"Quem quer que compre uma coisa, não para que possa vendê-la inteira e não transformada, mas para que sirva de material a moldar em algum objeto, esse não é um comerciante. Mas o homem que compra a coisa a fim de ganhar, revendendo-a inalterada, sem transformá-la, esse está entre os compradores e vendedores expulsos do templo de Deus!"
"Aquele que tem o bastante para satisfazer suas necessidades e não obstante trabalha sem cessar para adquirir riquezas, seja com o fim de obter uma posição social mais alta, seja para subsequentemente poder viver sem trabalhar, seja para que os filhos venham a ser homens de riqueza e importância - em todos esses casos é impelido por condenável avareza, sensualidade ou orgulho".
O massacre da noite de São Bartolomeu, François Dubois. As guerras de religião na França alcançaram no massacre de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572) um de seus momentos mais violentos. Nessa ocasião, centenas de protestantes foram mortos.
Como se sentiriam os comerciantes europeus ao ouvir as ideias dos pensadores cristãos medievais? Como se sentiria você caso vivesse do comércio e se esforçasse por acumular cada vez mais riquezas, como faziam os burgueses da Europa moderna?
O entusiasmo pelas atividades mercantis, a busca do enriquecimento e o gosto pelo luxo - típicos dos grupos sociais em ascensão no século XVI, pareciam não se ajustar perfeitamente aos preceitos da religião cristã, ainda bastante ligada à ordem feudal. A Igreja insistia em condenar a usura e a subversão dos valores, que relegava a segundo plano a vida espiritual, em beneficio das preocupações materiais. E, no fundo, a Igreja condenava os próprios grupos comerciantes.
Todavia, as novas formas de vida, as atividades econômicas em expansão, estavam exigindo uma mudança de conceitos, sobretudo porque a religiosidade era ainda muito difundida. Seria necessário uma nova Igreja?
Muitos humanistas faziam severas críticas à Igreja, aos abusos praticados pelo clero, ao luxo da Corte papal. Eles desejavam uma religião mais simples, mais humana, rejeitando a ignorância do clero e seus desregramentos. A expressão desses anseios está em Erasmo, em cujo pensamento a crítica dos textos sagrados, a restauração da pureza da fé primitiva, a reforma da Igreja conciliavam-se com o respeito à unidade do cristianismo.
Mas não apenas os elementos ligados às atividades mercantis e os humanistas mostravam-se descontentes com a Igreja, no início dos Tempos Modernos.
Os governantes dos Estados modernos achavam que o poder do Papado, sendo universal, entrava em conflito, enfraquecendo, os novos Estados "nacionais". Os monarcas absolutistas queriam colocar a Igreja também sob seu controle, transformando-a num dos pilares da monarquia de direito divino.
Os príncipes desejavam também o direito de nomear os membros para os cargos eclesiásticos: bispos, arcebispos, abades, priores e outros. Isto porque nestes postos do alto clero estavam compreendidos os deveres sacerdotais ou disciplinares e também os rendimentos dos benefícios eclesiásticos. Se isso fosse conseguido, os monarcas não só impediriam a saída de recursos de seus reinos, como também poderiam ampliar seu domínio sobre a nobreza, sequiosa de obter para seus membros tais rendimentos.
Por essa mesma época, eram comuns os ataques aos "vícios da Igreja". Criticava-se o mau comportamento de muitos eclesiásticos, o acúmulo de benefícios por uma só pessoa, o envolvimento dos sucessivos papas em lutas e conflitos com os príncipes e nobres, os excessivos impostos cobrados por Roma, inclusive a venda das indulgências.
Muitos criticavam também o tráfico das coisas santas - a "simonia", e a exploração das "relíquias" dos santos e do próprio Cristo.
E havia ainda aqueles que defendiam a necessidade de uma reforma do dogma, pois as superstições cresciam, a miséria, o pecado, o medo do inferno estavam por toda parte. A duração relativamente breve da vida humana, a constância das guerras e da fome privilegiavam as danças macabras, os sermões cheios de "fogo do inferno". Confundiam-se a vida e a morte. As doutrinas dos elementos eclesiásticos não mais satisfaziam à burguesia e aos funcionários, assim como não eram compreendidas pela maior parte da população. Seria necessária uma nova religião?
