"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de dezembro de 2011

O campo de Terezin

O comboio das crianças de Bialystok, Leo Hass. Memorial de Terezin. 

[A cidade de Theresienstadt, na antiga Tchecoslováquia, ficou conhecida como campo de Terezin durante a Segunda Guerra Mundial. Judeus proeminentes da sociedade, como artistas, cientistas e heróis de guerra, foram convidados a habitar uma cidade sob a proteção de Hitler. Ali os judeus se instalaram sob a falsa promessa de bons alojamentos, alimentação e cuidados médicos mediante a assinatura de um contrato que cedia todos os bens ao Reich. 
O gueto foi apresentado ao Ocidente como uma cidade administrada por judeus, que aparentemente gozavam de autonomia política, social, econômica e cultural. Sabe-se, entretanto, que doenças, superlotação, falta de comida e medicamentos eram a realidade do lugar. 
Durante os quatro anos de existência do campo, os judeus mantiveram uma intensa atividade cultural, da qual participaram cerca de 15 mil crianças. Com diferentes técnicas e com materiais improvisados, elas faziam arte como um meio de defesa e resistência à violência do regime nazista.]
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional


Imagine que não há paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno abaixo de nós
Acima de nós apenas o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo para o hoje


Imagine não existir países
Não é difícil de fazê-lo
Nada pelo que lutar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz


Você pode dizer
Que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu tenho a esperança de que um dia
você se juntará a nós
E o mundo será como um só


Imagine não existir posses
Me pergunto se você consegue
Sem necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade humana
Imagine todas as pessoas
Compartilhando todo o mundo


Você pode dizer
Que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu tenho a esperança de que um dia
Você se juntará a nós
E o mundo viverá como um só
John Lennon

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O nascimento da Europa

[A Idade Média] conservou o nome que lhe foi dado pelo Renascimento e que tinha, no começo, um sentido pejorativo: [era] uma época cruel ou "tenebrosa", ao mesmo tempo violenta, obscura e ignorante. Sabemos, atualmente, que essa imagem é falsa, mesmo que tenha existido uma Idade Média da violência: não apenas contra judeus, com o começo do antissemitismo, e repressão contra os rebeldes aos ensinamentos da Igreja, aqueles que eram chamados de "hereges", por meio da Inquisição. As Cruzadas, evidentemente, também fazem parte do balanço negativo.

Mas a Idade Média foi também, acho até que principalmente, um grande período criativo. Podemos ver isso nos domínios da arte, das instituições, sobretudo nas cidades (por exemplo, nas universidades), ou ainda no campo do pensamento - a filosofia que chamamos de "escolástica" atingiu altos patamares do saber. Também vimos até que ponto a Idade Média criou "lugares de encontro" comerciais e festivos (as feiras, as festas), que continuam a nos inspirar.

Iluminura medieval que mostra uma cena de aula numa universidade. O professor, de sua cátedra, lê sua lição, e os alunos acompanham com seus livros.

Além disso, a Idade Média realizou uma curiosa combinação entre a diversidade e a unidade. A diversidade é o nascimento daquilo que começa a constituir as Nações: a França e a Alemanha, a partir do século IX, a Inglaterra, no final do século XI, e também a Espanha, quando Castela e Aragão se reuniram pelo casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, no final do século XV. A unidade, ou uma certa unidade, vem da religião cristã, que se impõe por toda parte. [...] Essa religião reconhece a distinção entre clérigos e leigos, de modo que podemos dizer que a Idade Média, de modo geral, marcou o nascimento de uma sociedade leiga. [...]

Falta dizer que a Idade Média foi o período no qual surgiu e foi construída a Europa. Se cada período de civilização tem um papel, uma missão, no conjunto do desenvolvimento histórico, podemos dizer que a missão da Idade Média foi a de permitir o nascimento, de "engendrar" a Europa. Devemos hoje procurar consolidá-la e completá-la; a Idade Média legou, portanto, à Europa um movimento ao mesmo tempo de unidade e diversidade, que ainda pode servir de inspiração.

Não é por acaso que o termo "Europa", pouco frequente nos escritos da Idade Média, surge na metade do século XV, no título de um tratado atribuído ao papa Pio II.

LE GOFF, Jacques. A Idade Média explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007. p. 111-113.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Cinema e História: "1492: a conquista do paraíso"

Cena do filme "1492: a conquista do paraíso" [Direção: Ridley Scott; produção: França, Espanha, Inglaterra; Duração: 155 minutos]

O filme narra os preparativos e as viagens empreendidas pelo navegador Cristóvão Colombo que resultaram no descobrimento, na conquista e na colonização da América. Produzido em 1992, é um épico que comemora os 500 anos da chegada dos europeus ao continente americano, quando se discutiu o caráter desse fato: "descoberta" ou "conquista"?

Como toda obra cinematográfica com temática histórica, há duas dimensões importantes a considerar: o fato histórico representado (o contexto europeu da descoberta e da colonização da América) e o momento da produção de sua representação. O título do filme indica a opção do diretor, que desenvolveu a narrativa enfatizando as diferenças - sociais, econômicas e culturais - e as relações que se estabeleceram, por um lado, entre o velho continente europeu, as expectativas e necessidades de uma sociedade em transformação e, por outro, o Novo Mundo, conjunto de terras e povos cuja história foi radicalmente modificada em função desse contato. O tema principal do filme é de fato o encontro e o choque entre culturas.

A narrativa foi construída com base em dados e documentos históricos: os diários de Colombo, parte da obra de frei Bartolomé de Las Casas (História das Índias) e um texto do filho de Colombo, Fernando. Os dados que esses documentos apresentam foram interpretados pelo diretor à luz da perspectiva que assumiu na discussão do significado do fato histórico. O narrador é Fernando, e a história pode ser dividida em três grandes etapas: a preparação da viagem, a viagem propriamente dita e o regresso e novas viagens.

O cenário é constituído de paisagens europeias, pelo oceano e por paisagens americanas e enfatiza o clima de aventura. Os diálogos entre as personagens mostram as dificuldades e as expectativas dos homens do final do século XV. A ligação entre esses mundos é estabelecida pelo personagem principal, que realiza uma viagem, "descobre" novas terras e retorna para contar o seu feito. A "descoberta" aparece como uma aventura; Colombo, como um homem de grandes feitos (um herói); seus patrocinadores, como benfeitores (embora tenham seus interesses particulares); e os habitantes do Novo Mundo, chamados por ele de índios, como criaturas puras e dóceis. Depois dessa primeira viagem, a da "descoberta" e do "encontro", vieram outras, que representam os primórdios da conquista e da colonização.

