"Roma legou ao Ocidente sua estrutura política, administrativa e jurídica. Ela define as fronteiras, a articulação geográfica, a rede de comunicações, mas não trouxe nada de novo para a ordem intelectual e espiritual. A cultura grega, nascida da cidade, elevou-se com o Estoicismo e o Epicurismo, até o grau do Império. Os romanos não aumentaram esse tesouro, que assimilaram pelo direito de conquista. Na realidade eles foram bárbaros que galgaram uma posição. Mais dotados do que os que vieram depois, trouxeram a autoridade que dá a paz, a técnica que assegura a posteridade. Mas a grande organização romana conserva, quanto ao essencial, uma alma helênica." (GUSDORF, G. Introduction aux Sciences Humaines. Paris: Belles Lettres, 1960. p. 43.)
[...]
Na Antiguidade Clássica, a concepção que se tinha da relação entre o ser que compreende e os seres compreendidos se caracterizava por certa ausência de consciência que o sujeito possui nesta relação.
Vejamos o que isto quer dizer: de certa forma o Homem se sentia subordinado à Natureza. Para ele, a Natureza era uma presença e o sábio era, na verdade, apenas o guardião do que fosse revelado a ele pela Natureza. O sábio era, segundo os gregos, o guardião da alethéia, isto é, guardião da revelação da verdade.
Ora, devido a esses dois traços da relação sujeito-objeto da Antiguidade, qual seria a forma de fixar os conceitos?
Se a Natureza se revelava ao sujeito, o trabalho deste era apenas o de constatar o real e, portanto, os conceitos eram fixados de forma categorial, inquestionáveis. Eram como verdades absolutas, frutos de uma revelação, e, por isso, não competia ao sábio nem a ninguém questioná-las, mas apenas aprendê-las e transmiti-las.
[...] Esta forma de abordar a realidade fez com que durante muito tempo os estudiosos da cultura clássica teimassem em afirmar que na Antiguidade não houve experimentação - ou seja, segundo alguns, os gregos não se teriam preocupado em experimentar a exatidão das suas ideias, dos seus conceitos.
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[...] A experimentação também existiu na Antiguidade, apenas de forma diferente, ou melhor, uma experimentação que estava de acordo com a forma de conceber a realidade e a relação sujeito-objeto e com a forma de fixar os conceitos. Entre os gregos, a experimentação tinha caráter probatório, ou seja, eles se voltavam para a Natureza apenas para ver mais uma vez o que já havia sido revelado, para comprovar o que já sabiam, para constatar uma presença, ou seja, para constatar o real, aquilo que se apresentava.
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Hoje não nos é difícil compreender... Se tantos estudiosos cometeram esse erro é sinal de que estudaram a Antiguidade imbuídos da concepção moderna de Ciência. Ou seja, para esses estudiosos, experimentação era sinônimo de verificação e, por isso, não a encontraram na Antiguidade. Para eles a experimentação só podia ter o caráter de verificação.
Ora, certamente, você está raciocinando: para que esse tipo de experimentação existisse era necessário que a relação sujeito-objeto fosse outra, e, ainda, que a concepção que se tinha do real também fosse outra. Exatamente!
Na modernidade, a experimentação verificadora era a consequência lógica de uma nova relação sujeito-objeto: o Homem afirmou-se como o sujeito por excelência, como o elemento que avança em direção a alguma coisa e que se assegura dela - o Homem é o elemento que elabora o real, intervém no real e se assegura do real como um objeto. Em outras palavras, na modernidade, o Homem toma o lugar do sujeito, e isto é reconhecido conscientemente. Logo, o real passou a ser aquilo que se apresenta, aquilo que o sujeito procura conhecer e representar, e a todo instante deve verificar se os conceitos que emite sobre o real estão corretos, ou seja, se são a representação correta da realidade. Assim, a experimentação verificadora corresponde a uma fixação hipotética dos conceitos por um sujeito que se assumiu como tal.
