Nos séculos que se seguiram à queda do Império Romano [...],
a Igreja esteve empenhada em converter os povos bárbaros ao cristianismo e em
estabelecer alianças com os novos donos do poder: os chefes guerreiros, a
nobreza bárbara, os reinos que se formavam.
Entre os germânicos, assim como entre os romanos, o
casamento situava-se praticamente fora da esfera religiosa, era muito mais
civil. Significava um pacto conjugal e obedecia a uma série de formalidades.
Seu principal sentido para a nobreza germânica era o de estabelecer alianças
entre parentelas. O pacto conjugal mais ligava famílias do que indivíduos.
O auge da aliança Estado bárbaro-Igreja se deu na época
carolíngia (séculos VIII e IX), marcada pela estreita cooperação entre o poder
temporal e o poder espiritual. Essa aliança [...] fortaleceu a Igreja e a
monarquia.
[...]
Os monarcas francos, sagrados pela Igreja, se sentiam na
obrigação de implantar na sociedade os ensinamentos cristãos enunciados pelos
bispos [...]. O senso de realidade das autoridades eclesiásticas e temporais
levava a uma visão do casamento mais próxima da de Santo Agostinho do que da de
Santo Ambrósio. Nada se ganharia condenando o casamento e o sexo de maneira
radical. Para a ordem pública, o melhor seria moralizar o casamento.
No pensamento medieval, o mal vem do sexo, mas é possível
atenuá-lo pela penitência. Os cônjuges deviam ficar afastados um do outro
durante o dia, nas noites que precedem os domingos, nos dias de festas e
solenidades e nas quartas e sextas-feiras. A abstinência sexual devia ocorrer
também em determinados períodos do ano, como, por exemplo, na quaresma.
Acrescentam-se ainda as três noites após o casamento, o
período menstrual, os três meses antes do parto e os quarenta dias após o
nascimento dos filhos.
[...]
[...] Por isso não se deve casar por luxúria, mas para
procriar. Se a procriação é a finalidade das relações sexuais, a virgindade
deve ser guardada até as núpcias, e os que têm esposas não devem ter
concubinas. O marido deve respeitar sua mulher e honrá-las como a um ser fraco.
Deve também se abster dela quando estiver grávida. A mulher não deve ser
expulsa de casa, nem se deve tomar outra. O incesto é pecado grave,
Monogamia, exogamia e repressão ao prazer são os pontos
centrais dos ensinamentos.
Apesar desses ensinamentos, nessa fase a Igreja não havia
ainda firmado o seu direito de ditar regras para a sociedade no que se refere
ao casamento. De acordo com os costumes germânicos e mesmo com a tradição
cristã, ele sempre havia sido considerado uma instituição social derivada da
lei natural, não das leis sagradas. Os rituais do casamento eram civis e
profanos, não religiosos. Era isso que a Igreja queria mudar.
[...]
A desagregação do edifício político que se seguiu ao período
carolíngio criou um clima de insegurança. O poder se descentralizou, tornando
mais difícil a aliança entre Igreja e nobreza.
Essa desagregação estimulou a reflexão dos homens da Igreja [...].
Esses pensadores procuraram recolher na tradição cristã os
elementos para uma nova ação da Igreja, que pretendia combater as violências e
atenuar o espírito turbulento da nobreza. [...]
Nessa nova ação, o casamento deveria ser, sobretudo, uma
forma de repartir pacificamente as mulheres. Daí a preocupação com dois fatores
de violência: o rapto e o divórcio.
Mas, mesmo com essa preocupação do clero, o casamento
permanecia sob a jurisdição civil. Não havia uma liturgia matrimonial cristã.
[...]
Essa moral cristã em muitos pontos estava de acordo com a
moral da elite guerreira germânica sobre o casamento. Ambas concordavam, por
exemplo, com a submissão da mulher ao homem, os perigos representados pela
sexualidade feminina, a condenação do rapto... A honra de uma família nobre
dependia em larga medida da conduta das mulheres, e nisso a Igreja podia
prestar importante auxílio.
Em outros pontos, porém, como a condenação cristã do
adultério e do incesto, essas duas morais não se harmonizavam. [...]
A condenação do que a Igreja chamava de adultério
contrariava a prática comum da concubinagem entre a nobreza.
Entre os francos, além do casamento legítimo, longamente
acertado entre as famílias, o qual garantia a sucessão do patrimônio e dos títulos,
havia outros tipos de união. Existia um casamento de segunda categoria, que
servia para disciplinar a sexualidade dos rapazes nobres. Era uma união
temporária, que podia ser desfeita diante da possibilidade de um casamento mais
vantajoso. Neste casamento de segunda categoria, a mulher era mais emprestada
do que dada, embora isso fosse feito solenemente, através de um contrato.
Além desse tipo de casamento, era comum a concubinagem, que
resultava em um grande número de herdeiros de segunda classe e de filhos
bastardos. [...]
A esposa legítima tinha como principal papel garantir a
"perpetuação do sangue" e do patrimônio de uma família nobre. Se ela
não concebesse herdeiros masculinos, isso já seria motivo mais que suficiente,
aos olhos da nobreza, para um novo casamento.
[...] Os casos de incesto listados pela Igreja eram
numerosos. As proibições iam até o sétimo grau de parentesco. O parentesco por
afinidade também criava impedimento ao casamento, como o de padrinho com
afilhada, entre cunhados etc.
Considerava-se que a valentia dos antepassados era
transmitida pelo sangue. Daí o cuidado em escolher a esposa, pois dois sangues
seriam misturados. Era preferível, então, que a esposa fosse aparentada ao
marido. As rigorosas leis da Igreja proibindo o incesto impediam esse tipo de
casamento.
Por outro lado, as leis extremamente severas de incesto
acabavam neutralizando a proibição do divórcio. [...]
[...]
A tentativa de cristianização do casamento teve uma forte
resistência da nobreza porque feria valores e interesses fundamentais dessa
classe. Ao que parece foi mais fácil cristianizar o casamento nas camadas
inferiores da sociedade, ou seja, entre pessoas que pouco possuíam. O casamento
e o comportamento sexual recomendados pela Igreja substituíram as formas mais
profanas de acasalamento e a concubinagem.
[...]
PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos
temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 225-228.
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