No vagão, Joel Kass
Desde os tempos mais recuados, os homens mostraram-se
capazes de criações admiráveis. Mas cometeram os crimes mais odiosos. Os mais
fortes dominaram os mais fracos. Homens reduziram à escravatura e massacravam
outros homens, mulheres e crianças. E para mais, há só dois séculos que se
impôs pouco a pouco a ideia de que todos os seres humanos, não importa a sua
origem, a cor do rosto ou as suas crenças, têm o mesmo direito à vida, à
justiça e ao respeito.
No entanto, no século XX, as guerras tornaram-se mundiais,
milhões de pessoas foram e continuam a ser assassinadas através de terríveis
genocídios. A tentativa de Hitler de exterminar de um modo organizado e
industrial todos os judeus da Europa é como que um auge do Mal na História.
Pode-se tentar compreender como forças más, vindas de todas
as épocas, se reuniram na Shoah, e como estas continuam a circular entre nós.
Massacre, Joel Kass
[O que é um ser humano?] Durante milhares de anos, para o
membro de uma tribo, de uma aldeia, o "homem", o ser humano, era
aquele que vivia como ele próprio, a seu lado, e que tinha a mesma língua e os
mesmos hábitos. Em muitas tribos a palavra "homem" designava os
membros do grupo. Aos das outras tribos, ou das aldeias longínquas, não
chamavam "homens", mas "malvados", "maus", ou
ainda "macacos de terra", "ovos de piolhos"...! O
estrangeiro era também um "fantasma", uma "aparição".
Para os gregos, os "bárbaros" (barbaroi) eram os estrangeiros. Aqueles cuja língua se não percebia. E o filósofo Aristóteles escrevia que os bárbaros tinham nascido para ser escravos.
Para os gregos, os "bárbaros" (barbaroi) eram os estrangeiros. Aqueles cuja língua se não percebia. E o filósofo Aristóteles escrevia que os bárbaros tinham nascido para ser escravos.
A entrada para o forno, Joel Kass
[A divisão dos homens] Durante a Antiguidade, os que eram
ricos, os que tinham o poder, os que conheciam a escrita e eram instruídos
foram, por todo o lado, apenas um pequeno número de homens (quase não houve
mulheres) entre a multidão de pessoas. Na Europa, a cristandade tinha-se
organizado em torno das "ordens": os homens da Igreja, os senhores e
os trabalhadores.
Os "instruídos" ignoravam ou desprezavam aqueles
que designavam como "vilões", ou seja, os que trabalhavam com as
mãos. No entanto, era esse mesmo trabalho que alimentava os instruídos, que os
vestia, e esses trabalhos manuais também exigiam saber. Mas, na cabeça dos
poderosos, havia, contudo, o alto e o baixo, os homens que acreditavam ser
superiores e os inferiores.
Na Índia, a sociedade também estava dividida em castas. Nas
cidades do mundo muçulmano havia pobres e ricos, letrados e mendigos. Mas não
havia "ordens" como na cristandade.
Em frente do forno, Joel Kass
[A rejeição dos homens "selvagens"] Na Idade
Moderna, depois da "descoberta" da América e dos "índios" a
que os europeus chamaram "selvagens", os espanhóis enviaram comissões
de inquérito às Antilhas para se certificarem se os habitantes possuíam, ou
não, uma alma. Quanto aos antilhanos, estes observavam os cadáveres dos brancos
para verem se estes apodreciam como os seus. O cristianismo tinha afirmado que
todos os homens descendiam de Adão, logo de Noé, após o Dilúvio. Os cristãos
podiam pensar, assim, que os homens formavam uma única grande
"família". Mas eles justificaram a escravatura dos negros dizendo que
estes descendiam de Cham, o filho maldito de Noé.