Em toda a primeira parte, Colombo aparece como um navegador que crê na possibilidade de atingir "el levante por el poniente", isto é, chegar ao Oriente navegando para o Ocidente. É um homem de ciência e técnica, um homem moderno, que conhece as teorias dos antigos sobre a forma esférica da Terra e luta para conseguir convencer os homens poderosos de seu tempo - os reis católicos (Fernando de Aragão e Isabel de Castela), os clérigos e universitários, os grandes comerciantes - de que esses conhecimentos permitiriam atingir as Índias, terra das valiosas especiarias. Isso atenderia às necessidades de ampliação dos mercados europeus afetados pela crise do século XIV. Atenderia principalmente às necessidades da Espanha, recém-saída do processo de Reconquista. Colombo percorre diversos ambientes - o mosteiro, a cidade, a universidade - e defende suas teses. É um homem determinado. Mas esses mesmos episódios indicam que ele é um homem medieval, pois crê na existência de um paraíso terrestre e entende que possui, como cristão, a missão de propagar o Cristianismo. Assim, Colombo dá continuidade ao espírito de cruzada que presidia à Reconquista.

A primeira viagem está representada como uma saga: com apenas uma nau (Santa Maria) e duas caravelas (Pinta e Nina), o navegador partiu do porto de Palos a 3 de agosto de 1492 e fez escala nas ilhas Canárias para reparo de uma das embarcações. Enfrentou motins da tripulação e intempéries, até avistar, em 12 de outubro do mesmo ano, a ilha de Guaani (atual San Salvador, nas pequenas Antilhas), acreditando ter atingido o Oriente. Enquanto não encontrava os ricos mercados referidos por viajantes medievais, como Marco Polo, Colombo procurou interagir com os nativos e iniciou a construção de um posto comercial fortificado. Recolhia provas de seu feito - metais preciosos e indígenas - para retornar ao Velho Mundo como vencedor. O paraíso tinha sido descoberto, iniciava-se ao mesmo tempo sua invasão.

Os europeus foram considerados pelos índios como deuses, mas desde a primeira viagem ficou evidente que se tratava de homens diferentes e violentos. A morte de um índio, depois da partida de Colombo, provocou a rebelião e a destruição da fortificação espanhola. O choque de culturas quebrou o encanto do encontro. As demais viagens de Colombo representam o estabelecimento dos fundamentos da ocupação e da colonização europeias. O herói da primeira fase vai se humanizando, assumindo o papel de conquistador.

Desencantado também, Colombo lutou para garantir seus direitos sobre a descoberta. Mas morreu pobre aquele que foi um dos navegantes mais ousados de sua época. E a obra de seu filho, escrita para que Fernando pudesse reivindicar os direitos do pai como herança, acabou servindo apenas como registro do grande feito: o descobrimento e o desencantamento do mundo pelos europeus.

PEDRO, Antonio et alli. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p 175-176.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

História oficial, história popular

Segunda Classe, Tarsila do Amaral

"Ser membro da comunidade humana é situar-se com relação a seu passado." 
(Eric Hobsbawn)

O que você aprendeu da nossa História?
Que livros de História pôde ler?
Qualquer que seja sua resposta, provavelmente aprendeu uma história de dominação.
E o que é uma história de dominação?

É aquela que está a serviço das classes dominantes. É uma verdadeira História Oficial. É a História dos vencedores e não dos vencidos. É a que exalta generais e presidentes e em que se destaca que os que se revoltam são enforcados ou fuzilados. É aquela que prega uma ordem contra a qual os que se opõem são chamados de subversivos, de comunistas, de desordeiros, de fanáticos, de bandidos e de outros nomes mentirosos e cheios de desprezo!

A luta dos excluídos da História Oficial, dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-emprego é transformada em ameaça à ordem! Ordem que somente beneficia as classes dominantes: os com-terra, com-teto, com-dinheiro, com-tudo!

O excluído lutador, que não se submete à exploração e à violência dos com-tudo, é transformado em inimigo do progresso e do Brasil.

Que progresso é esse em que uma minoria e os gringos ficam cada vez mais ricos? Que progresso é esse em que a maioria de brasileiros está cada vez mais pobre?

O Brasil que desejamos é de todos nós! Não o que existe, onde poucos têm tudo e a maioria pouco ou nada possui!

O excluído que resiste a trabalhar para encher os bolsos alheios é apresentado como vagabundo, irresponsável e malandro.

É preciso ousar lutar, para ousar vencer!

Quem assim falou foi Carlos Lamarca, capitão do Exército que pegou em armas contra a ditadura militar imposta aos brasileiros (1964-1985). Lamarca era filho de sapateiro. Nasceu em um bairro pobre da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Tinha quase 34 anos quando foi assassinado no interior da Bahia.

Foi mais um exemplo de como tem sido a repressão contra os brasileiros que lutam por uma sociedade solidária, justa, democrática e verdadeiramente humana.

[...] 

Na realidade, a luta dos indígenas, dos negros, dos brancos, dos excluídos da História, dos chamados de vagabundos, tem sido uma constante na sociedade brasileira.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Brasil, uma história popular. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 17-18.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"A canção do africano"

"Africanos", Amalia Traini

Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão...

De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E a meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez p'ra não escutar! [...]

O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.

E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!

CASTRO ALVES, Antônio de. A canção do africano. In: Esteira de espumas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 29-30.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A crise da sociedade do Antigo Regime

"Todos os homens foram criados iguais e são dotados de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade".
(Thomas Jefferson, Declaração de Independência)

Os últimos anos do século XVIII foram anos emocionantes. Foram anos de profundas mudanças históricas. Para os homens que viviam na Europa, o processo histórico parecia ter assumido um ritmo alucinante, tal era a intensidade dos acontecimentos. Para muitos desses homens o mundo parecia estar "virando de pernas para o ar", e por isso não se cansavam de lastimar a insegurança que todas essas mudanças lhes traziam. Outros, porém, gostavam de destacar que as coisas estavam mudando, que um mundo antigo e obsoleto estava desaparecendo, e anunciavam mesmo o início de uma nova época - a Época Contemporânea.

