsabilidade masculina. O casal raramente reconhece a existência e a autonomia do desejo feminino, obrigando-o a esconder-se atrás da capa da afetividade. A famosa "pílula azul", o Viagra, só veio a reforçar o primado do desejo masculino, explicitando uma visão física e mecanicista do ato sexual, reduzido ao bom funcionamento de um único órgão. Revanche masculina contra o "domínio de si" que a pílula anticoncepcional deu à mulher?

O espaço privado no qual tais mudanças se impuseram também mudou. A brasileira saiu do campo e veio para a cidade. Teve de mudar o corpo e alma. Em meio à solidão da grande cidade, ao trânsito, à corrida contra o relógio, aprendeu a sonhar com a emoção do sentimento sincero, com o fantasma da interação transparente e fusional. Leu preferencialmente romances e livros de auto-ajuda, sempre à espera de um príncipe encantado que a levasse de volta ao século XIX. Mas aprendeu também que, neste mundo de competição e trabalho, os sentimentos intensos demais provocam horrível embaraço, e que as lágrimas e a dor devem se submeter a implacável discrição afetiva; a um tal de "self control". Sob o choque da modernidade capitalista, ela viu igualmente a família se modificar. A crescente dissolução de casamentos que duram cada vez menos, o aumento de divórcios que não impedem ninguém de recomeçar constituíram-se em novo cenário para as relações afetivas. É o fim de um mundo constituído por vastas parentelas, famílias enormes, sobrinhos e afilhados reunidos nos domingos para o almoço; onde residem tensões mas também, e sobretudo, solidariedades. Ocupando cada vez mais os postos de trabalho, a mulher vê-se na obrigação de buscar um equilíbrio entre o público e o privado. Tarefa fácil? Não. O modelo que lhe foi oferecido como exemplo, até bem pouco tempo atrás, era o masculino. O modelo feminino de supermulher dos anos 1980, calcado sobre um modelo de forte investimento profissional e de competição, era o de "um homem como nós", como diriam alguns patrões. Mas a "executiva de saias" não deu certo. Isso porque são numerosas as dificuldades e os sacrifícios da mulher quando ela quer conciliar seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar conta do que sociólogos chamam de "dobradinha infernal". A carga mental em que se constituem as imbricações e sucessões de atividades profissionais, o trabalho doméstico, a educação dos filhos é mais pesada para ela do que para o homem. Quando quer investir profissionalmente, ela acaba por hipotecar sua vida familiar ou usar todo tipo de astuciosa bricolagem, sacrificando o tempo livre que teria para seu prazer e seu lazer e que poderia ser vivido na esfera doméstica. Muitas mulheres, menos afortunadas, são assim empurradas para uma pesadíssima jornada de trabalho

O diagnóstico das revoluções femininas no século XX é, por assim dizer, ambíguo. Ele aponta para conquistas, mas também para armadilhas. No campo da aparência, da sexualidade, do trabalho e da família houve conquistas, mas também frustrações. A tirania da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. A revolução sexual eclipsou-se diante dos riscos da aids. A profissionalização, se trouxe independência, trouxe também estresse, fadiga e exaustão. A desestruturação familiar onerou sobretudo os dependentes mais indefesos: os filhos. Como lidar com essas tensões? Em países onde tais questões já foram discutidas há algum tempo, a resposta veio como proposta para o século XXI: uma nova ética para a mulher. Que ética seria essa?

Uma ética baseada em valores absolutamente femininos. Me explico. De Mary Wollstonecraft, no século XVIII, à Simone de Beauvoir nos anos 1950, o objetivo do feminismo foi provar que as mulheres são "homens como os outros" e devem, consequentemente, beneficiar-se de clientes iguais. Todavia, numerosas vozes levantaram-se, no final do último milênio, para denunciar os conteúdos abstrato e falso dessas ideias. Elas nunca levaram em conta as diferenças concretas entre os sexos, incentivando as mulheres a conformar-se a um modelo concebido por e para homens. Para lutar contra a subordinação das mulheres, essa nova ética considera que não se deve implicitamente adotar os valores masculinos para parecer-se mais aos homens. Mas que se deve, ao contrário, repensar não somente a indiferença em relação aos interesses femininos, mas, sobretudo, o desprezo pelas virtudes tradicionalmente femininas.

[...]

Entre a herança dos anos libertários de 1968 e o desenvolvimento de um pensamento pós-moderno, os valores ditos "femininos" fizeram sua intrusão e são cada vez mais apreciados socialmente. A negociação e a mediação como modos de resolução dos conflitos são preferíveis ao autoritarismo, até nas práticas de certos dirigentes políticos. A cooperação e a solidariedade, sobretudo a assistência ao outro, esvaziam o espírito de competição e egoísmo. A educação pedagógica toma o lugar, pouco a pouco, das antigas formas de disciplina repressivas. Nas sociedades ocidentais, esse processo de "feminização" começou a aparecer tanto na organização do trabalho quanto nos modos de vida, nas formas de consumo ou de comunicação. Eis porque começamos a ver na propaganda a publicidade de "homens voltados para a vida privada", desejosos de se apropriar do que era considerado um atributo das mulheres. Não há dúvida que aquelas que o filósofo Edgard Morin descreveu como "as agentes secretas da modernidade" tornaram-se as principais personagens das mudanças estruturais em nossas sociedades.

A passagem do século XX para o XXI parece marcar uma ruptura na história da invisibilidade das mulheres. Só lhes falta uma participação maior na representação política. [...]

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 99-102, 105.

Nenhum comentário:

Postar um comentário