Negras novas a caminho da igreja para o batismo, Jean Baptiste Debret
O Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da que lhe deu nome - Terra de Santa Cruz -, mas da que unia Igreja e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que viver fora do seio de uma religião parecia impossível. A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social - numa irmandade ou confraria, por exemplo - ou no mundo. A colonização das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas, também, porque os índios não tinham "conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu". Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa. [...]
O zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideias. "Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a fé", registrava, no século XVI, o jesuíta Antonio Blasques. [...]
Os primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito franciscanos membros de importante ordem estabelecida, há tempos, em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganha envergadura a partir de 1580, quando da conquista da Paraíba. Junto a eles, multiplicaram-se carmelitas e beneditinos. Papel bem mais relevante, contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada Companhia de Jesus, liderados por Manuel da Nóbrega [...]. Sua primeira providência? A organização de uma escola que, como outras que se seguiram, consistia na base da missão. Um ano mais tarde, chegavam mais padres acompanhados de "órfãos de Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus", que teriam papel relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados "meninos-língua", cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como tarefa a conversão das crianças nativas. [...]
As cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam padres e indígenas. [...] A clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de tempos em tempos, de um "principal", ou seja, um chefe. As atividades consistiam em recitar juntas, na igreja, ladainhas ou Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. Cantavam hinos [...] e revezavam-se entre aulas de flauta e canto. [...] Confessavam-se de oito em oito dias e todas as tardes saíam para caçar e pescar, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na "farinha-de-pau" (nome dado à farinha de mandioca) e na caça [...]. O pescado era considerado "gostoso", e o cardápio engrossado por legumes, favas, folhas de mostarda e abóbora, e "em lugar de vinho [...] milho cozido em água a que se ajunta mel". As meninas indígenas eram ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou de "ver correr as argolinhas", brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal. [...] As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas de aldeamentos, os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar "com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som que fazem, cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro". A sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, "tocando e cantando entre eles, os ganharíamos" [...] anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com "roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão", sinal da vitória que teriam alcançado contra o Demônio.
Até 1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período da União Ibérica (1580-1640), mudou, contudo, essa hegemonia, inaugurando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos, rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários, abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo, jamais apoiaram tabajaras e potiguares, e entre 1588 e 1591 começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos e carmelitas.
Instalados ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e língua brasílica, ou seja, o tupi, e daí enviaram seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos interesses portugueses na Amazônia, perdendo rapidamente o interesse pelo caráter missionário e investindo nas relações com as populações de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. [...]
À medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios do litoral e que os negros africanos, chegados para o trabalho nos engenhos, eram catequizados em massa - sem que nenhuma autoridade religiosa argumentasse contra sua escravização -, os movimentos missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de orações e devoções, tiveram destacada atuação. [...] Suas missões lhes permitiram estar mais próximos do povo humilde que habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.
Mas havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato - ou melhor, nas alpargatas - dos padres que desejavam a catequese e a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus conseguiu que o governo proibisse a escravização dos nativos. Todavia, grupos importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e, posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a escravização dos "negros da terra" consideravam sua proteção uma ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam junto às autoridades do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o trabalho compulsório dos índios, como também, através de pressões e ameaças, retardaram, o quanto puderam, a supressão da escravatura. [...]
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Em relação às demais populações católicas, um importante espaço de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao tão ausente governo português: fundação e manutenção de seminários de meninos pobres, de hospitais e recolhimentos de órfãos. Sua finalidade específica era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e da capela do mesmo, um grupo de pessoas, fossem brancos, mulatos ou negros, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente a participação de leigos no culto católico [...]. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com tapetes e ervas perfumadas, e iluminadas por tijelinhas de barro cheias de óleo de baleia. Irmãos de opa vermelha, tocheiros à mão, abriam a procissão, seguida de carros alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos, pífaros e trombetas, misturavam-se a brancos tocadores de clarins e charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto fiéis, piedosamente, desfilavam os estandartes e as imagens religiosas.
Seguindo o costume português, a vida doméstica também consistia em importante espaço espiritual. Nas paredes das casas de moradia, era comum encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do santo onomástico. [...] Ao levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o Pelo Sinal. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por lâmpadas votivas que queimavam diuturnamente e onde as imagens eram vestidas e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã. [...] Santos de estimação, como, por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos. As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos [...]. Orações em que se nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis [...].
Além do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos e práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento migratório começara em inícios do século XVI em função de perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica. Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os recém-chegados integravam-se rapidamente à língua, aos costumes e à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos administrativos, burocráticos e comerciais. Os cristãos-novos, nome que se dava aos convertidos, detinham engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos religiosos do judaísmo, mesmo que sob a ameaça da Inquisição. Mas como é que se fazia presente na Colônia?
Espécie de justiça ambulante, as visitas de inquisidores - realizadas em 1591, 1618 e 1627, ao Nordeste, e de 1763 a 1769, ao Pará - tinham por objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico com aviso aos fiéis que descrevia minuciosamente tais ritos e era afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa de véspera - limpar e cozer alimentos, acender candeeiros etc. - para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia. [...] Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem [...]. Os meninos eram circuncidados. Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria, esquivavam-se do sacramento da confissão [...].
Ao contrário dos cristãos-novos, os judeus que se instalaram em Pernambuco quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua do Recife, a Jodenstraat (rua dos judeus), aí construíram a sinagoga da comunidade Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino [...] Isaac Aboab da Fonseca, devem-se as primeiras páginas literárias, em hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos luso-brasileiros.
O protestantismo teve, entre nós, dois momentos marcantes. O primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baia de Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon, para fundar [...] uma colônia, a França Antártica, com franceses calvinistas (huguenotes), hostilizados em sua terra. O segundo [...] foi o da colonização holandesa no Nordeste. [...]
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[...] Sob a regência de Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia. Sinagogas e escolas hebraicas funcionaram no Recife e foram as primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos sagrados mandamentos. [...]
Os africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa. Entre eles, cerimônias religiosas como o acotundá, o candomblé e o calundu, além de cultos envolvendo os mortos, corriqueiramente praticados. Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro, preferencialmente à beira de um córrego ou de uma fonte, celebrava-se a dança de tunda ou acotundá. Altares com banquetas de ferro, onde se misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de barro e imagens antropomorfas, sinalizavam o espaço sagrado. O som de tambores e atabaques, e cantos, no dialeto courá, da Costa da Mina, enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos brancos [...] dançavam e cantavam [...].
Havia ainda outras formas de religiosidade africana. Vindos do Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem jeje conhecidas como calundus eram conduzidos, na Colônia, por um vodunô, líder espiritual [...]; o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro da cerimônia abrigava ervas, búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas também em rituais de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para sensibilidades e solidariedades eram as funções desses rituais religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.
PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 36-49.