As transformações que tinham caracterizado a Idade Moderna, na Europa ocidental, chegavam agora ao seu ponto culminante, assinalando uma ruptura. Estrutura-se uma nova sociedade - capitalista e liberal - sobre as ruínas da antiga - a sociedade do Antigo Regime.

Os últimos anos do século XVIII foram anos emocionantes. Foram anos de revoluções.

Foi nesta época que teve início na Inglaterra a Revolução Industrial. O surgimento das primeiras fábricas assinalava o surgimento de um novo sistema econômico - o Capitalismo. Surgiam também a burguesia industrial e o operariado.

Importantes inovações técnicas, como a utilização do vapor como força motriz, possibilitavam um aumento da capacidade produtiva, incentivando a busca de novos mercados consumidores e a vida econômica em geral.

Mas as transformações econômicas não se limitaram ao surgimento do sistema fabril. Ocorreram modificações também na agricultura, sobretudo na Inglaterra, onde a progressiva eliminação das instituições de tipo comunitário relativas ao uso da terra e às "áreas comunais" deu origem à exploração individual, em bases capitalistas. Os empresários agrícolas incentivaram a utilização de abudos, de novas técnicas, possibilitando o aumento da produção agrícola.

Uma produção industrial crescente, maiores e melhores colheitas agrícolas exigiam condições de transportes e distribuição mais eficientes. Novas e melhores estradas foram construídas, canais foram rasgados em vários pontos da Europa, os cursos de numerosos rios foram regularizados para facilitar a navegação fluvial. Surgiram novos meios de transporte, como a locomotiva, inventada por Stephenson. Em 1825, já era possível ir de Liverpool a Manchester por via férrea, à espantosa e incrível velocidade de 22 km/h!

Inovações foram feitas também no transporte marítimo, com o surgimento dos primeiros navios a vapor, que encurtavam as distâncias e permitiam o transporte de um volume maior de mercadorias.

As mudanças que ocorriam na indústria, na agricultura e nos meios de transporte incentivaram o crescimento da população, ao mesmo tempo que foram por ele incentivados. A Europa, que possuía 167 milhões de habitantes em 1800, terá 266 milhões cinquenta anos depois. Os progressos na medicina e na higiene tinham conduzido a um declínio da taxa de mortalidade. Neste mesmo período, as cidades europeias cresceram em número e em população.

O mundo parecia mesmo estar virado de pernas pro ar!

Por toda parte surgiam críticas às proibições impostas pelos governos absolutistas aos seus súditos. Os pensadores não mais admitiam restrições à liberdade de expressão, queriam expor livremente suas ideias, defender o mundo que surgia. Os comerciantes e industriais rebelavam-se contra as restrições impostas pela política mercantilista, que entravavam os negócios, diminuíam os lucros. A população não mais suportava os pesados impostos para sustentar os gastos das corruptas cortes absolutistas. Os camponeses revoltavam-se contra as odiosas sobrevivências do sistema feudal.

Em 1789 tudo isso começou a mudar. A eclosão da Revolução Francesa assinalava, no plano político-social, o início de um conjunto de transformações revolucionárias, correspondentes às que no campo econômico estavam relacionadas ao advento do capitalismo. Eram as revoluções liberais ou democrático-burguesas, que se estenderiam pelo século XIX.

Tomada da Bastilha, Jean-Pierre Louis Laurent Houel

Os últimos anos do século XVIII foram anos de revolução. Foram também anos de separação.

O conjunto de transformações econômicas, sociais, políticas e ideológicas que assinalaram a crise da sociedade do Antigo Regime é denominado de Revoluções Burguesas, e caracteriza a história da Europa centro-ocidental nas últimas décadas do século XVIII e nas décadas iniciais do século seguinte.

Essas revoluções assinalam, também, um ponto de separação, pois o processo de transição do feudalismo ao capitalismo foi um processo descontínuo, com ritmo distinto em cada um dos países europeus. Desta forma, enquanto aquele processo se completava em países como a Inglaterra e a França, os países ibéricos ou da Europa oriental, por exemplo, não atravessavam um processo semelhante.

A crise da sociedade do Antigo Regime foi, também, a crise do Antigo Sistema Colonial da era mercantilista.

Às potências europeias que se industrializavam rapidamente, e em especial a Inglaterra, não mais interessavam as relações monopolistas que reservavam os mercados coloniais para as suas respectivas metrópoles. E, por isso, a Inglaterra passaria a defender e incentivar a emancipação das colônias ibéricas na América. "A política britânica é o comércio britânico", dissera William Pitt, ministro inglês, no início do século XIX.

Os próprios colonos também já não mais suportavam os vínculos coloniais. O crescimento das colônias, sobretudo no decorrer do século XVIII, criara interesses novos entre os colonos americanos, que já não se viam como "os metropolitanos do além-mar". Muitos desses colonos aspiravam libertar sua terra do jugo metropolitano, criando nações novas como as que existiam na Europa. Muitos desses colonos achavam que na história das colônias havia chegado o momento da separação.

No mesmo ano que surgia na Europa o livro de Adam Smith - A Riqueza das Nações - combatendo os princípios econômicos do mercantilismo, os habitantes das Treze Colônias Inglesas proclamaram sua independência em relação à metrópole inglesa. Era o ano de 1776. As ideias de liberdade defendidas por muitos europeus eram postas em prática, pela primeira vez, pelos colonos americanos. O Novo Mundo ensinava o caminho ao Velho Mundo.

Declaração de Independência dos Estados Unidos, John Trumbull

Quase ao mesmo tempo, nas colônias ibéricas começavam a surgir movimentos que buscavam proclamar a independência, como a Conjuração Mineira, ocorrida no mesmo ano da Revolução Francesa. Quando, em 1807, as tropas napoleônicas invadiram a Península Ibérica, o processo de independência das colônias ibero-americanas teve o seu ritmo acelerado. Elas também chegavam ao seu ponto de separação.

As colônias criadas pelos europeus na América não estavam apenas separando-se de suas metrópoles europeias. Elas também estavam separando-se entre si. Das Treze Colônias Inglesas surgiram os Estados Unidos da América; dos Vice-reinados e Capitanias Gerais da América Espanhola surgiram inúmeras repúblicas; da América Portuguesa surgiu o Império Brasileiro. Mas não apenas separando-se entre si do ponto de vista político. Aquelas regiões onde a colonização assumira a forma de colônias de povoamento deram origem a países onde o desenvolvimento econômico muito em breve acompanharia o desenvolvimento das regiões metropolitanas, e no caso dos Estados Unidos da América chegariam mesmo a ultrapassar o desenvolvimento da antiga metrópole. O mesmo não ocorreria naquelas regiões onde a colonização assumira a forma de colônias de exploração: aqui a independência política nem sempre significou o rompimento dos vínculos econômicos que uniam a região à Europa colonizadora.