[...] quando falamos em modernidade estamos nos referindo à Idade Moderna, período em que a estrutura mental do Mundo Ocidental passou por uma viragem importantíssima - o antropocentrismo pregado pelos humanistas (como reação ao teocentrismo medieval) foi integralmente assumido, e para isso muito contribuiu o Renascimento. Esse movimento intelectual, que buscou inspiração nas obras da Antiguidade Clássica, favoreceu o desenvolvimento da Ciência moderna, a qual, retomando os caminhos seguidos por Sócrates, Platão e Aristóteles, passou a supervalorizar a Razão.
[...]
No período medieval, durante o qual o Escravismo deu lugar ao Feudalismo, a Igreja Católica Apostólica Romana assumiu enorme poder econômico e político, o que lhe garantiu a predominância ideológica: a Igreja, para se estruturar ideologicamente, fundamentou-se no classicismo greco-romano e realizou a síntese teológica medieval, conciliando a fé cristã com a Lógica aristotélica. Os humanistas, no início da Época Moderna, como reação ao teocentrismo medieval - Deus como centro de todas as coisas - retomaram o estudo das obras greco-romanas, situando-as, porém, em uma perspectiva antropocêntrica - o Homem como centro de todas as coisas. [...]
A perspectiva antropocêntrica significaria retomar a forma de abordagem da realidade apresentada pelos Sofistas? O Homem é a medida de todas as coisas..., disse Protágoras. Essa perspectiva foi assumida, porém, enquadrada na linha do pensamento de Sócrates: valorizar o lado espiritual do Homem, valorizar o mundo das Ideias, valorizar no Homem, não a sua capacidade sensível de perceber a realidade mutável, mas a sua capacidade intelectual, capacidade de raciocinar sobre a realidade.
O processo se deu da seguinte forma: se o Homem é o centro de todas as coisas, e não mais Deus, precisa-se valorizar aquilo que faz o Homem, ou seja, aquilo que o distingue dos outros animais e que o assemelha a Deus. O que deve, então, ser valorizado? Isso mesmo, a Inteligência, a Razão.
O século XVII foi, então, a época do Racionalismo, escola filosófica fundada por Descartes que ainda hoje influencia, de maneira decisiva, nossa apreensão da realidade. Segundo Descartes, o Homem deve depurar-se de todas as sensações, atributos que são resquícios animalescos, para chegar à perfeição: só a Razão pura assegura o conhecimento da realidade.
Ora, certamente, você está raciocinando: para que esse tipo de experimentação existisse era necessário que a relação sujeito-objeto fosse outra, e, ainda, que a concepção que se tinha do real também fosse outra. Exatamente!
Na modernidade, a experimentação verificadora era a consequência lógica de uma nova relação sujeito-objeto: o Homem afirmou-se como o sujeito por excelência, como o elemento que avança em direção a alguma coisa e que se assegura dela - o Homem é o elemento que elabora o real, intervém no real e se assegura do real como um objeto. Em outras palavras, na modernidade, o Homem toma o lugar do sujeito, e isto é reconhecido conscientemente. Logo, o real passou a ser aquilo que se apresenta, aquilo que o sujeito procura conhecer e representar, e a todo instante deve verificar se os conceitos que emite sobre o real estão corretos, ou seja, se são a representação correta da realidade. Assim, a experimentação verificadora corresponde a uma fixação hipotética dos conceitos por um sujeito que se assumiu como tal.
[...] quando falamos em modernidade estamos nos referindo à Idade Moderna, período em que a estrutura mental do Mundo Ocidental passou por uma viragem importantíssima - o antropocentrismo pregado pelos humanistas (como reação ao teocentrismo medieval) foi integralmente assumido, e para isso muito contribuiu o Renascimento. Esse movimento intelectual, que buscou inspiração nas obras da Antiguidade Clássica, favoreceu o desenvolvimento da Ciência moderna, a qual, retomando os caminhos seguidos por Sócrates, Platão e Aristóteles, passou a supervalorizar a Razão.