A resposta a tantas questões e dúvidas parecia vir da Alemanha, onde os anseios reformistas mais ou menos difusos ganharam força e se transformaram no primeiro grande movimento de reforma religiosa.
Por que teria a reforma religiosa começado na Alemanha?
No início do século XVI, a Alemanha era constituída por centenas de principados dos mais diferentes tamanhos, além de dezenas de cidades-livres onde predominava a burguesia. Havia ali uma pequena nobreza empobrecida e descontente, ao lado de uma grande nobreza ambiciosa, disposta a apoderar-se dos inúmeros benefícios eclesiásticos existentes. Nos Estados mais poderosos, os príncipes empreendiam a unificação, tentando transformar seus domínios em verdadeiros "estados modernos".
Nessa Alemanha fragmentada, a Igreja era, ao mesmo tempo, o principal alvo e o maior adversário. Por quê? Ela era o principal alvo das ambições dos nobres sobre os benefícios eclesiásticos. Ela era também o maior adversário devido à ingerência política e fiscal dos papas nos assuntos alemães, além de muitos acreditarem ainda que a região era frequentemente "saqueada" em proveito de Roma.
Foi nesse ambiente que surgiu o monge agostiniano Martinho Lutero. Torturado pelo problema de como assegurar sua própria salvação, ele encontraria uma resposta na ideia de que o homem só se justifica pela fé, pois, sendo pecador por natureza, suas obras nada representam e só a fé em Deus pode salvá-lo.
Se somente a fé pode salvar, de que serviam as indulgências que o dominicano Tetzel pregava na Alemanha, em 1517?
Ao fixar, na porta do Castelo de Wittenberg, as suas 95 teses condenando as indulgências, Lutero dava início à Reforma.
Sem querer chefiar uma revolução, Lutero viu-se forçado a liderar uma nova religião, contando com o apoio de uma parte da nobreza e de quase toda a burguesia. Após ser excomungado, em 1520, prega suas primeiras teses reformistas: o livre-exame e o sacerdócio universal, a nulidade do primado pontifical.
A Reforma se alastrou rapidamente.
Em 1522, sob a chefia de Ulrich von Hutten, revoltaram-se os "cavaleiros" da pequena nobreza. Pouco tempo depois, exasperados pelo agravamento das exigências senhoriais, os camponeses alemães se revoltaram, acreditando na chegada de uma nova era de justiça e igualdade. Em outros pontos da Alemanha, ocorria a pregação dos "profetas celestiais", seguidores de Lutero que defendiam proposições muito além de seu próprio "mestre".
Lutero condenou as revoltas contra a autoridade, ao mesmo tempo em que apoiava a repressão desencadeada pelos grandes nobres e pelos burgueses contra os movimentos que haviam eclodido. Sentindo a necessidade de refrear o ímpeto reformista, Lutero estabeleceu uma Igreja com o apoio dos príncipes, que passavam a ser chefes políticos e religiosos - é o cesaropapismo, apropriando-se dos bens eclesiásticos.
Embora a partir da denominada Confissão de Augsburgo o luteranismo tenha se tornado um credo bem definido, as lutas entre os príncipes católicos e protestantes não diminuíram, transformando-se numa verdadeira "guerra de religião" que o imperador Carlos V não conseguia controlar. Somente a Paz de Augsburgo, concluída em 1555, veio reconhecer o direito de liberdade religiosa para os príncipes e para as cidades, dividindo-se a Alemanha em dois campos.
Em que outras regiões da Europa ocorreram movimentos contra a autoridade papal?
Na Suíça, em cujas cidades vivia uma burguesia numerosa e soberana, diversos pregadores reformistas haviam surgido, embora nem sempre ligados ao luteranismo. O mesmo ocorria no Vale do Reno, em suas cidades mais importantes. Um lugar importante era Zurique, onde havia algum tempo Ulrico Zwinglio vinha pregando ideias bem mais radicais do que Lutero, como a supressão do dogma da presença real de Cristo na Eucaristia, e propondo uma organização democrática para a Igreja.
O mais importante dos reformadores foi João Calvino, que após instalar-se em Genebra - a "Roma calvinista" -, estabelece o Consistório de pastores, o órgão que controla as instituições municipais, zela pelos costumes e assegura a vida religiosa.