O processo de descolonização é, assim, explicado pelo próprio processo de colonização. Os indivíduos que tinham lutado pela independência das colônias americanas sabiam que, na árdua tarefa que lhes cabia de construtores das novas nações, utilizariam quase sempre as velhas pedras do edifício colonial que tinham contribuído para desmontar. Eis aí uma das razões por que é necessário conhecer a História.

Mas esses indivíduos sabiam também que, assim como tinham triunfado na luta pela independência, poderiam ainda influenciar sobre os rumos das jovens nações, imprimindo-lhes os traços de seus ideais.

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 245-252.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A vida na Europa e nos Estados Unidos no fim do século XIX: a ideologia do "progresso"

Uma das grandes novidades do final do século XIX: o cinema. Cartaz de 1896, desenhado por Henri Brispot

Lentamente, o cotidiano das pessoas, sobretudo das que moravam nas cidades, começou a sofrer a imposição de uma espécie de colonização microscópica e diária:

* a vida ganhou novos ritmos, baseados na rapidez, na tensão do dia a dia e na necessidade de deslocamento constante;

* as pessoas modificaram seus hábitos culturais - começaram a frequentar os cinemas, a escutar os fonógrafos, a falar ao telefone e a participar de manifestações públicas;

* foram criados vários padrões de consumo, como tomar café, trocar constantemente o vestuário, adquirir móveis modernos;

* hábitos de higiene e saúde ganharam importância no cotidiano - as pessoas passaram a ter banheiro interno nas residências, a estabelecer rituais de limpeza pessoal, a tomar remédios, a frequentar médicos, etc.;

* diferentes atividades esportivas conquistaram adeptos, desenvolvendo-se as regatas, o futebol e outros esportes coletivos.

"[...] os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas, as rodas-gigantes, as montanhas russas, a seringa hipodérmica, a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor de pressão arterial, os processos de pasteurização e esterilização, os adubos artificiais, os vasos sanitários com descarga automática e o papel higiênico, o sabão em pó, os refrigerantes gasosos, o fogão a gás, o aquecedor elétrico, o refrigerador e os sorvetes, as comidas enlatadas, as cervejas engarrafadas, a Coca-Cola, a aspirina, o Sonrisal e, mencionada por último mas não menos importante, a caixa registradora". (Nicolau Sevcenko. Introdução. In: _____ (org.). História da vida privada no Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3. p. 9-10.)

Os centros urbanos, nos quais se moldava toda essa modernidade, irradiavam para as demais regiões os valores e símbolos de rapidez, educação, cultura, saúde, abastecimento, trabalho e serviços. A transformação foi tão marcante que as ideias de progresso, modernidade e civilização se associaram intimamente às cidades, ao passo que as ideias de tradição, conservadorismo e rusticidade permaneceram associadas ao campo. As pessoas passaram a procurar ainda mais as médias e grandes cidades, impulsionando o crescimento urbano e populacional desmedido e a formação de grandes metrópoles.

Essas transformações científicas e tecnológicas, de acordo com o historiador Geoffrey Barraclough, atuaram ao mesmo tempo como "solventes da velha ordem" e "catalisadores de um novo mundo". Nesse período criou-se a ilusão de que a humanidade vivia um processo de avanço científico sem interrupções, sempre alcançando graus mais elevados de complexidade.

Argumentos como esse foram muito utilizados para justificar a escalada de ocupação territorial realizada pelos países europeus no restante do mundo: o "fardo do homem branco" seria levar a civilização e o progresso a todos os cantos do planeta. Porém, nem sempre o que se chama de "civilização" e de "progresso" significa um salto positivo compartilhado por todas as pessoas e por todas as sociedades.

No fim do século XIX havia sociedades - e ainda existem muitas - que partiam de princípios e de uma lógica de funcionamento distintos dos da sociedade europeia, para as quais a tecnologia e as máquinas tinham significado distinto ou nem mesmo representavam algo. As sociedades que, naquele período, não viviam de acordo com os princípios da "civilização" e do "progresso" acabaram sendo dizimadas (como ocorreu com os povos indígenas nos Estados Unidos) ou profundamente transformadas (como ocorreu na Índia e no Japão). Mas nada disso aconteceu sem resistência ou muita luta.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História: Geral e Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 195-197.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Europa, século XV: "Terras ou dinheiro"?

O cambista e sua mulher, Quintino de Metsys

Já pensou como seria bom se, ao fechar os olhos [...] pudéssemos sonhar que estávamos na Europa 600 anos atrás?

O primeiro choque que teríamos seria quanto ao vestuário das pessoas. Perceberíamos profundas diferenças nas maneiras de trajar de um nobre, de um comerciante e de um artesão.

Está bem. Hoje em dia também se percebe a diferença de vestir existente entre um trabalhador e um comerciante. Entretanto, essa diferença não é tão acentuada na Europa atual como no Brasil de hoje ou no Velho Mundo no início do século XV.

Mas voltemos a nos imaginar no século XV, quando se iniciava a Época Moderna, que se estendeu até o século XVIII.

As cidades europeias cresciam, porém continuavam a não dispor de serviços públicos, tornados tão comuns nos dias atuais, que a maioria das pessoas não avalia quão importantes e necessários são. É o caso dos transportes coletivos. É claro que naquela não haviam sido inventados o ônibus, o automóvel e o caminhão. A maioria das pessoas andava a pé e só os nobres utilizavam-se habitualmente de cavalos e carruagens. Também os bispos e cardeais eram transportados em carruagens e liteiras - aquelas puxadas por belos cavalos ajaezados em cores diversas, estas carregadas pelos servidores dos ricos eclesiásticos.

As ruas eram tomadas pelas carroças dos camponeses que levavam frutas, legumes e animais de abate para o mercado da cidade, onde comerciantes, donas-de-casa, monges, criados, desocupados, mendigos e artistas populares se aglomeravam buscando o que comprar ou o que fazer.

