Três gerações, Howard Terpning
Para o homem primitivo, a terra onde plantava não existia separada das suas relações sociais. Não era desligada da sua vivência religiosa, da sua relação de parentesco, enfim, de todos os aspectos que faziam parte de sua existência. A terra tinha para ele uma dimensão sagrada. Ele criou ritos mágicos para auxiliá-lo a vencer a Natureza e o medo do desconhecido.
[...] os ritos são práticas seguidas pelos homens, em qualquer religião. Os ritos buscavam, então, favorecer a caça, trazer chuvas e condições climáticas favoráveis às plantações. Foram os ritos mágicos que inspiraram as primeiras manifestações artísticas desenhadas e pintadas, nas paredes das cavernas, com carvão, tintas minerais e vegetais, representando o seu dia-a-dia. Também pintavam imagens femininas, simbolizando a fecundidade da Natureza: assim como as crianças nascem das mulheres, plantas e frutos nascem da Mãe Natureza.
"O Homem primitivo dependia universalmente da Natureza [...] da sucessão regular das estações, da queda das chuvas nas ocasiões apropriadas, do crescimento das plantas e da reprodução dos animais. Estes fenômenos naturais não ocorreriam, a não ser que ele cumprisse certos sacrifícios e ritos. Instituiu, assim, cerimônias destinadas a fazer chover, nas quais se borrifava água sobre espigas de milho para imitar a precipitação das chuvas [...] A totalidade dos habitantes de uma aldeia, ou mesmo dos componentes de uma tribo, vestia peles de animais e arremedava os hábitos e atividades de alguma espécie, da qual dependesse para a obtenção de alimento. Pareciam ter a vaga noção de que, com o imitar o gênero de vida da espécie, estavam contribuindo para garantir a sobrevivência dela."
Tendo a terra uma dimensão sagrada, aqueles que possuíam os poderes mágicos mais fortes, que garantiam a fertilidade dos campos e dos animais, exerciam um controle sobre a produção e os bens de sua comunidade.
Em cada comunidade havia um grupo social com mais direito sobre a terra do que os outros, apesar de ser possível a todos o acesso à terra, produtora de alimentos.
O exercício da função religiosa por alguns garantiu-lhes o poder e o controle sobre os meios de produção. "A terra é um meio de produção. Sem ela não se pode produzir."
Assim começou a existir uma separação entre os interesses dos dirigentes religiosos e o interesse coletivo.
[...]
Se a terra não é mais uma propriedade comum a todos os componentes da comunidade, se só algumas pessoas detêm a posse, o que acontece com aquelas que não a têm? Para a maioria, a vida começa a tornar-se muito difícil. Foi o que aconteceu com grande parte da população das sociedades primitivas.
"A produção de excedente trouxe consigo a propriedade privada; alguns elementos do grupo, apropriando-se do excedente comunal, puderam também controlar o intercâmbio comercial e, aos poucos, acumular uma riqueza que lhes permitiu imporem-se aos demais membros da comunidade como dirigentes [...] A acumulação da riqueza nas mãos de alguns foi a base para o advento da Civilização."
Você deve estar pensando que estas sociedades primitivas ocorreram há milênios. Que hoje não existe nenhum grupo humano em estágio semelhante aos das sociedades pré-históricas. Está equivocado.
"Ainda hoje, na América Latina, na Oceania, na África e na Ásia, povos pré-letrados maravilham-se com os ciclos do nascimento e morte, expressando sua integração na Natureza, através de rituais, cuja principal característica é a vivência, a participação de todos os membros da tribo nas cerimônias religiosas. Essa vivência se estende a totalidade social e natural. A economia e a vida da tribo são cíclicas e repetitivas, como também o são a própria Natureza e o organismo humano. A expressão dessa harmonia é constituída pelo mito primitivo, que narra os ciclos exemplares. Ao repetir o que já foi vivido por antepassados míticos, o homem primitivo encontra a explicação e a justificação de sua vida.
Uma das formas frequentemente encontradas na configuração do sistema religioso desses grupos consiste na concepção do mana, força sobrenatural, presente nos objetos, nos espíritos dos ancestrais e dos que governam os elementos da Natureza. Temida, respeitada e ambicionada pelo homem, cujo propósito fundamental é conquistá-la, assegura ao seu possuidor o respeito e o prestígio social.
[...] Complexos e elaborados sistemas explicativos introduzem, entre os grupos pré-letrados, heróis nacionais, deuses e semideuses, aos quais se atribuiu o conhecimento das técnicas de produção econômica. Animais, plantas e acidentes geográficos são unidos ao homem por laços míticos de parentesco, propiciando a compreensão sobre a estabilidade e o sentido dos fenômenos da Natureza bem como da organização social [...] Embora nem sempre seja fácil distinguir a religião da magia, a posição desses dois sistemas de relacionamento com o mundo sagrado é essencialmente de mútua oposição. Enquanto a vida religiosa se caracteriza pela submissão e aceitação da vontade de Deus e de sua Providência, a manipulação mágica pretende obrigar às forças sobrenaturais a realizar desejos particulares.
[...] Todas as culturas [...] tendem a reservar, paralelamente ao cotidiano [...] outra esfera, que diz respeito a aspectos fundamentais da existência humana, que envolvem atitudes de respeito, temor e piedade. Estreitamente vinculados e interdependentes, esses dois mundos - o do sagrado e o do profano - se misturam, evidenciando-se a supremacia do primeiro em momentos decisivos da existência: por ocasião do nascimento, nos ritos da puberdade, no casamento, na morte. [...] Também os fenômenos de maior significado social acham-se protegidos pela sacralidade: na esperança dos agricultores pela fecundidade da terra; no emprego, pelos caçadores, de artimanhas propiciatórias e mágicas; nos ritos protetores e nas festas solenes que comemoram o convívio pacífico ou preparam a guerra contra sociedades rivais. Cultuam-se, dessa forma, as forças do mundo natural, bem como os heróis lendários que representam as tradições e a história mítica da cultura.
[...] Isso ocorre, por exemplo, com as diversas tribos indígenas brasileiras que habitam o Parque Nacional do Xingu e que têm em comum, nas suas tradições míticas, aspectos que explicam a origem e o domínio das forças naturais, bem como o papel desempenhado pelo herói lendário, que ensina aos homens como ambientar-se ao meio."
Veja o depoimento do sertanista Orlando Vilas Boas, publicado na revista Visão, de 10 de fevereiro de 1975:
"O índio, em sua tribo, tem um lugar estável e tranquilo. É totalmente livre, sem precisar dar satisfações de seus atos a quem quer seja. Toda a estabilidade tribal, toda a coesão, está assentada em mundo mítico [...] Seus hábitos são os mesmos; organizam-se identicamente; possuem em comum as mesmas crenças e superstições; realizam festas e ritos cerimoniais perfeitamente semelhantes, no fundo e na forma. E têm, sobre todas as coisas e aspectos da vida e do mundo, as mesmas concepções. O ritmo, a natureza e o ciclo das atividades, em geral, são praticamente um só em todas as aldeias. Há até mesmo uma estreita semelhança psicológica entre os membros de várias tribos. As particularidades anulam-se, em face das inúmeras correspondências e relações que igualam e vinculam os vários grupos entre si, dando ao seu conjunto um perfeito ar de família. Laços de toda natureza concorrem para essa homogeneidade. São, por exemplo, tão intimamente interligados em suas atividades religiosas que algumas das suas mais importantes festas só podem ser realizadas por uma determinada tribo com a obrigatória participação de outra. No plano social, as relações mútuas se concretizam nos frequentes casamentos intertribais."
AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 21-23.