Acreditando também que o homem é essencialmente mau e pecador, Calvino apenas exige que ele aceite a sabedoria do Cristo, obedecendo-o servindo-o.
Os únicos sacramentos são o batismo e a eucaristia, mas nesta a presença do Cristo não é real, e sim puramente espiritual. A predestinação é um fato, pois desde a eternidade Deus, por sua exclusiva e insondável vontade, destinou uns à salvação e outros à danação eterna. O homem nada pode por si mesmo.
Ao contrário do luteranismo, o calvinismo voltou-se com interesse para a sociedade de sua época e seus problemas. O luteranismo estava muito mais voltado para a vida religiosa, e comprometido com um ideal de restauração mais do que de renovação, sendo assim um instrumento de consolidação do poder dos grupos e classes dominantes. O calvinismo, ao contrário, dignificou todas as formas de trabalho, mesmo manual, em nome da vontade de Deus.
Dizia Calvino que o trabalho "torna o corpo são e forte e cura as doenças produzidas pela ociosidade. [...] Entre as coisas desta vida, o trabalho é o que mais assemelha o homem a Deus."
E perguntava: "Que razão haverá para que a renda do negócio não seja maior do que a da propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua própria diligência e indústria?"
Para quem estaria Calvino falando? Que tipo de homem mais se assemelha a Deus, segundo o Calvinismo?
Embora pessoalmente fosse Calvino bem conservador e rigoroso, seus continuadores foram absorvendo no corpo doutrinal do calvinismo os princípios da sociedade capitalista.
[...]
A expansão da "religião verdadeiramente reformada", como então se dizia, fez-se com rapidez e por amplas áreas geográficas.
Na França, nobres, burgueses, artesãos, camponeses, sobretudo nas regiões distantes de Paris, aderiram e logo formaram uma igreja e um partido huguenote, nome pelo qual ficou conhecido o calvinismo na França. Na Escócia, sob a liderança de João Knox, a Confissão Escocesa fundou a Igreja reformada, adotando uma constituição presbiteriana - isto é, o governo pelos mais velhos ou presbíteros, e Maria Stuart foi obrigada a aceitá-la como religião de Estado. Nos Países Baixos, a difusão do calvinismo foi extremamente rápida, convertendo-se Antuérpia no principal centro de propagação. Quando as tropas do Duque de Alba, a mando de Felipe II de Espanha, invadiram a região, querendo submeter os revoltosos, ocorreu a migração de grande parte da burguesia da parte sul para as províncias do norte. Na Boêmia e na Hungria, a nobreza aderiu ao calvinismo como forma de afirmação nacional, antigermânica.
E na Inglaterra, como ocorreu a Reforma?
Ali, ela aparece como um intrincado problema pessoal e financeiro, ao lado de antecedentes medievais como a heresia de Wycliff.
O humanismo alcançara importância na Inglaterra através sobretudo das figuras de Tomás Morus - autor de Utopia - e do próprio rei Henrique VIII, humanista convicto, embora inimigo da heresia luterana, o que lhe valeu o título de Defensor da Fé, dado pelo Papa Leão X.
No momento em que o Papa Clemente VII recusou-se a anular o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, o soberano inglês declarou-se chefe da Igreja inglesa pelo Parlamento. A votação do Ato de Supremacia pelo Parlamento, em 1534, cortava os últimos vínculos com Roma.
Senhor da Igreja Anglicana, e de todos os seus bens, Henrique VIII podia resolver os graves problemas financeiros que a monarquia enfrentava.
De uma maneira geral, a reforma na Inglaterra não modificou o dogma católico, já que não resultara de problemas filosóficos ou teológicos. O "Ato dos Seis Artigos" fixou a nova situação em termos de fé, reafirmando a autoridade do soberano. Assim, vão para a fogueira os protestantes, acusados de heresia, e para o cadafalso os católicos, por crime de lesa-majestade.
A reforma anglicana, que passaria por etapas distintas sob os reinados de Eduardo VI, da católica Maria I e de Elizabeth I, assumiria um aspecto mais definido pelo "Bill dos Trinta e Nove Artigos", em 1563. Ele definia a Igreja anglicana como um compromisso vago entre o catolicismo e o calvinismo, embora tivesse uma concepção luterana das relações entre a Igreja e o Estado.