Cego guiando cegos, Pieter Bruegel

Geralmente estreitas e tortuosas, as ruas apresentavam-se mal iluminadas e sujas. Apesar das proibições das autoridades, persistia o costume de se jogar a água suja das casas nas ruas e nas valas nelas existentes.

Talvez você se espantasse ao ver diante de uma igreja imensa um pátio onde populares assistiam a atores de uma companhia ambulante representando uma peça teatral. Por vezes eram acrobatas, saltimbancos e engole-fogos que exibiam suas habilidades para uma platéia entusiasmada. Quem sabe você não teria a sorte de ver uma das representações de marionetes capazes de provocar o riso ou as lágrimas dos espectadores?

Muitas ruas destinavam-se às lojas e às habitações dos serralheiros, marceneiros, alfaiates, tecelões, cuteleiros, cordoeiros, sapateiros... Não que essas atividades se encontrassem todas na mesma rua. Tal coisa era inadmissível naqueles tempos, devendo existir uma rua específica para cada categoria profissional - Rua dos Ourives, Beco dos Ferreiros, Travessa dos Armeiros, Ladeira dos Boticários...

Mas não havia uma rua ou travessa especial para os taberneiros. Em número considerável, as tabernas espalhavam-se pela cidade, sempre repletas de ruidosos bebedores de vinhos e outras bebidas alcoólicas.

As cidades continuavam cercadas de muralhas, com portões que podiam ser fechados quando as autoridades urbanas determinassem. Os tempos eram outros, bem diferentes dos séculos precedentes quando existia a ameaça, quase que permanente, de invasão e pilhagem de uma cidade.

Era evidente a importância que assumiu nas sociedades europeias a riqueza móvel - o dinheiro.

E, com isso, começava a crescer a importância do burguês que vivia principalmente do comércio. E seus costumes, seu vestuário, suas habitações e seus valores contrastavam com os dos senhores feudais, que ainda continuavam dependentes das rendas provenientes dos tributos impostos aos habitantes dos feudos.

Para os senhores feudais, que permaneciam em seus castelos e mansões senhoriais, a terra, ou feudo, continuava a ser fonte básica da riqueza e o fundamento da posição do indivíduo na sociedade. Costumava-se afirmar, como outrora, que "Não há senhor sem terras, nem terras sem senhor".

Entretanto, os burgueses pensavam diferente. Era o dinheiro, a economia monetária, que possibilitava a verdadeira riqueza. O dinheiro permitiria a ampliação do comércio e poderia também ser investido nos setores produtivos. Assim ocorreu no século XVI quando se criaram as manufaturas urbanas.

Começava a crescer a contradição entre essas duas formas de riquezas: terras ou dinheiro?

Você não vê, atualmente, antagonismos entre essas duas formas de riquezas.

Na Época Moderna, contudo, cada uma dessas riquezas se identificava com classes e sistemas econômicos diferentes:

* as terras eram exploradas dentro do modo de produção feudal e pertenciam aos senhores feudais da nobreza e do clero;
* o dinheiro cada vez mais se identificou com a burguesia e o sistema capitalista em formação.

Por conseguinte, toda a Época Moderna deve ser entendida como um período de transição do feudalismo ao capitalismo.

[...]

É o caso do Renascimento, quando, fundamentado no Humanismo, a burguesia desenvolveu uma rica e maravilhosa produção artística, literária e científica contestatória dos valores medievais que refletiam os valores da nobreza e do clero feudais.

E esse movimento intelectual pôde ganhar maior amplitude graças ao alargamento dos horizontes geográficos e culturais, o que se deu com a Expansão Comercial e Marítima. Esta permitiu que a burguesia se tornasse mais rica, tendo, em consequência, mais recursos financeiros para promover as atividades culturais renascentistas.

Com a Reforma quebrou-se o poder da Igreja Católica, instituição que se vinculava ao feudalismo durante a Idade Média. O confisco de muitas terras da Igreja e a sua posterior venda a preços irrisórios permitiu a concentração de grandes riquezas fundiárias nas mãos da burguesia. Criou-se dessa maneira uma burguesia agrária que procurou desenvolver uma agricultura comercial.

A própria existência dos Estados Nacionais e do Absolutismo Monárquico também atendeu aos interesses da burguesia em ascensão, embora necessitando da proteção dos Reis contra as ambições da nobreza e contra a intolerância da Igreja Católica pelas atividades individualistas da burguesia e contra a concorrência estrangeira. Daí os burgueses apoiarem o Mercantilismo, política econômica adotada pelos dirigentes dos Estados Nacionais na Época Moderna.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Fazendo a História: as sociedades americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 24-26.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

As tendências culturais na história da América

O arsenal, Diego Rivera

A cultura dos países da América Latina, vista em perspectiva histórica ampla, está polarizada em quatro tendências principais: colonial, cosmopolita, nacional e socialista. A despeito das diversidades de linguagens, estilos, escolas ou teorias, a arte, a ciência e a filosofia polarizam-se desse modo. É claro que essas tendências não são excludentes, nem se conformam a uma sequência. Muitas vezes mesclam-se, baralham-se. Durante o primeiro período, um povo, literalmente, é apenas uma colônia, uma dependência de outro. Durante o segundo período, assimila simultaneamente elementos de diversas literaturas estrangeiras. No terceiro, a sua própria personalidade e o seu sentimento atingem uma expressão bem modulada. [...] abre-se a possibilidade de acrescentar um período, ou uma tendência, socialista, já que o socialismo passou a ser uma realidade política, econômica, social e cultural.

O diabo na igreja, Siqueiros

O colonialismo cultural pode ser recriado várias vezes na história: uma vez, rendendo vassalagem à Espanha ou Portugal, outra, à Inglaterra, França, Alemanha e, um pouco mais tarde, aos Estados Unidos.

Naturalmente, o segundo colonialismo é diverso do anterior, expressa outras dependências e abre outras perspectivas. Ao mesmo tempo, esboça o cosmopolitismo.

Pode-se dizer que o cosmopolitismo cultural tende a transformar o intelectual em cronista, viajante. Em sua produção científica, artística ou filosófica, há um quê de distante, estranho, visto de cima. É como se construísse a sua reflexão desde longe, em idioma estrangeiro. Na perspectiva cosmopolita, o nacional pode parecer interessante, curioso, insólito, folclórico.