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No período medieval, durante o qual o Escravismo deu lugar ao Feudalismo, a Igreja Católica Apostólica Romana assumiu enorme poder econômico e político, o que lhe garantiu a predominância ideológica: a Igreja, para se estruturar ideologicamente, fundamentou-se no classicismo greco-romano e realizou a síntese teológica medieval, conciliando a fé cristã com a Lógica aristotélica. Os humanistas, no início da Época Moderna, como reação ao teocentrismo medieval - Deus como centro de todas as coisas - retomaram o estudo das obras greco-romanas, situando-as, porém, em uma perspectiva antropocêntrica - o Homem como centro de todas as coisas. [...]
A perspectiva antropocêntrica significaria retomar a forma de abordagem da realidade apresentada pelos Sofistas? O Homem é a medida de todas as coisas..., disse Protágoras. Essa perspectiva foi assumida, porém, enquadrada na linha do pensamento de Sócrates: valorizar o lado espiritual do Homem, valorizar o mundo das Ideias, valorizar no Homem, não a sua capacidade sensível de perceber a realidade mutável, mas a sua capacidade intelectual, capacidade de raciocinar sobre a realidade.
O processo se deu da seguinte forma: se o Homem é o centro de todas as coisas, e não mais Deus, precisa-se valorizar aquilo que faz o Homem, ou seja, aquilo que o distingue dos outros animais e que o assemelha a Deus. O que deve, então, ser valorizado? Isso mesmo, a Inteligência, a Razão.
O século XVII foi, então, a época do Racionalismo, escola filosófica fundada por Descartes que ainda hoje influencia, de maneira decisiva, nossa apreensão da realidade. Segundo Descartes, o Homem deve depurar-se de todas as sensações, atributos que são resquícios animalescos, para chegar à perfeição: só a Razão pura assegura o conhecimento da realidade.
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A própria ideia de "milagre grego", ainda que falsa, contribuiu para o desprezo de toda a produção intelectual daqueles gregos que viveram em épocas remotas e a expressaram na Mitologia. Os mitos agrários constituem exemplos da produção intelectual de homens cuja vinculação com a terra e com o duro trabalho diário era intensa: descrevem, através de alegorias, todo o processo de fecundação e nascimento das sementes.
Assim, se queremos realmente crescer em termos humanos, tanto individual quanto socialmente, não podemos desprezar a experiência sensorial do Homem, a pretexto de ela ter sido a base da apreensão mítica da realidade. Em nossa cultura, as sensações são relegadas a segundo plano e somente o racional tem absoluta prioridade cultural: "O conhecer reduziu-se a um saber, e o saber, a um teorizar. A compreensão sensível das coisas integrando experiência e inteligência, parece ter sido abolida [...] Não seria por acaso que, hoje em dia, as palavras poético, lírico, possam surgir até como conotações pejorativas, como visões desligadas da realidade do viver." (F. Ostrower)
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Ora, é natural que nos interessemos mais por compreender a nossa cultura, pois temos problemas sem soluções há séculos, mas é inadmissível que a coloquemos como superior a todas as outras. Ou, ainda, que desprezemos o conhecimento dos mitos por serem frutos de uma apreensão sensorial-afetiva do mundo, como forma de expressão humana que, longe de ter sido superada, ainda convive conosco e até norteia nossos atos... Na verdade, a apreensão mítica não foi superada, mas sufocada e, por isso, coexiste em nós, representando, é claro, uma de nossas inúmeras contradições.
Se você procurar conhecer o mito da origem dos deuses e dos homens na cultura grega, poderá perceber que eles eram concebidos como semelhantes na sua essência. Pense um pouco... Não teria o humanismo do pensamento grego - "O Homem como medida de todas as coisas" - também uma origem mítica?
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AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 384-390.
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