[As profecias não se cumpriram. O ano mil chega e o mundo
não se acaba, como todos esperavam. pelo menos para alguns, não. Mas a espada
do fim dos tempos continua pairando sobre todas as cabeças, e as palavras da
autora deste conto parecem querer lembrar isso a cada passagem da narrativa.
O motor principal da vida europeia nesses tempos resume-se à
fé religiosa; crer ou não crer. Uma enorme legião de desesperados de um lado;
do outro, reis, nobres e sacerdotes manipulando o poder e as riquezas em
proveito próprio, num universo à parte, onde o futuro é limitado apenas a cada
minuto vivido.]
O último
julgamento (detalhe do painel central do tríptico, com o Arcanjo Michael
pesando as almas), Hans Memling
"Então abriu-se no céu o templo
de Deus, e apareceu a arca do
seu testamento no seu templo,
e sobrevieram relâmpagos, e vozes,
e um terremoto, e uma grande
chuva de pedra."
Apocalipse de São João, Capítulo 11, versículo 19.
Filipe olhou para seus homens e deixou escapar um profundo
suspiro de desânimo. Caminhavam havia cinco dias em direção ao distrito de
Albey. Estavam cobertos de lama de tal forma que mais pareciam bonecos de barro
do que gente e nem a chuva incessante que os fustigava durante todo esse tempo
conseguia limpá-los.
Famintos e esfarrapados, deixavam-se levar pela simples
promessa de que no fim da jornada haveria comida para todos. A fome era um
espectro ancestral que pairava sobre a Europa desde gerações incontáveis, mas
que de dois anos para cá, com as chuvas ininterruptas, que não permitiam sequer
abrir um único rego para semear o trigo, tornara-se mais vivo e presente do que
nunca. As pessoas devoravam tudo o que podiam encontrar pela frente, e não era
raro encontrar carne humana sendo vendida normalmente nos mercados. Havia até
quem, em completo desespero, se atirasse ao chão para comer terra.
Filipe e seus homens não estavam em situação diferente, por
isso a ideia de um saque no Castelo de Albey não chegara a assustá-los, pois
sabiam que lá haveria fartura de alimentos. Era isso que os fazia mover-se, que
os mantinha vivos, que os fazia caminhar, apesar da chuva, da fome, do frio e
do medo.
Estávamos no ano de 1033. Há 33 anos, exatamente na entrada
do ano mil, nascia em Albey um menino com um pequeno sinal de nascença na
testa. Era o primeiro filho homem de Maximiliano e Catarina de Albey.
Filipe, é claro, não se lembrava dos acontecimentos daquele
dia. Não se lembrava por exemplo das estrondosas gargalhadas de seu pai, já
bastante bêbado, conseguia abafar os gritos de dor de sua esposa prestes a dar
à luz. Também não se lembrava da opulenta festa que se realizava no castelo no
preciso momento em que nascia. Apenas sabia, porque isso lhe fora contado mais
tarde, que seu nascimento provocara grande alvoroço no castelo por causa do
sinal de nascença. Era uma pequena cruz vermelha bem no meio da testa. A crença
de uns e ambição de outros fez com que isso fosse interpretado como um sinal
divino. Havia até quem afirmasse que o menino era Filho de Deus enviado à terra
para o Dia do Juízo.
Samuel Garbois, Superior da Abadia de Louvenne, se
encontrava no castelo de Maximiliano naquele dia. Era um homem de trinta e
poucos anos, a quem a natureza dera, além do excesso de gordura, muita astúcia
e um certo apreço mal disfarçado pelas coisas materiais.
Sua grande ambição era poder restaurar e ampliar sua abadia
de tal forma que as abadias e mosteiros das regiões vizinhas parecessem
insignificantes.
Ao se dar conta do que acontecera, percebeu que chegara sua
oportunidade. A ideia era reforçar e explorar ao máximo a crença de que o
menino fora escolhido por Deus e que o sinal era a prova de que Ele queria nos
dizer algo.
Certa noite em que o abade e Maximiliano jantavam juntos,
Samuel Garbois colocou seu plano em prática;
- A fama do pequeno Filipe tem se espalhado rapidamente.
- É verdade. Desde que nasceu não pararam de chegar
peregrinos por aqui.
- Eu sei, Maximiliano. Tenho hospedado na abadia homens e
mulheres de elevada posição, que vêm de toda parte só para ver o menino. É uma
pena que a abadia seja tão pequena e humilde e que necessite de urgentes
reformas.
- E por que não as fazem, senhor abade?
- Ah, senhor! A fé é grande, mas as doações pequenas. Não
temos recursos suficientes.
Maximiliano ficou em silêncio por instantes. Não lhe parecia
bem, em seus domínios, uma abadia tão humilde e necessitada. Ainda mais agora
que acontecera um milagre dentro de sua própria casa. E se lhe tivesse sido
enviado esse sinal justamente para que ele fosse o realizados de uma grande
obra para a glória de Deus? Decidiu fazer grande doação para que a Abadia de
Louvenne se tornasse a mais rica da região.
Samuel Garbois sorriu feliz. Iria finalmente realizar seu
sonho.
Enquanto caminhava no meio da lama e da chuva, Filipe
recordava sua infância.
O Castelo de Albey situava-se na encosta de uma montanha.
Era uma imensa fortaleza de pedra cujas fortificações tinham, durante muito
tempo, impedido saques e pilhagens.
Desde o nascimento de Filipe uma grande transformação havia
ocorrido na vida das pessoas que habitavam o castelo e suas redondezas. Uma atmosfera
mística os envolvia, sempre renovada pela constante vinda de peregrinos.
Filipe tinha verdadeiro horror aquelas visitas. As pessoas
lhe faziam promessas, pedidos, quase exigiam que fizesse algum milagre para
provar que era santo. E ele nunca se sentira santo, apesar da cruz estampada na
testa. Suas horas de alegria eram aquelas dedicadas às artes da guerra, quando
se iniciou no aprendizado da cavalaria. Seu sonho era tornar-se um grande
senhor guerreiro.
Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos
do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 17, 19-22.
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