Omniciencia, Orozco

Esse é o contexto do cosmopolitismo, que acompanha o elitismo inerente ao distanciamento em face dos problemas do povo. Muitos desses intelectuais consideram que os grandes problemas da filosofia, ciência e arte estão em Paris, Londres, Berlim, Nova Iorque. Não se referem a Moscou ou Pequim. E vivem em seus países como exilados, em geral meio afrancesados ou americanizados. Chegam até mesmo a admitir que o operário, camponês, mineiro e outros padecem a brutalidade das ditaduras civis e militares. Sabem da matança havida em Tlatelolco, em 1968, do bombardeio de La Moneda, sede do governo Allende, em 1973, e muitas outras matanças. Mas esses acontecimentos fogem ao conspícuo da sua arte, ciência ou filosofia. Reconhecem muitos que a condição de vida dos povos latino-americanos é lamentável; reconhecem todos que se deveria fazer qualquer coisa por esses povos. Mas tudo fica na vaga espera de um acontecimento messiânico, apocalíptico cuja ausência parece justificar qualquer inação.

As expressões civilização e barbárie, ordem e progresso, mestiço e europeu, arcaico e moderno, humano e cósmico, traduzem boa parte das ambiguidades produzidas e reproduzidas desde o século XIX. Junto com a europeização dos intelectuais e a rearticulação nas nascentes economias nacionais com a Europa, desenvolvia-se uma visão negativa do povo, dos movimentos sociais indígenas, camponeses e outros. Cultivadas à sombra do poder - muitas vezes como se não fossem fruto da sua semente - arte, ciência e filosofia guardam ressonância da visão do mundo dos conquistadores, antigos e atuais, civis e militares, nativos e estrangeiros.

Retirantes, Portinari

Tudo isso tem muito a ver com a subordinação econômica, política e militar às nações imperialistas. As "carências" e os "defeitos", ou o "atraso", têm muito a ver com a larga expropriação iniciada com os colonialismos e continuada com os imperialismos. Enquanto processo de âmbito econômico, o imperialismo abrange não só as relações militares e políticas como, inclusive, culturais. Nessa perspectiva, a produção cultural nativa tende ou para a "imitação servil dos estilos, temas, atitudes e usos" literários e outros, ou para a produção dos exotismos que fazem sensação no mercado europeu e norte-americano. Trata-se de uma cadeia de influências determinada pelas relações imperialistas, que aparece como atraso e imitação.

Nem sempre, entretanto, as relações culturais se restringem ao nível  e às conveniências das classes dominantes. Assim, por exemplo, o modernismo induz intelectuais latino-americanos a redescobrir o povo, o que pode levá-los a descobrir camponeses e operários, ou índios e negros. O vínculo com a cultura universal não impõe necessariamente um caráter dependente ou alienado à totalidade de nossa cultura. Certas vezes uma corrente cultural avançada contribui para formar no país uma consciência social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito da dependência.

Pode-se acrescentar, ainda, que há uma produção cultural socialista (marxista, dialética ou marxista-leninista) importante, mesmo em sociedades em que a revolução socialista não se realizou nem parece próxima. O próprio Mariategui, com 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, publicado pela primeira vez em 1928, inaugura uma notável corrente de produção marxista no Peru e América Latina. Na mesma década, Julio Antonio Mella produz contribuições de valor para a interpretação dialética da realidade cubana e latino-americana. Entre outras reflexões, Mella argumenta no sentido de afirmar a importância e a validade da análise marxista. Para dizer que o marxismo é "exótico" na América Latina - diz ele, polemizando com Victor Raul Haya de la Torre - seria necessário "provar que aqui não existe proletariado", que "as forças produtivas são diferentes" das que se desenvolvem na Europa e Ásia, que "não há imperialismo". E acrescenta que "é uma coisa elementar para todos os que se dizem marxistas... que a aplicação dos seus princípios é universal, já que a sociedade imperialista é também universal". Depois, em 1935, Caio Prado Júnior publicou A Evolução Política do Brasil, seguida de outras obras marxistas nas décadas posteriores. Nos diversos países da América Latina, outros autores continuaram e desenvolveram a produção cultural a partir da dialética marxista. Também movimentos e partidos políticos entraram nessa corrente.

IANNI, Octavio. Revolução e Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 71-4, 77-81. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O olhar do historiador: as cruzadas

Cruzados sedentos perto de Jerusalém, Francesco Hayez

Texto 1. No entanto, essa barbárie dos povos do Ocidente não se assemelhava à dos turcos, cuja religião e costumes repeliam toda espécie de civilização e de luz [...]. Foi nas vizinhanças de Helenópolis que os cruzados viram acorrer para suas tendas vários soldados do exército de Pedro, que, tendo fugido à matança, tinham se escondido nas montanhas e nas florestas vizinhas. Uns estavam cobertos de andrajos, outros, nus, muitos, feridos. Mortos de fome, sustentavam dificilmente os restos de uma vida miserável, que tinham disputado, por sua vez, às estações do ano e à barbárie dos turcos. O aspecto desses infelizes fugitivos, a narração de suas misérias espalharam a tristeza no exército cristão; correram lágrimas de todos os olhos, quando souberam dos desastres dos primeiros soldados da cruz [...]. Os cruzados avançavam em silêncio, encontrando por toda a parte ossadas humanas, trapos e bandeiras, lanças quebradas, armas cobertas de poeira e de ferrugem, tristes restos de um exército vencido. No meio desses quadros sinistros, não puderam ver, sem estremecer de dor, o acampamento onde [...] os cristãos tinham sido surpreendidos pelos muçulmanos, mesmo no momento em que seus sacerdotes celebravam o sacrifício da Missa. As mulheres, as crianças, os velhos, todos os que a fraqueza ou a doença conservava sob as tendas, perseguidos até os altares, tinham sido levados para a escravização ou imolados por um inimigo cruel. A multidão dos cristãos massacrada naquele lugar, tinha ficado sem sepultura. J. F. Michaud. História das cruzadas. São Paulo: Ed. das Américas, 1956. p. 58.

Prisioneiros cristãos. Século XIII.

Texto 2. "Nunca os muçulmanos foram humilhados dessa forma", repete al-Harawi, "nunca antes suas terras foram tão agressivamente devastadas". [...] Foi, de fato, na sexta-feira 22 do tempo de Chaaban, do ano de 492 da Hégira, que os franj se apossaram da Cidade Santa, após um sítio de quarenta dias. Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso, seu olhar se esfria como se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos de armaduras, que espelham pelas ruas o sabre constante, desembainhando, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas.