Carregando o morto, Joel Kass
[Diferentes, logo inferiores] Durante a grande rearrumação
de ideias nos princípios da Idade Moderna, pôs-se o problema de saber se os
índios da América também descendiam de Adão e a que filho de Noé ligar a sua
ascendência. Alguns de entre os homens das Luzes punham em questão a autoridade
da Bíblia. Mas todos estavam preocupados com o problema dos negros. Muitos
pensavam que os "negros" (palavra inventada no século XVI) eram
inferiores aos brancos. Na sua discussão, utilizavam também uma palavra nova,
raça. Eles deram-lhe então, mais ou menos o mesmo sentido que nação, tal como
esta era compreendida na Antiguidade, dado que aplicavam a noção de raça a
todos aqueles que descendiam de uma mesma família, de um mesmo povo. A ideia
dos direitos do homem foi contrariada pelo racismo e pelo anti-semitismo,
quando estes apareceram na Europa do século XIX, entre certos escritores
franceses, alemães e austríacos.
O Iluminismo conduziu às afirmações dos revolucionários
americanos, depois às dos revolucionários franceses sobre a igualdade entre os
homens. No entanto, foi na Época das Luzes que começou a espalhar-se a ideia de
desigualdade entre as raças, totalmente contrária aos direitos do homem, e os
europeus afirmaram a sua pretendida superioridade sobre os outros.
Crucificado, Joel Kass
[Ciência, raça e racismo] Durante todo o século XIX,
utilizou-se muito a palavra "raça" dando-lhe um sentido novo, um
sentido "biológico". A ciência tinha-se desenvolvido. Alguns sábios
tinham-se lançado em cálculos, mediam os crânios dos humanos para daí deduzirem
a inteligência de cada um e comparavam as cores da pele. Outros estudavam as
línguas. O francês Ernest Renan, que tinha muita influência, afirmava que,
entre os brancos, havia dois grandes grupos de línguas, logo, de
"raças": os arianos (os germanos e os celtas) e os semitas (os árabes
e, sobretudo, os judeus). A "raça ariana" dizia ele, seria o futuro
da humanidade, enquanto a "raça semita" - ele também falava de
"raça judaica" - tinha o cérebro atrofiado.
Na Antiguidade, os cristãos tinham perseguido os judeus
porque estes eram "infiéis". Na Idade Moderna, o anti-semitismo
entroncou no antijudaísmo cristão. O anti-semitismo tornou-se algo de diferente
porque se misturou com o racismo e com certas formas de nacionalismo.
Velhas memórias, Joel Kass
[Como o racismo e o anti-semitismo se misturaram com o
nacionalismo] Depois da Revolução Francesa, os judeus tornaram-se cidadãos como
os outros. Participavam nas eleições e no grande desenvolvimento da indústria.
O anti-semitismo apoiava-se nos sábios que pretendiam que as raças não eram iguais.
Os anti-semitas diziam que os judeus eram uma "raça" diferente das
outras, má e prejudicial.
O nacionalismo era uma espécie de nova religião. Era
acreditar não somente que a nação era superior a tudo, mas que esta deveria ser
pura, e que estava "manchada" pela presença dos judeus e dos
estrangeiros. Na França, os manuais de história, que asseguravam que todos os
franceses descendiam dos gauleses, desenvolveram assim o nacionalismo através
da ideia falsa de que os verdadeiros franceses, os franceses de cepa,
descendiam apenas dos "gauleses".
[...]
[...] Desde o século XIX até a Segunda Guerra Mundial,
muitos estrangeiros tinham imigrado para França. Alguns tinham vindo para
trabalhar, outros, nomeadamente os judeus da Europa central, tinham fugido a
perseguições nos seus países. Entre as duas guerras, alguns jornais franceses
estavam cheios de insultos anti-semitas e xenófobos (contra os estrangeiros).
Foram esses jornais e essas pessoas que, mais tarde, "colaboraram"
com Hitler durante a Ocupação e aprovaram as suas acções contra os judeus.
O anti-semitismo conduzira Hitler e os nazis a essa loucura
criminosa de que Auschwitz é bem o símbolo.
[...]
Desde o Paleolítico que os homens foram migrantes. As
migrações continuarão e acelerar-se-ão no século XXI porque o mundo, na Idade
Electrónica, é uma aldeia planetária onde toda a gente comunica, mesmo que as
fronteiras existam e mesmo que continuem absurdas guerras para a defesa de
algumas delas.
[...]
CITRON, Suzanne. A História dos Homens. Lisboa: Terramar,
1999. p. 321-325, 328, 331.
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