Era justamente esse caráter vago da reforma que descontentava a muitos reformistas. Eles desejavam "purificar" a Igreja anglicana, que diziam estar cheia de elementos "papistas". Esses indivíduos eram chamados de "não-conformistas", e se tornaram cada vez mais influentes. Eram os calvinistas ingleses, também conhecidos com "puritanos".
Na França, o século XVI foi caracterizado pelas violentas lutas entre católicos e huguenotes - as guerras de religião. No fundo, os conflitos religiosos expressavam a oposição dos setores aristocráticos adeptos do calvinismo, ao poder absoluto dos soberanos, como também traduziam a insatisfação da pequena burguesia artesanal com a política econômica e fiscal da monarquia.
Somente sob o reinado de Henrique IV a paz foi alcançada.
"Paris vale uma missa", teria dito este nobre huguenote que, para consolidar seu poder, converte-se ao catolicismo, concedendo logo depois liberdades e garantias aos seus ex-correligionários, pelo Edito de Nantes.
Como teria reagido a Igreja à Reforma protestante?
A primeira reação foi quase espontânea, com as iniciativas individuais que tinham como objetivo produzir uma renovação da vida espiritual e mistica nos conventos já existentes, como os Carmelitas na Espanha e os Capuchinhos (Franciscanos) na Itália. Ao mesmo tempo, surgiram novas congregações , das quais a mais importante foi a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola, em 1534. Para os jesuítas - que trabalhavam "para a maior glória de Deus" - o importante não era apenas combater os protestantes, mas fortalecer a fé entre os católicos contra as heresias.
Seguiu-se à essa reação quase espontânea, a atitude do Papado. Ela foi, de início, essencialmente negativa e preventiva: foi criado o "Índex" de livros proibidos e estabeleceu-se o Tribunal do Santo Ofício.
O momento mais importante da Reforma Católica, porém, ocorreu com a realização do Concílio de Trento, no qual os princípios do dogma católico foram reafirmados.
Concílio de Trento, Pasquale Cati
Qual a importância das Reformas na História da Europa moderna?
A Reforma protestante marcou uma ruptura irreversível na unidade cristã advinda da Idade Média, Num primeiro momento tal fato significou um aumento da intolerância, que se traduziu nas sucessivas guerras de religião.
Mas teriam sido todas as guerras realmente por motivos religiosos?
O fato, porém, dos príncipes terem ampliado seus poderes com as Reformas teve, num prazo mais longo de tempo, efeitos positivos. Ao final do século XVI já apareciam os adeptos da ideia de que deveriam ser separados os interesses do Estado daquele da Igreja, separando-se a fé da política. Ao mesmo tempo, partindo de uma reivindicação básica - a da liberdade de consciência - as seitas protestantes criaram as condições morais e intelectuais para o advento da tolerância. Foi o que se viu já no século XVII, primeiro nas Províncias Unidas, e depois na Inglaterra.
A tolerância traduziu um recuo da importância até então absoluta atribuída às divergências de fé. Sem dúvida, na península Ibérica e, embora menos, na Itália, a perseguição inquisitorial continuou violenta até meados do século XVIII. Mas isso era alguma coisa que já se ia tornando um exemplo de "atraso" e "bárbara superstição" aos olhos dos países mais "civilizados" da Europa. Mas o desenvolvimento da tolerância não resultou apenas da crítica dos filósofos. Sua raiz mais profunda estava na própria transformação da sociedade, na ascensão da burguesia, no surgimento do capitalismo. Novas preocupações, outros interesses, uma visão do mundo completamente distinta, relegavam ao plano estritamente pessoal a questão das crenças religiosas. Aprendia-se a conviver com a diversidade de opiniões. A força, o terror, o medo, deixaram de ser argumentos. Apagaram-se as fogueiras, caiu no ridículo a proibição de ler determinados livros, e por toda parte ergueu-se dominadora a razão como único juiz.
Racionalismo, humanismo e secularização triunfando no Século das Luzes, relegaram para um passado de trevas e de ignorância a própria lembrança de que se havia um dia pensado poder submeter o pensamento de todos os homens a um mesmo molde, impedindo-os de exercer livremente a faculdade que os distingue de todos s demais seres vivos: a faculdade de pensar.
MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli.
História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 112, 114, 116, 118, 120, 122, 124, 126, 128, 130, 132.