Atrocidades cometidas pelos cruzados. Século XIII. Autor desconhecido.

Dois dias depois de cessada a chacina não havia mais um só muçulmano do lado de dentro das cidades. Alguns aproveitaram-se da confusão para fugir, pelas portas que os invasores haviam arrombado. Outros jaziam, aos milhares, em poças de sangue na soleira de suas casas ou nas proximidades das mesquitas. [...] Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das tarefas: transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos terrenos baldios para em seguida queimá-los. Os sobreviventes por sua vez deveriam proteger-se para não serem massacrados ou vendidos como escravos.

Batalha de Ager.

O destino dos judeus de Jerusalém foi igualmente atroz. Durante as primeiras horas de batalha, vários deles participaram da defesa de seu bairro, a Judiaria, situada ao norte da cidade. Mas quando a parte da muralha que delimitava suas casas desmoronou, os judeus se apavoravam, vendo que os louros cavaleiros começavam a invadir as ruas da cidade. A comunidade inteira, reproduzindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para rezar. Os franj então bloquearam todos os acessos. Depois, empilhando feixes de lenha em torno, atearam fogo. Os que tentavam sair eram mortos nos becos vizinhos, os outros, queimados vivos. Amin Maalouf. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 12.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A terra, uma dimensão sagrada para o homem primitivo

Três gerações, Howard Terpning

Para o homem primitivo, a terra onde plantava não existia separada das suas relações sociais. Não era desligada da sua vivência religiosa, da sua relação de parentesco, enfim, de todos os aspectos que faziam parte de sua existência. A terra tinha para ele uma dimensão sagrada. Ele criou ritos mágicos para auxiliá-lo a vencer a Natureza e o medo do desconhecido.

[...] os ritos são práticas seguidas pelos homens, em qualquer religião. Os ritos buscavam, então, favorecer a caça, trazer chuvas e condições climáticas favoráveis às plantações. Foram os ritos mágicos que inspiraram as primeiras manifestações artísticas desenhadas e pintadas, nas paredes das cavernas, com carvão, tintas minerais e vegetais, representando o seu dia-a-dia. Também pintavam imagens femininas, simbolizando a fecundidade da Natureza: assim como as crianças nascem das mulheres, plantas e frutos nascem da Mãe Natureza.

"O Homem primitivo dependia universalmente da Natureza [...] da sucessão regular das estações, da queda das chuvas nas ocasiões apropriadas, do crescimento das plantas e da reprodução dos animais. Estes fenômenos naturais não ocorreriam, a não ser que ele cumprisse certos sacrifícios e ritos. Instituiu, assim, cerimônias destinadas a fazer chover, nas quais se borrifava água sobre espigas de milho para imitar a precipitação das chuvas [...] A totalidade dos habitantes de uma aldeia, ou mesmo dos componentes de uma tribo, vestia peles de animais e arremedava os hábitos e atividades de alguma espécie, da qual dependesse para a obtenção de alimento. Pareciam ter a vaga noção de que, com o imitar o gênero de vida da espécie, estavam contribuindo para garantir a sobrevivência dela."

Tendo a terra uma dimensão sagrada, aqueles que possuíam os poderes mágicos mais fortes, que garantiam a fertilidade dos campos e dos animais, exerciam um controle sobre a produção e os bens de sua comunidade.

Em cada comunidade havia um grupo social com mais direito sobre a terra do que os outros, apesar de ser possível a todos o acesso à terra, produtora de alimentos.

O exercício da função religiosa por alguns garantiu-lhes o poder e o controle sobre os meios de produção. "A terra é um meio de produção. Sem ela não se pode produzir."

Assim começou a existir uma separação entre os interesses dos dirigentes religiosos e o interesse coletivo.

[...]

Se a terra não é mais uma propriedade comum a todos os componentes da comunidade, se só algumas pessoas detêm a posse, o que acontece com aquelas que não a têm? Para a maioria, a vida começa a tornar-se muito difícil. Foi o que aconteceu com grande parte da população das sociedades primitivas.

"A produção de excedente trouxe consigo a propriedade privada; alguns elementos do grupo, apropriando-se do excedente comunal, puderam também controlar o intercâmbio comercial e, aos poucos, acumular uma riqueza que lhes permitiu imporem-se aos demais membros da comunidade como dirigentes [...] A acumulação da riqueza nas mãos de alguns foi a base para o advento da Civilização."

Você deve estar pensando que estas sociedades primitivas ocorreram há milênios. Que hoje não existe nenhum grupo humano em estágio semelhante aos das sociedades pré-históricas. Está equivocado.

"Ainda hoje, na América Latina, na Oceania, na África e na Ásia, povos pré-letrados maravilham-se com os ciclos do nascimento e morte, expressando sua integração na Natureza, através de rituais, cuja principal característica é a vivência, a participação de todos os membros da tribo nas cerimônias religiosas. Essa vivência se estende a totalidade social e natural. A economia e a vida da tribo são cíclicas e repetitivas, como também o são a própria Natureza e o organismo humano. A expressão dessa harmonia é constituída pelo mito primitivo, que narra os ciclos exemplares. Ao repetir o que já foi vivido por antepassados míticos, o homem primitivo encontra a explicação e a justificação de sua vida.

Uma das formas frequentemente encontradas na configuração do sistema religioso desses grupos consiste na concepção do mana, força sobrenatural, presente nos objetos, nos espíritos dos ancestrais e dos que governam os elementos da Natureza. Temida, respeitada e ambicionada pelo homem, cujo propósito fundamental é conquistá-la, assegura ao seu possuidor o respeito e o prestígio social.

[...] Complexos e elaborados sistemas explicativos introduzem, entre os grupos pré-letrados, heróis nacionais, deuses e semideuses, aos quais se atribuiu o conhecimento das técnicas de produção econômica. Animais, plantas e acidentes geográficos são unidos ao homem por laços míticos de parentesco, propiciando a compreensão sobre a estabilidade e o sentido dos fenômenos da Natureza bem como da organização social [...] Embora nem sempre seja fácil distinguir a religião da magia, a posição desses dois sistemas de relacionamento com o mundo sagrado é essencialmente de mútua oposição. Enquanto a vida religiosa se caracteriza pela submissão e aceitação da vontade de Deus e de sua Providência, a manipulação mágica pretende obrigar às forças sobrenaturais a realizar desejos particulares.

