Todos levantaram-se.
E durante dois dias prepararam-se para a festa. Fariam um
ataque-surpresa. Filipe queria que a abadia fosse totalmente destruída pelo
mais cruel e violento saque de que a Europa tivera notícias.
Se o castelo de Albey permanecera exatamente igual, o
mosteiro de Louvenne, ao contrário, estava muito diferente. Havia sido ampliado
em quase dois terços da construção original. Já do lado de fora, podiam ser
percebidos ornamentos luxuosos, e, pelos rumores que se escutava, era possível
concluir que a festa que se realizava em seu interior devia ser memorável.
Seus homens armados de espadas, pedras e archotes se
aproximaram. A ferocidade deles aumentava na medida em que o mosteiro se
tornava mais palpável. Fanatizados pela ideia de que sua missão era divina,
adquiriam uma nova e poderosa força. Essa era a maior arma que possuíam, embora
não tivessem consciência disso.
Enquanto isso, no interior da abadia, com todos ignorantes
do que se passava la´fora, a festa prosseguia.
À cabeceira da comprida mesa de carvalho, encontrava-se
Samuel Garbois. A sua frente desfilavam faisões, porcos e carneiros, frutas e
vinho com fartura. O abade rejubilava-se. Sua abadia ostentava um raro luxo
para a época. Com seus 66 anos, era um homem bastante velho, mas vivera o
suficiente para ver seu sonho realizado.
O excesso de alimentos e vinho ingeridos criava uma certa
sensação de irrealidade. Era um homem obcecado por uma ideia que vira pouco a
pouco, ao longo de trinta anos, ser transformada em realidade. Agora
que estava tudo concluído, olhava sua obra com certa incredulidade. Era um
sonho que se materializava; e agora, o que fazer? Contemplar a obra, apenas
isso. Não restava mais nada. Tentava, mas não conseguia esconder uma certa
sensação de vazio, apesar de todo júbilo. Eram sentimentos contraditórios que
brigavam dentro dele e turvavam sua plena realização naquele dia.
Se pudéssemos penetrar em seus pensamentos, veríamos
desfilar em sua cabeça todas as relíquias e tesouros acumulados nesses anos,
veríamos pedra por pedra assentada que tornara a Abadia de Louvenne a maior de
toda a região.
Veríamos, também, a incômoda certeza de que tudo estava
concluído e que não restava mais nada a fazer além de esperar a morte.
Algo de anormal estava acontecendo. Mergulhado em seus
pensamentos, não notara que havia uma certa agitação no ar, que trouxe Samuel
Garbois de volta ao local onde se encontrava. Estava entorpecido pelo vinho, a
visão turvava-se a sua frente, mas percebeu que algo ocorria. Havia uma tensão
que fazia com que as pessoas falassem mais baixo, como se estivessem à espera
de um grande acontecimento; o ar tornara-se quente e pesado. Começaram os
ruídos, no princípio quase inaudíveis, depois fortes demais para se poder ter a
ilusão de que era só impressão. O cheiro de fumaça começou a se espalhar e em
pouco tempo podia-se ouvir as pessoas tossirem sufocadas, e a fumaça tornou-se
tão espessa que a embriaguez do vinho já não era capaz de turvar nada, pois já
não se via nada, ou quase nada. Começaram a cair as pedras. Eram tão grandes
que cada uma que caía provocava um estrago considerável. As pessoas,
apavoradas, começaram a correr sem saber para onde ir, e a maioria acabou seu
caminho na ponta de uma espada. Samuel Garbois não se movia. Em algum lugar
nesse processo, a razão o abandonara, e através de seus olhos dementes o que se
poderia enxergar era a própria visão do apocalipse. Quando viu Filipe parado a
sua frente, acreditou realmente que o Dia do Juízo chegara e que os mortos
finalmente haviam se levantado.
Filipe olhou para o abade por uns instantes. Aquele homem
que sempre causara asco, agora, encurralado naquela cadeira, com os olhos
ensandecidos vendo apenas destruição a sua frente, só conseguia lhe despertar
pena. Não teve coragem de matá-lo.
Ordenou bruscamente a seus homens que levassem tudo o que
pudessem carregar, e o que não pudessem, destruir. Partiram para o Castelo de
Albey, onde Filipe pretendia assumir o lugar que era seu de direito, de Senhor
do Castelo.
Samuel Garbois olhou ao seu redor. O fogo ainda ardia em
alguns pontos. Viu homens estendidos pelo chão. Um rio quente de sangue corria
sob seus pés. De seu sonho só restavam escombros. Sentou-se em um banco
semidestruído e teve ainda um momento de lucidez, o suficiente apenas para
perceber que de medo havia se sujado todo.
Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos
do tempo: histórias da história. São Paulo; Clube do Livro, 1988. p. 25-28.
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