[...] Todas as culturas [...] tendem a reservar, paralelamente ao cotidiano [...] outra esfera, que diz respeito a aspectos fundamentais da existência humana, que envolvem atitudes de respeito, temor e piedade. Estreitamente vinculados e interdependentes, esses dois mundos - o do sagrado e o do profano - se misturam, evidenciando-se a supremacia do primeiro em momentos decisivos da existência: por ocasião do nascimento, nos ritos da puberdade, no casamento, na morte. [...] Também os fenômenos de maior significado social acham-se protegidos pela sacralidade: na esperança dos agricultores pela fecundidade da terra; no emprego, pelos caçadores, de artimanhas propiciatórias e mágicas; nos ritos protetores e nas festas solenes que comemoram o convívio pacífico ou preparam a guerra contra sociedades rivais. Cultuam-se, dessa forma, as forças do mundo natural, bem como os heróis lendários que representam as tradições e a história mítica da cultura.

[...] Isso ocorre, por exemplo, com as diversas tribos indígenas brasileiras que habitam o Parque Nacional do Xingu e que têm em comum, nas suas tradições míticas, aspectos que explicam a origem e o domínio das forças naturais, bem como o papel desempenhado pelo herói lendário, que ensina aos homens como ambientar-se ao meio."

Veja o depoimento do sertanista Orlando Vilas Boas, publicado na revista Visão, de 10 de fevereiro de 1975:

"O índio, em sua tribo, tem um lugar estável e tranquilo. É totalmente livre, sem precisar dar satisfações de seus atos a quem quer seja. Toda a estabilidade tribal, toda a coesão, está assentada em mundo mítico [...] Seus hábitos são os mesmos; organizam-se identicamente; possuem em comum as mesmas crenças e superstições; realizam festas e ritos cerimoniais perfeitamente semelhantes, no fundo e na forma. E têm, sobre todas as coisas e aspectos da vida e do mundo, as mesmas concepções. O ritmo, a natureza e o ciclo das atividades, em geral, são praticamente um só em todas as aldeias. Há até mesmo uma estreita semelhança psicológica entre os membros de várias tribos. As particularidades anulam-se, em face das inúmeras correspondências e relações que igualam e vinculam os vários grupos entre si, dando ao seu conjunto um perfeito ar de família. Laços de toda natureza concorrem para essa homogeneidade. São, por exemplo, tão intimamente interligados em suas atividades religiosas que algumas das suas mais  importantes festas só podem ser realizadas por uma determinada tribo com a obrigatória participação de outra. No plano social, as relações mútuas se concretizam nos frequentes casamentos intertribais."

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 21-23.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Linha do tempo: Grécia e Roma

Carruagem grega


GRÉCIA
Período pré-histórico e proto-histórico
3000 a.C.
Civilização das Ilhas Cíclades
Idade do Bronze

2000 a.C.
Civilização palaciana cretense

Período creto-micênico
1500 a.C.
Civilização micênica
Queda de Cnossos
Uso da escrita linear A e B

Séculos obscuros
1000 a.C.
Queda dos micênicos
Introdução do ferro, vindo do Oriente
Introdução do alfabeto de origem fenícia
“Idade das Trevas”

800 a.C.
Aumento da população da Grécia
Surgimento das cidades
Expansão colonial grega para Oriente e Ocidente
Tiranias
Alfabeto grego
Homero e Hesíodo

Período arcaico
600 a.C.
Início da cunhagem de moedas
Início da democracia em Atenas
Peloponeso controlado pelos esparciatas
Princípio dos gêneros Tragédia e Comédia

Período clássico
500 a.C.
Invasões persas
Atenas democrática domina a Liga de Delos
Era de Péricles: Pártenon de Atenas construído (447-432)
Guerra do Peloponeso
Grandes autores gregos: Heródoto, Tucídides, Eurípides

400 a.C.
Ascensão da Macedônia
Filosofia em seu auge: Sócrates, Platão e Aristóteles
Campanhas de Alexandre, o Grande
Início do Período Helenístico em 330 com os reinos herdados de Alexandre

Período helenístico
200 a.C.
Guerras Macedônicas
Macedônia passa a ser uma província romana
Incorporação da Grécia ao Império Romano (146)
Grécia mantêm-se como centro cultural do Mediterrâneo antigo


ROMA
Monarquia
800 a.C.
Fundação mitológica de Roma em 753
Realeza

600 a.C.
Domínio etrusco
Início tradicional da República, com a expulsão da realeza etrusca, em 509
Roma domina o Lácio

República
500 a.C.
Domínio dos Patrícios
Lutas na Itália central
Lei das Doze Tábuas (450)

400 a.C.
Roma saqueada pelos gauleses
Direitos estendidos aos plebeus
Expansão Romana na Itália
Tratado de Roma com Cartago (348)

300 a.C.
Guerra com os cartagineses
Primeiros autores latinos

200 a.C.
Expansão romana fora da Itália
Tribunatos de Tibério e Caio Graco e crise agrária
Mário rompe as tradições: cônsul sete vezes, passa a aceitar proletários no exército romano

100 a.C.
Guerra social (91-89) entre romanos e itálicos
Guerra Civil e Sila Ditador (83-2)
César conquista a Gália, torna-se ditador e é assassinado (44)
Augusto torna-se o primeiro Imperador 
(31)
Auge da literatura latina: Cícero, Catulo, Tito Lívio, Ovídio

Principado ou Alto Império
Era Cristã
Principado e as dinastias Júlio-Cláudia e Flávio-Trajana
Erupção do Vesúvio e destruição de Pompéia (79)
Construção do Coliseu (79)
“Pax Romana”

100 d.C.
Auge das cidades e do comércio antigo
Revoltas judaicas na Palestina
Perseguições aos cristãos

200 d.C.
Extensão da cidadania romana a todos os habitantes livres do Império (212)

Dominado ou Baixo Império
Início de um regime mais abertamente monárquico, o Dominado
“Crise do Século III”: guerras civis (235-284)
Grandes juristas consolidam a legislação romana: Ulpiano, Papiniano

300 d.C.
Perseguição aos cristãos, seguida da liberdade de culto (313)
Constantino, primeiro imperador cristão (324-337)
Cristianismo religião oficial e perseguição aos outros cultos (382)
Divisão do Império entre Ocidente e Oriente (395)

400 d.C.
Saque de Roma (410)
Último imperador romano no Ocidente (476)

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 139-143.